Responsabilidade tributária por transferência do dever de pagar e por fato gerador alheio.

por Ives Gandra da Silva Martins
Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIP, UNIFIEO, UNIFMU, do CIEE/O ESTADO DE SÃO PAULO, das Escolas de Comando e Estado-Maior do Exército – ECEME, Superior de Guerra – ESG e da Magistratura do Tribunal Regional Federal-1a. Região; Professor Honorário das Universidades Austral (Argentina), San Martin de Porres (Peru) e Vasili Goldis (Romênia); Doutor Honoris Causa das Universidades de Craiova (Romênia) e da PUC-Paraná, e Catedrático da Universidade do Minho (Portugal); Presidente do Conselho Superior de Direito da FECOMERCIO – SP; Fundador e Presidente Honorário do Centro de Extensão Universitária-CEU/Instituto Internacional de Ciências Sociais-IICS. Membro das Academias Internacional de Cultura Portuguesa (Lisboa), Internacional de Direito e Economia, Brasileira de Filosofia, Brasileira de Letras Jurídicas, Paulista de Letras, Paulista de História, Paulista de Educação e Paulista de Direito.

 

O artigo 128 do CTN tem a seguinte dicção:

“Art. 128. Sem prejuízo do disposto neste capítulo, a lei pode atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação, excluindo a responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter supletivo do cumprimento total ou parcial da referida obrigação.”

 Ao comentar pela Saraiva, este artigo, meu raciocínio seguiu a linha que passo a expor [1].

 O dispositivo pretende consubstanciar uma norma geral formalizada em duas linhas básicas, a saber:

1) a responsabilidade tributária é aquela definida no capítulo;

2) a lei, entretanto, pode estabelecer outros tipos de responsabilidade não previstos no capítulo a terceiros.

 O artigo começa com a expressão “sem prejuízo do disposto neste Capítulo”, que deve ser entendida como exclusão da possibilidade de a lei determinar alguma forma de responsabilidade conflitante com a determinada no Código.

 Isso vale dizer que a responsabilidade não prevista pelo capítulo pode ser objeto de lei, não podendo, entretanto, a lei determinar nenhuma responsabilidade que entre em choque com os arts. 128 a 138.

 A seguir o artigo continua: “a lei pode atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa”, determinando, de plano, que esta escolha de um terceiro somente pode ser feita se clara, inequívoca e cristalinamente exposta na lei.

Uma responsabilidade, entretanto, sugerida, indefinida, pretendidamente encontrada por esforço de interpretação nem sempre juridicamente fundamentada, não pode ser aceita, diante da nitidez do dispositivo, que exige deva a determinação ser apresentada “de forma expressa”.

Por outro lado, fala o legislador, em “crédito tributário”, de tal maneira que a expressão abrange tanto os tributos como as multas, quando assim a lei o determinar.

Significa dizer que o crédito tributário, cuja obrigação de pagar foi transferida a terceiros, sempre que não limitado, por força do CTN ou de lei promulgada nesses moldes, à tributação apenas, deve ser entendido por crédito tributário total. Em havendo, todavia, qualquer limitação expressa, a transferência da responsabilidade pela liquidação do crédito só se dará nos limites da determinação legal.

Aliás, a própria vinculação da determinação atrás comentada com a responsabilidade subjacente do contribuinte, “excluindo a responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter supletivo do cumprimento total ou parcial da referida obrigação”, está a mostrar que a atribuição de uma responsabilidade a terceiros para extinguir o crédito tributário pode ser parcial ou total, como pode ser a responsabilidade total, parcial ou nenhuma de quem deveria ser o contribuinte.

Fala, a lei, ainda, que a terceira pessoa eleita como responsável deve ser vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação.

É evidente, ao falar “vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação”, pela amplitude da expressão, que admitiu os dois tipos de responsabilidade por relação, ou seja, a “transferente” e a “substitutiva”.

Finalmente, deve-se verificar que o verdadeiro contribuinte, podendo ter sua responsabilidade excluída ou apenas passando a ter uma responsabilidade parcial ou total de caráter supletivo, somente perde sua função de personagem passiva principal por razões de interesse estatal vinculado principalmente às necessidades de simplificações na arrecadação e fiscalização do tributo”.

O art. 150, § 7º, da Constituição Federal criou tipo de responsabilidade tributária sem fato gerador atual, estando assim redigido:

“§ 7º A lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido”.

Sendo fictícia, e não presumida, a hipótese de imposição, tenho minhas dúvidas sobre a constitucionalidade do dispositivo, posto que, a meu ver, o art. 128 é explicitador da cláusula pétrea constitucional vinculada ao princípio da legalidade, e este princípio não permitira, até a EC n. 3/93, a imposição sem fato gerador. Transcrevo, em sentido contrário, decisão do STF (RE 213-396-5/SP, 1)1, 1° dez. 2000), cuja ementa é a seguinte:

“Relator: Min. Ilmar Galvão
Recorrente: Estado de São Paulo
Advogado: PGE-SP — Carlos José Teixeira de Toledo
Recorrido: Diasa Distribuidora e Importadora de Automóveis S/A
Advogado: Alexandre Moreno Barrot e outros
Ementa: Tributário. ICMS. Estado de São Paulo. Comércio de veículos novos. Art. 155, § 2º, XII, B, da CF/88. Convênios ICM n. 66/88 (art. 25) e ICMS n. 107/89. Art. 82, inc. XIII e § 4º, da lei paulista n. 6.374/89.
O regime de substituição tributária, referente ao ICM, já se achava previsto no Decreto-Lei n. 406/68 (art. 128 do CTN e art. 6°, § 3° e 4º, do mencionado decreto-lei), normas recebidas pela Carta de 1988, não se podendo falar, nesse ponto, em omissão legislativa capaz de autorizar o exercício, pelos Estados, por meio do Convênio ICM n. 66/88, da competência prevista no art. 34, § 8°, do ADCT/88.
Essa circunstância, entretanto, não inviabiliza o instituto que, relativamente a veículos novos, foi instituído pela Lei paulista n. 6.374/89 (dispositivos indicados) e pelo Convênio ICMS n. 107/89, destinado não a suprir omissão legislativa, mas a atender à exigência prevista no art. 62, § 42, do referido Decreto-Lei n. 406/6 8, em face da diversidade de estados aos quais referido regime foi estendido, no que concerne aos mencionados bens.
A responsabilidade, como substituto, no caso, foi imposta por lei, como medida de política fiscal, autorizada pela Constituição, não havendo que se falar em exigência tributária despida de fato gerador.
Acórdão que se afastou desse entendimento.
Recurso conhecido e provido”.

Consta do acórdão o seguinte trecho:

“A matéria foi ainda contemplada na EC n. 3/93, que introduziu, no art. 150 da CF/88, o § 7º, segundo o qual,
“§ 7º A lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido’.
O referido § 7º, acima transcrito, foi regulamentado pela Lei Complementar n. 87/96”.

Em outra decisão, o STF declarou que a devolução do tributo recolhido antecipadamente só seria restituído no caso de não se completar a operação final (ADIn 1.851, DJ 13-12-2002, rel. Min. Ilmar Galvão, Plenário do STF)”  [2].

 Pessoalmente, tenho defendido a tese de que, de um lado,  toda a responsabilidade tributária é substitutiva, nos termos do art. 121 do CTN assim redigido:

“Art. 121. Sujeito passivo da obrigação principal é a pessoa obrigada ao pagamento de tributo ou penalidade pecuniária.
        Parágrafo único. O sujeito passivo da obrigação principal diz-se:
        I – contribuinte, quando tenha relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador;
        II – responsável, quando, sem revestir a condição de contribuinte, sua obrigação decorra de disposição expressa de lei.” [3].

É que, havendo dois tipos de pagadores de tributos (o contribuinte e aquele que é posto  em seu lugar), à evidência quem está no lugar do contribuinte, substitui-o. Por essa  razão  não hospedo a tese dos que vêem diferença entre “transferência do dever tributário do contribuinte” e a “substituição tributária por fato gerador alheio”, posto que, nas duas hipóteses, o pagador de tributos é SUBSTITUTO DO VERDADEIRO CONTRIBUINTE, ORIGINÁRIO OU SUPLETIVO.

Por outro lado, quando a responsabilidade tributária decorre, por transferência do dever tributário, o fato gerador, em tese, tem por origem a circunstância de  ser aquele que o transferiu quem o gerou, daí o seu dever. Em tese, portanto, a transferência do dever tributário é também transferência da responsabilidade pelo fato gerador alheio.

É bem verdade que o artigo 128 faz menção a dois tipos de responsabilidade, ou seja, a excludente da obrigação de o contribuinte real pagar o tributo, passando sua responsabilidade exclusiva ao responsável, e a supletiva, ou seja, aquela em que, no caso de o responsável se  tornar inadimplente, o contribuinte volta a participar da relação tributária, como sujeito passivo da obrigação [4].

Em ambas as hipóteses, entretanto, o fato gerador, que deveria ser atribuído, em nível de obrigação de pagar o tributo, ao contribuinte, é transferido ao substituto, sendo, a meu ver, irrelevante que o seja de forma exclusiva ou supletiva. Nada obstante situações diversas, no âmago da questão, há sempre uma responsabilidade do substituto e sempre um fato gerador, cuja deflagração foi ocasionada pelo contribuinte.

Prefiro, pois, em nível de simplificação doutrinária, entender que não há, na essência, distinção, pois o fato gerador é sempre alheio e o responsável sempre substituto do contribuinte.

Não posso deixar, todavia, de reconhecer que na substituição tributária exclusiva, embora o fato gerador seja alheio, o pagador de tributo é, de imediato, colocado na posição de responsável, com o que embora não seja o contribuinte é o único obrigado a adimplir a obrigação, o que torna o responsável, um “quase contribuinte”.

O fato gerador, todavia, em direito tributário, é o que define o regime jurídico da imposição e este tem como seu gerador o contribuinte, pela lei definitivamente excluído. Esta é a razão pela qual não faço distinção. Para mim, pois, há apenas duas figuras de pagadores tributários, ou seja, o contribuinte e o responsável.

IGSM/mos/a2011-112 RESPONS TRIB POR TRANSF DEVER PAGAR – dialetica



[1]  Comentários ao CTN, 2º vol., 5ª. ed., p. 235/239.

[2] Ob. cit. p. 225/237.

[3]  Luiz Antonio Caldeira Miretti esclarece:  “Porém, é indispensável que se faça a ressalva de que o legislador encontra limites de atuação no que se refere à figura do responsável, visto que o inciso II do parágrafo único do art. 121 tem de ser aplicado conjuntamente com a disposição do art. 128 do CTN (previsão em lei e vinculação do responsável ao fato gerador da respectiva obrigação).

A concepção de Zelmo Denari quanto à distinção da sujeição passiva direta e indireta, extraída do CTN, acentua que:

“O contribuinte — como quer nosso estatuto tributário — é o sujeito passivo que tem relação pessoal e direta com a situação que constitua o fato gerador da obrigação tributária.

Quando a situação-base ostenta a natureza de fato econômico, como sucede na generalidade dos casos previstos na Constituição (v. g., importação e exportação de mercadorias, industrialização e fornecimentos de bens ou serviços, disponibilidade de bens ou rendas etc.), o legislador ordinário não tem alternativas, pois só pode qualificar como contribuinte o operador econômico que realiza o pressuposto tributário.

Responsável tributário, nos termos do inciso II do art. 121, vale dizer, amplo sensu, é o sujeito passivo obrigado ao pagamento do tributo ou penalidade pecuniária ex vi legis. Advirta-se, contudo, que diversos são os modelos de obrigados tributários cuja responsabilidade deriva de disposição expressa de lei.

Responsáveis tributários, em sentido estrito, são todos aqueles que, por disposição legal, são acrescidos à relação fisco-contribuinte, em caráter solidário”  (grifos do original)” (Comentários ao Código Tributário Nacional, 5ª. ed., ob. cit. p. 217).

[4]  Edison Carlos Fernandes lastreia-se na posição de Rubens, antes do anteprojeto, ao dizer:  “Nas palavras do citado Rubens Gomes de Sousa, a sujeição passiva indireta (responsabilidade em sentido amplo) por transferência “ocorre quando a obrigação tributária, depois de ter surgido contra uma pessoa determinada (que seria o sujeito passivo direto) entretanto, em virtude de um fato posterior, transfere-se para outra pessoa diferente (que será o sujeito passivo indireto)”. A transferência, portanto, quer significar que, embora tenha havido um contribuinte (sujeito passivo direto), devido a situações fáticas, e nos termos da legislação aplicável, a responsabilidade pelo cumprimento da obrigação tributária foi transladada para outra pessoa, que, todavia, tenha algum vínculo com o fato gerador ocorrido. A exigência de vínculo do responsável com o fato gerador está expressamente prevista na regra geral da responsabilidade tributária, inscrita no art. 128 do CTN. Sublinhe-se: qualquer análise ou estudo da responsabilidade tributária deve ter como inafastável o disposto no art. 128 do CTN, especialmente no que concerne à vinculação do responsável ao fato gerador” (Curso de Direito Tributário, coordenação minha, Ed. Saraiva, 12ª ed., São Paulo, 2010, p. 288).

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