O ISS e a Exportação de Serviços – Uma Análise Crítica à Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça

 por Luciano Gomes Filippo
Doutor em Direito Público pela Universidade Panthéon-Assas (Paris 2)
Advogado no Rio de Janeiro e em São Paulo
Rafael Alves dos Santos
Graduado em Ciências Contábeis. Sócio de AFGS Advogados
Advogado no Rio de Janeiro

 

Distanciando-se do racional de desonerar as exportações da cobrança de tributos, a Constituição da República, diferentemente do que fez que com o IPI, com o ICMS e com as contribuições sociais e de intervenção sobre o domínio econômico, não previu regra imunizante para a incidência do ISS sobre a exportação de serviços.

Todavia, com a redação da Emenda Constitucional nº 3/1993, a Carta Magna delegou à Lei Complementar a tarefa de excluir a incidência do ISS sobre a exportação de serviços, tal qual prevê o seu art. 156, § 3º, II.

Essa atribuição foi exercida pela Lei Complementar nº 116/2003, que assim dispõe em seu art. 2º:

“Art. 2º O imposto não incide sobre:
I – as exportações de serviços para o exterior do País;
(…)
Parágrafo único. Não se enquadram no disposto no inciso I os serviços desenvolvidos no Brasil, cujo resultado aqui se verifique, ainda que o pagamento seja feito por residente no exterior.”

Como se observa do parágrafo único acima transcrito, o legislador complementar criou uma espécie de norma antielisiva, objetivando impedir planejamentos tributários em que o contribuinte, a fim de se esquivar da tributação, presta serviços para tomadores sediados no Brasil, mas recebe a remuneração de residente no exterior.

Nada obstante, pode ocorrer em diversas situações a hipótese em que o contribuinte executa o serviço no Brasil, mas o destinatário desse mister é efetivamente uma pessoa sediada no exterior, sendo importante, portanto, aferir o significado da expressão “cujo resultado aqui se verifique”, contida no dispositivo citado alhures.

Em 25.09.2006 essa questão foi apreciada pela 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que, ao julgar o REsp nº 831.124, da relatoria do Ministro José Delgado, se defrontou com processo em que se discutiu a incidência do ISS sobre serviços de retificação, reparo e revisão de motores e turbinas de aeronaves, os quais, embora executados no Brasil, se destinavam a empresas aéreas sediadas no exterior.

Para melhor compreensão dos aspectos fáticos desenvolvidos naquela demanda, cumpre citar trecho do voto do Ministro Relator, que bem sintetiza a prestação de serviços desenvolvida pela empresa recorrente:

“1º) seus clientes no exterior a contratam e remetem turbinas para o seu estabelecimento localizado em Petrópolis/RJ;
2º) realiza o serviço para o qual foi contratada, testa as turbinas e as despacha ao exterior, etapas todas elas desenvolvidas no Município de Petrópolis;
3º) finalmente, quando do recebimento das turbinas reparadas, seus clientes as instalam nas respectivas aeronaves, verificam o resultado do serviço e remetem divisas ao Brasil para efetivar-se o pagamento pelos serviços prestados.”

Naquela ocasião, o colegiado entendeu, por maioria de votos, que o resultado da prestação dos serviços se verificaria no Brasil, pois segundo sustentou o Ministro Relator, “a empresa não é contratada para instalar os motores e turbinas após o conserto, hipótese em que se o serviço se verificaria no exterior, mas, tão-somente, conforme já posto, é contratada para prestar o serviço de reparo, retifica ou revisão”.

Logo, no entendimento daquele magistrado, “o trabalho desenvolvido não configura exportação de serviço, pois o objetivo da contratação, ou seja, o seu resultado, que é o efetivo conserto do equipamento, é totalmente concluído no território brasileiro”.

Como se vê, prevaleceu o posicionamento de que o resultado do serviço se verifica no Brasil quando ele é aqui concluído, pouco importando se o seu destinatário está localizado no exterior.

Ousamos discordar de tal entendimento.

De plano, é preciso ter em mente a premissa inafastável de que a desoneração tributária na exportação visa fomentar esse tipo de operação, favorecendo os contribuintes brasileiros, que, ao reduzirem seus custos fiscais, são mais competitivos no mercado internacional, com o que se beneficia a economia interna.

Com efeito, caso seja mantido o entendimento exposto pelo Superior Tribunal de Justiça, por óbvio serão majorados os custos dos prestadores de serviço sediados no Brasil, forçando-as a repassá-los para o respectivo preço, o que diminui sua competitividade no mercado internacional.

Na hipótese analisada pela Corte, o aumento do preço dos serviços brasileiros relacionados à retificação, ao reparo e à revisão de motores e turbinas de aeronaves, fará com que as empresas aéreas sediadas no exterior procurem prestadores localizados em outros países, fato que desestimulará a economia interna. Definitivamente, não foi esse o intuito do legislador complementar e, em última análise, do constituinte derivado.

Além disso, o posicionamento de que não há exportação quando os serviços são executados e concluídos em território nacional, independentemente de o tomador ser pessoa não-residente no país, poderá ocasionar situação esdrúxulas.

Imagine a situação em que uma empresa sediada na Alemanha contrate uma consultoria financeira de uma sociedade localizada no Brasil e, na sua elaboração, seu autor perceba que o trabalho terá 100 laudas. Nessa hipótese, sabedor de que a conclusão do trabalho em território nacional deflagrará a incidência do ISS, bastará que o seu executor elabore 99 laudas aqui no Brasil e, posteriormente, tome um avião com destino a Alemanha e, por lá, conclua a última página do estudo.

Nessa pitoresca situação, o serviço não terá sido “totalmente concluído no território brasileiro” (palavras extraídas do voto do Ministro Relator), o que, no entendimento do Superior Tribunal de Justiça, seria o suficiente para afastar a incidência do tributo municipal.

Data venia, a interpretação conferida pela Corte Superior de Justiça praticamente inviabiliza a regra contida no art. 2º, I, da Lei Complementar nº 126/2003, pois, conforme bem pontuou Gustavo Brigagão[1], em face do princípio da territorialidade, “serviços prestados em território estrangeiro, ainda que por residente no Brasil, não se confundem com serviços exportados”.

Nesse sentido, concordamos com a opinião do Ministro Teori Zavascki exposta no voto vencido exarado no julgamento ora analisado, que, por sua percuciência, merece transcrição:

“Peço a máxima vênia para discordar quanto à solução do mérito. Estamos falando de exportação de serviço. Só se pode falar de exportação de serviço nos casos e que ele é prestado no Brasil. Quanto a isso não há dúvida. Não se pode falar em exportação de serviço se for prestado no exterior. Exportação de serviço prestado no Brasil para alguém que o contrata de fora, pagando-o aqui ou lá. A lei diz que esses serviços são isentos, a não ser quando o resultado se opera aqui. Se o resultado se opera fora, há isenção. Essa é a questão.
Como diz o eminente Ministro Relator, a questão toda é saber o que é o resultado.
Penso que não se pode confundir resultado da prestação de serviço com a conclusão do serviço. Não há dúvida nenhuma que o serviço é iniciado e concluído aqui. Não há dúvida que o teste na turbina faz parte do serviço. O fato de ser testado aqui foi o fundamento adotado pelo juiz de Primeiro grau e pelo Tribunal para dizer que o teste é o resultado. Mas essa conclusão não é correta: o teste faz parte do serviço e o serviço é concluído depois do teste. Depois disso a turbina é enviada ao tomado do serviço, que a instala no avião, quando então, se verificará o resultado do serviço. O resultado, para mim, não pode ser confundir com a conclusão do serviço. Portanto, o serviços é concluído no País, mas o resultado é verificado no exterior, após a turbina ser instalada no avião.”         

A nosso ver, a questão central a ser enfrentada é que, na situação fática apresentada naquele julgamento, embora o serviço seja concluído no Brasil, seu resultado somente se verifica quando a turbina é instalada na aeronave estrangeira e tem-se, naturalmente, o seu perfeito funcionamento. Tanto é assim que, caso a turbina não funcione, não se terá experimentado seu resultado, fato que, inclusive, poderia ensejar a negativa de pagamento.    

Assim, em nosso sentir, a palavra “resultado”, prevista no art. 2º, parágrafo único, da Lei Complementar nº 116/ 2003, diz respeito à fruição dos benefícios advindos do serviço contratado, que deve estar de acordo o intuito que levou o tomador a contratá-lo. Não se pode confundir “conclusão” com “resultado”, mesmo porque, não haverá resultado se o serviço for defeituoso, muito embora ele possa ter sido efetivamente concluído.

Esse entendimento, além de encontrar guarida na manifestação do Ministro Teori Zavascki, também é agasalhado pela doutrina majoritária, a exemplo das lições de Roque Antonio Carrazza, Marcelo Marques Roncaglia, Gabriel Lacerda Troianelli, Juliana Gueiros e Gustavo Brigagão.

Sem qualquer demérito às lições dos demais estudiosos citados, que são igualmente esclarecedoras, oportuna se faz a transcrição dos ensinamentos do Professor Roque Antonio Carrazza[2]:

“(…)
IV – Reafirmamos que as exportações de serviços apresentam-se, por força do disposto no art. 156, § 3º, inciso II, da CF e no art. 2º, I, da Lei Complementar n. 116/2003 totalmente desoneradas do ISS.
Mas, afinal, quando se dá a exportação do serviço?
A nosso ver, sempre que tomador do serviço, sendo um não-residente, satisfazer, no exterior, a necessidade que o levou a contratar o prestador.
Pouco importa, para fins de isenção do ISS, se o serviço foi totalmente prestado no Brasil, se sua prestação apenas aqui se iniciou, ou se foi integralmente executado no exterior. Em qualquer destas hipóteses não haverá incidência, porque o resultado da prestação se fez sentir no exterior.
Apenas haverá incidência quando uma prestação de serviços avençada entre um nacional e um estrangeiro (pessoa domiciliada ou sediada no exterior) irradie os seus efeitos no Brasil.
E isto por uma razão muito simples: é que, neste caso, não terá havido uma operação de exportação de serviço, já que ele terá sido fruído (consumido) – embora por não-residente – em nosso país.
V – De consequência, sempre mais confirmamos que a expressão ‘cujo resultado aqui se verifique’ tem acepção de local onde ocorre a fruição do serviço, ou seja, o local onde ele é utilizado.
Se o serviço irradiar efeitos no Brasil, não há exportação – e, portanto, há, em tese, incidência de ISS. A contrario sensu, há exportação – e, portanto, não incidência do ISS – quando o serviço for desfrutado, isto é, produzir resultado no exterior.”  

Seguindo a mesma linha de raciocínio, as Câmaras Reunidas do Conselho Municipal de Tributos de São Paulo (CMT/SP), ao analisarem o processo administrativo nº 2011-0.125.786-1, reconheceram a isenção do tributo municipal sobre serviços de consultoria prestados a fundos de investimentos localizados no exterior, afirmando, para tanto, que a expressão “resultado do serviço” diz respeito com a utilidade do serviço.   

Diante do que foi exposto, que de forma alguma tem a pretensão de esgotar a análise do tema, parece-nos que a questão deve ser novamente levada à apreciação do Superior Tribunal de Justiça, mesmo porque, dentre os Ministros que compunham a 1ª Turma à época do julgamento do REsp nº 831.124, apenas o Ministro Francisco Falcão permanece em atividade na Corte.



[1] in “ISS não incide sobre exportação de serviços”, Consultor Jurídico, 31.07.2013.

[2] in “ISS – Serviços de reparação de turbinas de aeronaves, para destinatários no exterior – não-incidência – exegese do art. 2º, I, e seu parágrafo único, da Lei Complementar n. 116/2003, Revista de Direito, p. 36-37, n. 93, 2005.

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