Da vigência e aplicação no direito interno dos tratados internacionais visando evitar a bitributação em matéria fiscal

Por William Lima Batista Souza
Diretor Adjunto da Comissão de Direito Tributário da 104ª Subseção da OAB/SP
Sócio do Escritório Lima Batista e Sampaio Advogados Associados

 

Contribuintes vêm questionando perante o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF, assim como perante o Poder Judiciário manobras intentadas pelo Fisco com o objetivo de tributar, por meio do Imposto de Renda – IR e da Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido – CSLL, receitas sobre o lucro de empresas controladas ou coligadas no exterior em descompasso com tratados internacionais visando evitar a dupla tributação firmados, verbi gratia, com a Dinamarca, Bélgica e Luxemburgo.

Em matéria fiscal, o tratado internacional objetiva evitar tanto a bitributação, como a evasão de receitas tributáveis, sendo mesmo uma exceção à regra de direito interno, a teor das ponderações tecidas por Jörg Mafred Mössner citado por Luís Eduardo Schoueri[1].

Por meio do Decreto nº 75.106, de 1974, houve a promulgação no plano do direito interno da Convenção destinada a Evitar a Dupla Tributação e Prevenir a Evasão Fiscal em Matéria de Impostos sobre a Renda Brasil – Dinamarca. Relativamente à Bélgica e Luxemburgo, trataram respectivamente os Decretos n.os 72.542, de 30 de Julho de 1973 e 85.051/1980.

No caso do Tratado firmado com a Dinamarca, dentre os métodos adotados no artigo 23 para se evitar a dupla tributação, o Brasil ficou autorizado, no caso de coligada e/ou contralada estabelecida na Dinamarca, a tributar o IR sobre os lucros por ela auferidos apenas quando implementada a sua distribuição[2]. Por outro lado, os Decretos 72.542/1973 e 85.051, de 1980, ambos no artigo 7º, aduzem no item 1 que “os lucros de uma empresa de um Estado Contratante só são tributáveis nesse Estado, a não ser que a empresa exerça sua atividade no outro Estado Contratante por meio de um estabelecimento permanente aí situado. Se a empresa exercer sua atividade na forma indicada, seus lucros serão tributáveis no outro Estado, mas unicamente na medida em que forem atribuíveis a esse estabelecimento permanente.”

Sendo limite que elide a edição de norma interna contrária ao seu teor, também, e sobretudo, impede a atuação da autoridade fiscal dos Estados utentes do tratado para resguardar as pessoas e situações jurídicas nele abarcadas.

Na verdade, a questão perpassa a própria vontade do legislador, como também do executor da norma de direito interno por estar atrelada aos limites admitidos pelos Estados que, por intermédio das normas de Direito Internacional, podem tributar o resultado positivo de investimentos no exterior, apenas e tão somente, nas hipóteses neles delineadas.

Daí emanam as discussões iniciadas pelos contribuintes contra as manobras utilizadas pelo Fisco Brasileiro visando burlar ajuste firmado com outros Países.

Isso porque, a despeito da forma de regulamentação do assunto, a Receita Federal do Brasil vem autuando contribuintes que deixam de recolher o Imposto de Renda e a CSLL com base no artigo 25 da Lei nº 9.249/95 e no artigo 74, da Medida Provisória nº 2.158, de 2001, regulamentados pelo artigo 7º, §1º da Instrução Normativa – IN SRF nº 213, de 2002. Segundo o precitado artigo 7º, §1º da IN SRF nº 213/2002 os valores relativos ao resultado positivo da equivalência patrimonial, não tributados no transcorrer do ano-calendário, deverão ser considerados no balanço levantado em 31 de dezembro do ano-calendário para fins de determinação do lucro real e da base de cálculo da CSLL.

Sabe-se que o Estado nasce como fruto das primeiras manifestações do ser humano no sentido de viver em sociedade e como meio para realização de determinada finalidade que é atingida por meio do estabelecimento da ordem estatal nas manifestações reiteradas dos indivíduos que integram o corpo social.

A ordem estatal, por seu turno, não é irrestrita e encontra limite no âmbito geográfico do ente representativo de certo povo. Na condição de elemento essencial do Estado, serve de indicativo seguro da extensão do exercício do poder dentro de um dado território, inclusive em questões de Direito Tributário, pois a territorialidade delimita e circunscreve a soberania fiscal dos Estados[3].

Dentro desse cenário, o tratado internacional surge como instrumento que limita a soberania dos Estados envolvidos, sendo dirigidos, quanto ao seu objeto, aos legisladores internos obstando o tratamento contraditório da matéria nele contida.

Trata-se de instrumento típico do Direito Internacional Público firmado por Estados soberanos e formalizados a partir de concessões mútuas, que a partir de procedimento legislativo específico, passam a produzir efeitos no âmbito do direito interno, sem prejuízo da sua natureza internacional.

Não por acaso, aduz a doutrina, ao analisar o disposto no artigo 98 do Código Tributário Nacional, existir limitação acerca da eficácia da norma local conflitante com as disposições do tratado, a despeito da impropriedade técnica na redação que fala da revogação ou modificação da legislação tributária interna[4].

A interpretação relativa ao artigo 98, do CTN encontra fundamento na teoria monista, adotada expressamente pelo Texto Excelso no artigo 5º, § 2º. De acordo com o dispositivo constitucional, os tratados internacionais integram a vasta gama dos direitos e garantias fundamentais da pessoa retratados pelo mencionado artigo 5º ao longo dos seus incisos.

Assim, uma vez que os acordos internacionais para se evitar bitributação objetivam, em última análise, dar efetividade ao próprio princípio fundamental da igualdade em matéria tributária, eles se inserem, sim, no rol das garantias fundamentais prescritas no Título II, da Carta Federal, de modo que se sobrepõe a legislação interna do Estado signatário do tratado e sobre ela reflete seus efeitos. Nesta linha preleciona Ricardo Lobo Torres, Alberto Xavier, como também Luís Eduardo Schoueri.

Realmente, em matéria de direito fundamental, a afirmação encontra base, inclusive, no entendimento perfilhado pelo Supremo Tribunal Federal que colocou os tratados internacionais topograficamente acima da lei, que lhe deve obediência irrestrita, como se verifica do entendimento esposado pela Corte no julgamento do Recurso Extraordinário nº 349.703 reiterado no desfecho dado ao Recurso Extraordinário nº 466.343.

De toda forma, ainda que não se reconheça tal status ao tratado, a doutrina preponderante sobre a matéria salienta que ele ocupa espaço diverso da norma interna, pois, uma vez que objetivam disciplinar assuntos absolutamente antagônicos, não se pode cogitar, de modo algum, que uma lei local venha a alterar o conteúdo de tal veículo normativo.

Neste sentido, existe na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça Aresto exarado pela Primeira Turma nos autos do Recurso Especial nº 37.065-5, relatado pelo Ministro Demócrito Reinaldo, aludindo expressamente a impossibilidade de revogação pela legislação tributária interna do tratado ou convenção de natureza contratual.

Extrai-se sobre o assunto, ainda, no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF, o Acórdão nº 101-94.910, de lavra da Primeira Câmara, assim como o Acórdão 104-19.864, oriundo da Quarta Câmara, ambos Primeiro Conselho de Contribuintes, atribuindo a condição de lei especial ao tratado internacional.

Insiste-se neste ponto, pois o Estado Brasileiro pode, sim, nas situações especificadas tributar aludidas receitas por meio do IR e da CSLL, mas de acordo com os delineamentos inseridos nos Tratados envolvendo os Países que a eles aderiram devendo, ainda, a legislação interna ser aplicada naquilo que com eles não divergir, visando sempre o alcance do seu sentido normal ou especial, ou seja, a finalidade do tratado internacional.

Sobre o assunto, merece destaque recente decisão proferida pelo Ministro Teori Albino Zavascki do Superior Tribunal e Justiça, nos autos da Medida Cautelar nº 18.919-RJ, visando atribuir efeito suspensivo a recurso especial tirado contra Aresto do Tribunal Regional Federal da Segunda Região por meio do qual se discute, dentre outras questões, a necessidade de observância dos Tratados firmados pelo Brasil com a Dinamarca, Bélgica e Luxemburgo.

Segundo a decisão, o apelo extremo questiona desfecho desfavorável aos interesses contribuinte nos autos do processo nº 2003.51.002937-0 que manteve decisão de primeira instância que deixou de acolher pretensão deduzida em mandado de segurança almejando afastar a cobrança do IRPJ e da CSLL sobre os lucros de sociedades controladas ou coligadas apurados nos exercícios de 1996 a 2001 e de 2002 e seguintes, de acordo com o conteúdo da norma inserta nos artigos artigo 25 da Lei nº 9.249/95 e no artigo 74, da Medida Provisória nº 2.158, de 2001, regulamentados pelo no artigo 7º, §1º da Instrução Normativa – IN SRF nº 213, de 2002.

Dentre as matérias ventiladas no recurso especial, arguiu o contribuinte a absoluta incompatibilidade da legislação ordinária com os preceitos veiculados em normas de Direito Internacional envolvendo a República Federativa do Brasil, Dinamarca, Bélgica e Luxemburgo. A pretensão, no ponto, é de aplicação do disposto no artigo 98, do Código Tributário Nacional, de modo a fazer prevalecer os Tratados Internacionais visando afastar a bitributação em face da legislação interna brasileira (artigos 25 da Lei 9.249/95 e 74 da MP 2.158-35/2001).

A medida de urgência foi deferida pelo STJ escorada no entendimento assentado no Recurso Especial nº 1.211.882, Min.Mauro Campbell, DJe de 14/04/11 e no REsp 1.236.779, Min. Herman Benjamin, DJe de31/08/11. Os precedentes versam sobre a incompatibilidade do artigo 7º, §1º da Instrução Normativa – IN SRF nº 213, de 2002, com as prescrições insertas na Medida Provisória nº 2.158-35, assim como nas Leis nº 9.249/95 e 7.689/88, relativamente à tributação dos lucros auferidos por empresas coligadas ou controladas pelo contribuinte no exterior pelo resultado positivo da avaliação de investimentos pelo método da equivalência patrimonial.

Muito embora a decisão que conferiu efeito suspensivo ao recurso especial não tenha abordado a questão relativa ao artigo 98, do Código Tributário Nacional, diante das peculiaridades que gravitam em torno da matéria, denota-se ser indevida a pretensão aplicar uma norma interna em absoluta contrariedade com o prescrito nas Convenções Internacionais para exigir o recolhimento Imposto de Renda e da CSLL tomando como base imponível o resultado positivo oriundo da equivalência patrimonial referente a investimentos realizados em sociedade controlada ou coligada como pretende o Fisco ao lançar mão do disposto nos artigos 25 da Lei 9.249/95 e 74 da MP 2.158-35/2001.

De toda forma, tendo vista o entendimento fixado no âmbito doutrinário e pelo Pretório Excelso acerca da aplicação dos tratados internacionais no direito interno à luz do artigo 5º, §2º, da Constituição Federal, como ainda a existência de precedente específico sobre o assunto no Superior Tribunal de Justiça acerca do disposto no artigo 98, do Código Tributário Nacional, além das decisões emanadas pelo CARF na linha da Corte Especial, seguramente sobre a matéria em foco haverá desfecho favorável aos contribuintes.



[1]Preços de Transferências no Direito Tributário Brasileiro, p. 285, 2ª ed..

[2]“Artigo 23.

(…)

5. Os lucros não distribuídos de uma sociedade anônima de um Estado Contratante cujo capital pertencer ou for controlado, total ou parcialmente, direta ou indiretamente, por um ou mais residentes de outro Estado Contratante não são tributáveis no último Estado.

(…)”

[3] “13.2.8.2 Vale recorrer, nesse passo, a um exemplo bastante ilustrativo, ainda que absurdo. Imagine-se um hipotética situação na o Estado brasileiro pretenda tributar a propriedade territorial e predial da Casa Branca, nos E.U.A. 13.2.8.3 Muito embora não haja vedação expressa na Constituição Federal pátria a tal imposição tributária, resta claro que a pretensão de tributar a sede do governo norte-americano viola os limites da jurisdição do Estado brasileiro, razão pela qual a legislação doméstica de IPTU não poder ser aplicada na situação imaginada.” Luís Eduardo Schoueri, ob. cit., p. 269.

[4] Na sempre exata expressão de Alberto Xavier, in Direito Tributário Internacional do Brasil, p. 149, 6ª ed.: “(…) é incorreta a redação deste preceito, quando se refere à ‘revogação’ da lei interna pelos tratados. Com efeito, não se está aqui perante o fenômeno ab-rogativo, já que a lei interna mantém a sua eficácia plena fora dos subtraídos à sua aplicação pelo tratado. Trata-se, isso sim, de limitação da eficácia da lei que se torna relativamente inaplicável a certo círculo de pessoas e situações, limitação esta que caracteriza precisamente o instituto da derrogação e decorre da relação de especialidade entre tratados e lei”.

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