Tribunais Administrativos Fiscais são imprescindíveis para o controle dos atos da administração tributária e suas decisões são definitivas para a Fazenda Pública

 

por João Luís de Souza Pereira
Advogado. Mestre em Direito
Professor da FGV/Law Program e da EMERJ

 

O estudo dos recursos previstos nas normas reguladoras do Processo Administrativo Fiscal (PAF) é tema que a cada dia ganha mais importância na dinâmica da tributação. Segundo apontam os Relatórios de Gestão do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, no ano de 2009 foram julgados pelo CARF 14.860 recursos, 19.387 em 2010 e 20.086 foram decididos em 2011.

Por aí já se vê que os contribuintes não costumam se resignar com as decisões proferidas pelas Delegacias da Receita Federal Especializadas em Julgamento (DRJ) que mantêm a exigência de tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal e se socorrem da via dos recursos administrativos para reverter esta situação.

Com efeito, a atividade da Administração é exercida no âmbito de um processo em que são desenvolvidos diversos atos ordenados com vistas às finalidades que constituem a função precípua do Poder Executivo. Aliás, como bem esclarece JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO (2001, p. 17), “mesmo que sejam simplórias as formalidades exigidas, a Administração sempre alvitrará determinado objetivo, e a forma pela qual consuma seu desiderato é o processo administrativo”.

A Administração Tributária integra-se no Poder Executivo. Logo, trata-se de um órgão encarregado de uma função administrativa. Cuida-se de uma função administrativa destinada à concretização das diversas providências para as quais o direito tributário material exige um prévio processo administrativo e que deve ser  exercida dentro de limites e sob o manto da legalidade.

Daí surge a importância do controle dos atos da administração tendentes a aplicar a lei tributária, seja aquela que exige os tributos devidos a partir da ocorrência do fato gerador, sejam aquelas outras que se relacionam com situações de suspensão, extinção ou exclusão do crédito tributário.

O controle dos atos administrativos caracteriza uma reação, determinando uma correção de rumo sempre que restarem ameaçadas as liberdades e os direitos dos administrados.

Este controle pode ser exercido pela Administração por sua própria iniciativa (STF, Súmula n° 473) ou como resultado de provocação pelo administrado.

O controle da Administração por iniciativa do administrado ocorre através do recurso administrativo em sentido amplo.

Analisando a questão do controle da Administração por iniciativa do administrado, HELY LOPES MEIRELLES (2003, p. 643) afirma que “Recursos administrativos, em acepção ampla, são todos os meios hábeis a propiciar o reexame de decisão interna pela própria Administração, por razões de legalidade e de mérito administrativo”.

Do ponto de vista do direito tributário, são comuns – e porque não dizer unânimes – as manifestações doutrinárias que afirmam ser o processo administrativo fiscal um meio de controle da legalidade dos atos praticados pela Administração Tributária.

MARCOS VINÍCIUS NEDER e MARIA TERESA MARTÍNEZ LÓPEZ (2010, p. 23), apesar de enfatizarem que o processo administrativo fiscal tem por objetivo alcançar a justiça, não negam que se trata de um verdadeiro meio de controle da Administração:

“A Administração Pública, no exercício de sua competência constitucional, não pode olvidar de buscar a realização da justiça, fim último que legitima sua atuação. Este objetivo não deve ficar restrito apenas ao Poder Judiciário, é também interesse administrativo. Desse modo, órgãos internos à Administração devem realizar o controle de seus atos. Trata-se, na verdade, de estabelecer controles ‘desde dentro’, ou seja, incidentes na própria intimidade da Administração ao longo da formação de sua vontade, em vez de se contentar com controles operados de fora, pelo Judiciário,e , portanto, só utilizados ex post facto.”

Mas importante é notar que do resultado da decisão administrativa que decorre do controle, da outorga ou da aplicação de sanção, surge para o sujeito passivo o direito de rever as manifestações do sujeito ativo da relação tributária que sejam contrárias a seus interesses. Aliás, como observa HUMBERTO THEODORO JÚNIOR (1992, p. 542), “é intuitiva a inconformação de qualquer pessoa diante do primeiro juízo ou parecer que lhe é dado. Naturalmente, busca-se uma segunda ou terceira opinião”.

É daí que surge a inegável relevância dos Tribunais Administrativos, que nada mais são do que órgãos da administração tributária destinados à revisão das decisões administrativas resultantes de provocações do sujeito passivo ou de iniciativas de ofício da Administração

Do exame dos órgãos com competência para decidir os recursos administrativos fiscais em âmbito federal, estadual ou municipal, percebe-se que a semelhança entre eles vai além da competência. Todos são órgãos colegiados e paritários.

A composição destes órgãos como colegiados tem inspiração nos órgãos de segunda instância jurisdicional, como já observou MARCOS ANDRÉ VINHAS CATÃO (2002, p. 178), em estudo em que apresenta a evolução histórica dos Conselhos:

“Em 31.8.1931, através da edição do Decreto 20.350, criava-se o Conselho de Contribuintes, delegando-se, então, a esse órgão competência para dirimir em última instância as controvérsias relativas aos lançamentos tributários efetuados pela Receita Federal. Até então as autuações lavradas no âmbito da União eram decididas pelos órgãos regionais (Delegacias e Aduanas) e eventualmente submetidas a sistema de revisão singular (Ministro da Fazenda). Criava-se pela primeira vez no país um foro de discussão colegiada de natureza administrativa, não-judicial, moldado, entretanto, à feição das Cortes de Justiça”.

Esta composição colegiada dos órgãos administrativos há de ser vista positivamente, já que as deliberações coletivas trazem maior riqueza e, ao menos teoricamente, permitem reduzir as falibilidades do homem nos casos de decisões monocráticas.

A doutrina também já se preocupou em analisar a composição paritária dos Conselhos, igualmente manifestando-se favoravelmente à medida, já que permite um maior equilíbrio nas decisões. Interessante é a observação de JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO (2000, p. 100) sobre este tema, demonstrando, em última análise, que a paridade confere maior imparcialidade às decisões:

“Na medida em que os representantes dos contribuintes (entidades da agricultura, comércio, indústria, advogados, contabilistas etc.) decidem, em conjunto, com os agentes públicos (fiscais de renda, procuradores), os julgamentos passam a consubstanciar um exame imparcial, desvinculado de orientações fazendárias”.

Com se vê, o processo administrativo fiscal não pode prescindir dos recursos, sob pena de esvaziamento do direito à ampla defesa. Mas também não pode abrir mão de órgãos colegiados e paritários, salvo se a intenção for a manutenção de um processo injusto, tendencioso e parcial.

Questão relevante e, lamentavelmente, sempre atual que se coloca em relação às decisões dos chamados Tribunais Administrativos diz respeito à intenção da Fazenda Pública em recorrer ao Poder Judiciário para reformar as decisões administrativas que lhe tenham sido desfavoráveis.

A relevância do tema reside na possibilidade de introdução de um ambiente de insegurança jurídica entre os indivíduos, na exata medida em que nunca se chegará a uma decisão final no âmbito do processo administrativo, comprometendo a plena eficácia do artigo 156, IX, do Código Tributário Nacional, que afirma ser modalidade de extinção do crédito tributário “a decisão administrativa irreformável, assim entendida a definitiva na órbita administrativa, que não mais possa ser objeto de ação anulatória”.

As recentes Ações Populares propostas em face de algumas decisões do CARF favoráveis a sujeitos passivos reacenderam o exame acerca do Parecer PGFN/CRJ/N° 1.987/2004[1] e da Portaria do Procurador Geral da Fazenda Nacional n° 820/2004[2]; o primeiro afirmando ser possível a reforma judicial por iniciativa da Fazenda Nacional das decisões proferidas pelos então Conselhos de Contribuintes do Ministério da Fazenda e, a segunda, regulamentando as hipóteses em que esta discussão terá início e será cabível.

Após transcorrer sobre o princípio na inafastabilidade da jurisdição, a Procuradoria da Fazenda Nacional conclui que:

“…pode-se afirmar que as decisões do Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda, desfavoráveis a qualquer um dos sujeitos da relação jurídico-tributária, sujeitam-se ao crivo do Poder Judiciário para controle de sua legalidade ou de sua juridicidade, ou em decorrência de erro de fato ocorrido no julgamento administrativo, mormente se e quando ofenderem os princípios administrativos e constitucionais (explícitos ou implícitos) que regem e informam a Administração Pública (v.g. da finalidade, da impessoalidade, da legalidade, da proporcionalidade, da igualdade, da supremacia do interesse público, da moralidade, da eficiência, da probidade, da boa-fé, da motivação, da razoabilidade, entre outros)”.

Mas esta não é a posição que espelha o entendimento doutrinário predominante sobre a matéria. Com efeito, os pensadores do Direito Tributário alinham pelo menos três grandes obstáculos ao ingresso da Fazenda Pública em juízo para reformar decisão que tenha apreciado recursos administrativo fiscal e decidido pelo cancelamento da exigência fiscal.

O primeiro motivo registrado pela doutrinária contrário à idéia de revisão judicial das decisões proferidas em apreciação de recursos administrativos fiscais é a violação ao princípio da segurança jurídica. Segundo esta corrente do pensamento doutrinário, a possibilidade de ingresso da Fazenda em juízo acabaria por instalar o caos, já que nunca os contribuintes teriam a necessária certeza (e segurança) da imutabilidade das decisões finais em processos administrativos, como se percebe do enfoque que IVES GANDRA DA SILVA MARTINS (1999, p. 78) dá à matéria:

“Parece-me que até por força do ‘princípio-fundamento’ da Constituição, que é o da ‘segurança jurídica’, tal pretensão é inaceitável, visto que se instauraria em relação ao contribuinte que discutiu com sucesso administrativo, mas sem direito à sucumbência, a insegurança absoluta, pois todo o processo em que a Fazenda desempenhou essencialmente os papéis de ‘parte e juiz’, poderia ser reaberto, a qualquer momento, reiniciando-se discussão interminável”.

O segundo fundamento jurídico relevante apontado pela doutrina afeta diretamente a premissa básica adotada pela Procuradoria da Fazenda Nacional no Parecer PGFN/CRT/N° 1.087/2004, qual seja, o princípio da inafastabilidade do acesso ao Poder Judiciário. De acordo com o pensamento de HUGO DE BRITO MACHADO (1999, p. 155), o direito de acesso à jurisdição foi conferido pelo legislador constituinte ao cidadão, mas não ao Poder Público:

“As garantias constitucionais são destinadas ao cidadão, e não ao próprio Estado, salvo, é claro, aquelas expressa e explicitamente destinadas, que funcionam como instrumento de preservação da ordem institucional”.

Uma terceira corrente doutrinária defende ser impossível o acesso da Fazenda Pública à jurisdição no caso em apreço, tendo em vista falecer à Administração interesse processual para reverter em juízo decisão proferida por ela mesma. Assim sustenta SACHA CALMON NAVARRO COÊLHO (1999, p. 189) afirmando que:

“a ninguém é lícito ir a juízo para demandar a anulação de ato jurídico seu, consciente e fundamentadamente praticado. Portanto, a decisão administrativa irreformável que põe fim ao crédito tributário, extinguindo-o, referida no Código Tributário Nacional, é aquela que, favorável ao contribuinte, não enseja ação anulatória de débito fiscal ação do contribuinte como autor, nunca da Administração”.

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“ninguém pode ir a juízo contra ato próprio, por falta de interesse de agir. De outra parte, a decisão administrativa definitiva, contra a Fazenda Pública, certa ou errada, constitucional ou não, extingue a obrigação tributária.

Inexiste no Direito brasileiro ação anulatória de ato administrativo formalmente válido praticado pela Administração, sendo ela própria a autora”.

Ainda que se supere a falta de interesse processual apontada SACHA CALMON (1999), também sob o prima do Direito Processual a hipotética ação anulatória que venha a ser proposta pela Administração não poderá prosperar porque, considerando que os Tribunais Administrativos não possuem personalidade jurídica, haverá inevitável confusão entre autor e réu, impondo-se a extinção do processo sem julgamento de mérito, na forma autorizada pelo artigo 267, X, do Código de Processo Civil.

REFERÊNCIAS

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Processo Administrativo Federal – Comentários à Lei n° 9.784, de 29/1/1999. Rio de Janeiro: Editora Lumen Iuris, 2001.

CATÃO, Marcos André Vinhas. Conselhos de Contribuintes – A solução de controvérsias no âmbito da própria Administração. In: Revista de Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, n. 84, p. 174-184, 2002.

COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Processo Administrativo Tributário. São Paulo: Centro de Extensão Universitária e Editora Revista dos Tribunais, 1999.

MACHADO, Hugo de Brito. Algumas Questões do Processo Administrativo Tributário. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Processo Administrativo Tributário. São Paulo: Centro de Extensão Universitária e Editora Revista dos Tribunais, 1999, pp. 132-157.

MARTINS, Ives Gandra da Silva. Processo Administrativo Tributário. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Processo Administrativo Tributário. São Paulo: Centro de Extensão Universitária e Editora Revista dos Tribunais, 1999, pp. 51-78.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2003.

MELO, José Eduardo Soares de. Composição Paritária dos Órgãos Julgadores Administrativos. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). Processo Administrativo Fiscal. São Paulo: Dialética, 2000, 5° vol, p. 95-104.

NEDER, Marcos Vinícius e LÓPES, Maria Teresa Martinez. Processo Administrativo Fiscal Federal Comentado. São Paulo: Dialética, 2010.

THEODOR JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1992.



[1]Publicado no Diário Oficial da União – Seção I, de 23/8/2004.

[2]Publicada no Diário Oficial da União – Seção I, de 29/10/2004.

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