Portaria RFB nº 1.265/15 As equivocadas escolhas da Receita Federal do Brasil

por Luiz Roberto Peroba
Sócio da área tributária do escritório Pinheiro Neto Advogados
Graduado pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Pós-graduado em Direito Tributário pela New York University
Diego Caldas R. de Simone
Associado da área tributária do escritório Pinheiro Neto Advogados
Graduado pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Mestre em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Doutorando em Direito Tributário e Financeiro pela Universidade de Barcelona

 

Entre medidas de aumento de receita, (escassos) cortes de despesas, intensificação de fiscalização e aprimoramento dos procedimentos de recuperação de créditos tributários, o Governo Federal tem buscado todos os meios ao seu alcance para equilibrar a delicada situação fiscal do país. No escopo destas medidas, a Receita Federal do Brasil (“RFB”) editou, em 4.9.2015, a Portaria RFB nº 1.265/15, instituindo a chamada “Cobrança Administrativa Especial”, com o objetivo de “promover o aumento e a sustentação da arrecadação dos tributos federais”.

A Cobrança Administrativa Especial abrange, obrigatoriamente, os CT [créditos tributários] que estejam na condição de exigíveis, cujo somatório, por sujeito passivo, seja igual ou maior que R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais)”. Ainda assim, ao permitir que a unidade da RFB inclua na Cobrança Administrativa Especial outros créditos tributários que não se enquadrem nos critérios gerais definidos para tanto (i.e., débitos na condição de “exigíveis”, em valor igual ou maior que R$ 10.000.000,00), as disposições da Portaria RFB nº 1.265/15 são teoricamente aplicáveis a todos e quaisquer casos, inclusive em relação a débitos com exigibilidade suspensa.

Nesse contexto, o sujeito passivo que, intimado, não regularizar os créditos tributários abrangidos pela Cobrança Administrativa Especial, ficará sujeito a até 25 diferentes medidas, todas elas voltadas a compelir os contribuintes à satisfação de seus débitos fiscais. Entre as principais medidas, destacam-se a exclusão do sujeito passivo de programas de parcelamento/anistia fiscal (REFIS, PAES e PAEX), o encaminhamento ao Ministério Público Federal de Representação Fiscal para Fins Penais, o arrolamento de bens e direitos, a representação para interposição de medida cautelar fiscal e a exclusão de benefícios e/ou incentivos fiscais federais, além do natural encaminhamento do débito para inscrição em Dívida Ativa da União (DAU) e ajuizamento da respectiva execução fiscal, acarretando acréscimo de 20% (vinte por cento) de encargos sobre o montante total do débito e necessidade de apresentação de garantia.

Além destas medidas, a Portaria RFB nº 1.265/15 ainda traz uma série de obstáculos ao regular desenvolvimento das atividades empresariais em caso de não quitação dos débitos, como a comunicação às respectivas Agências Reguladoras para que seja revogada a autorização para o exercício da atividade, no caso de sujeito passivo detentor de Concessões e Permissões da Prestação de Serviços Públicos, a representação aos bancos públicos para fins de não liberação de créditos oriundos de fundos públicos, repasses e financiamentos, a representação ao órgão competente da administração pública federal direta ou indireta, para fins de rescisão de contrato celebrado com o Poder Público e a declaração de inaptidão da pessoa jurídica caracterizada como “não localizada” pela não confirmação do recebimento de 2 (duas) ou mais correspondências enviadas pela Cobrança Administrativa Especial.

Na defesa dos interesses do governo e buscando justificar a legalidade/constitucionalidade das medidas constantes da Portaria RFB nº 1.265/15, as autoridades fiscais apressaram-se em afirmar que “alguns setores da imprensa estão publicando interpretações equivocadas de advogados e formadores de opinião sobre a Portaria RFB nº 1.265, publicada no DOU de 4/9/2015”, na medida em que tal ato normativo, no seu entendimento, “nada mais fez do que trazer uma coletânea da legislação a ser aplicada ao mau pagador de tributos”[1].

Embora a Portaria RFB nº 1.265/15 em muitos casos, de fato, apenas reflita – em maior ou menor extensão — o anteriormente disposto na legislação, passa a instrumentalizar aos auditores fiscais hipóteses que, até então, eram utilizadas de forma excepcional, notadamente nos casos em que existiam indícios de dolo, fraude ou simulação. A partir de sua publicação, os procedimentos ali previstos, conforme expressa disposição, deverão (e, pois, de forma peremptória) ser realizados no prazo máximo de 6 (seis) meses contados da data da inclusão do débito na novel sistemática, devendo inclusive ser verificada a aplicação das mesmas medidas aos sócios que responderem solidariamente pela dívida.

Assim, na contramão da tendência mundial de criação de relações cooperativas e de confiança entre Fisco e contribuintes, as autoridades fiscais brasileiras optam pelo caminho da conflituosidade, indicando que medidas até então excepcionais (e muitas vezes inaplicáveis aos casos concretos) devem ser cada vez mais comuns, como se o enorme passivo tributário brasileiro fosse ocasionado única e exclusivamente por devedores contumazes, que buscam postergar o pagamento de dívidas líquidas e certas.

O título da defesa pública realizada pelas autoridades fiscais (“Interpretações equivocadas sobre a Portaria 1.265/15 ajudam apenas o mau pagador de tributos”) e disponível no sítio eletrônico da RFB, bem como outras medidas de caráter semelhante recentemente adotadas (como a previsão de possibilidade de protesto da Dívida Ativa da União ou a listagem de maiores devedores de forma pública, ainda que parte significativa dos débitos ali apontados esteja com exigibilidade suspensa, garantidos e/ou já sejam objeto de parcelamento), indicam que as autoridades fiscais brasileiras seguem atuando sob o vetusto “paradigma do crime”[2], segundo o qual os contribuintes são potenciais fraudadores e as estratégias utilizadas para aumentar a arrecadação voltam-se, exclusivamente, para a maximização de instrumentos de detecção e punição.

Olvidam-se, neste particular, que os estudos mais recentes sobre a atuação das Administrações Tributárias, em todo o mundo, demonstram que ações voltadas a estimular a arrecadação com eficiência, mediante o estabelecimento de relação de cooperação e confiança com os contribuintes, tendem a atingir de forma mais adequada e legítima os objetivos buscados, colaborando para o desenvolvimento do país a médio e longo prazo[3]. Pretensões meramente arrecadatórias de curto prazo[4], com utilização de instrumentos coativos que certamente devem ampliar os conflitos já existentes, inclusive com a imposição de restrições à atividade econômica e empresarial não são, pois, o melhor caminho a ser trilhado, ainda mais no atual momento econômico e político do nosso país.

Some-se a isso, ainda, a extrema complexidade e ineficiência do nosso sistema tributário, impossibilitando que qualquer empresa no país possa afirmar, com total tranquilidade, que não possui pendência ou potencial passivo tributário. Portanto, a exigência de supostas dívidas tributárias na esfera administrativa e/ou judicial, diferentemente do que quer indicar a RFB, não significa que estamos tratando, apenas, de “maus pagadores”. Em muitos casos, as dívidas tributárias constituídas são indevidas, ainda que tal reconhecimento possa levar anos (mais uma mazela do nosso sistema, diga-se), postergando em igual medida o seu efetivo cancelamento.

Por outro lado, não se pode deixar de registrar que a indicação de adoção obrigatória de providências/procedimentos voltados ao constrangimento para o pagamento de tributos – aplicando-se de uma só vez todos os procedimentos coercitivos previstos no ordenamento (ainda que eventualmente inaplicáveis ao caso concreto) – e a imposição de obstáculos empresariais, com o claro e expresso intuito de aumentar a arrecadação de tributos, tornam a legalidade/constitucionalidade da Portaria RFB nº 1.265/15, total ou parcialmente, questionável.

A título exemplificativo, vale mencionar que algumas das extremas medidas previstas na Portaria RFB nº 1.265/15 (como a previsão de comunicação às respectivas Agências Reguladoras para que seja revogada a autorização para o exercício da atividade) tem nítido caráter de sanção política, ou seja, restrições ou proibições impostas aos contribuintes como forma oblíqua de forçá-los ao recolhimento dos seus débitos tributários, representando instrumentos de coação que buscam induzir indiretamente os contribuintes, mediante interdição ou grave restrição ao exercício da atividade empresarial, econômica ou profissional, ao recolhimento de tributo que o Poder Público julga devido.

Embora severamente repudiadas pelos nossos Tribunais, por flagrantemente inconstitucionais, as sanções políticas – como a análise da Portaria RFB nº 1.265/15 pode facilmente comprovar – multiplicam-se em nosso sistema tributário, que impõem uma série de “restrições não-razoáveis ou desproporcionais ao exercício de atividade econômica ou empresarial lícita, utilizadas como forma de indução ou coação ao pagamento de tributos”[5].

No entanto, o Supremo Tribunal Federal já firmou entendimento no sentido de que, dispondo as autoridades públicas de procedimento adequado e instituído em lei para a execução de seus créditos tributários, não lhes é autorizado efetivar medidas restritivas à liberdade dos contribuintes para alcançar este objetivo, especialmente a imposição de providências coativas que dificultem, restrinjam ou impeçam a sua livre atividade econômica e empresarial[6]. Algumas das medidas ora comentadas são, portanto, claramente inconstitucionais.

Ademais, vale acrescentar que se algumas das medidas indicadas na Portaria RFB nº 1.265/15 podem, em alguma medida, encontrar amparo na legislação anterior, em outras as suas disposições inovaram ou ampliaram penalidades aos contribuintes que são –a par das justificativas apresentadas pela RFB – igualmente questionáveis.

Nessa linha, mencione-se, entre outros dispositivos, a previsão de exclusão dos contribuintes do Programa de Recuperação Fiscal (Refis), do Parcelamento Especial (PAES) ou do Parcelamento Excepcional (Paex), com exigibilidade imediata da totalidade do crédito confessado e ainda não pago, restabelecendo-se, em relação ao montante não pago, os acréscimos legais na forma da legislação aplicável à época da ocorrência dos respectivos fatos geradores.

A pretensa legalidade destas previsões, segundo entendimento da RFB, estaria justificada pela legislação que trata destes programas (respectivamente, Lei nº 9.964/00[7], Lei nº 10.684/03[8] e Medida Provisória nº 303/06[9]), ao preverem, com algumas variações de redação, a necessidade de regularidade fiscal.

Convenientemente, no entanto, as autoridades fiscais excluíram de sua justificativa – e igualmente da própria Portaria RFB nº 1.265/15 — trechos da legislação que citam a necessidade de inadimplência por determinados meses consecutivos ou alternados, a justificar a exclusão dos programas e outras exigências legais (como, por exemplo, ato do Comitê Gestor em alguns casos), para que eventual exclusão possa ser ultimada. Ainda, não se pode perder de vista que a legislação que trata destes programas especiais refere-se, exclusivamente, às hipóteses de inadimplência, situação não configurada, por exemplo, quando determinado débito tributário está sendo discutido administrativamente e, pois, com sua exigibilidade suspensa.

Em nenhum momento, pois, a legislação de regência prevê a exclusão dos parcelamentos nas amplas e irrestritas situações abrangidas pela Portaria RFB nº 1.265/15. Portanto, qualquer exclusão perpetrada pela RFB, sem que se verifiquem as hipóteses legalmente previstas e/ou adoção dos procedimentos impostos pela legislação em relação a cada um dos programas de parcelamento antes citados, poderá ter a sua legalidade questionada.

Seja como for, e a par da discussão sobre as disposições da Portaria RFB nº 1.265/15 que encontram embasamento legal ou, diferentemente, extrapolam os limites da lei, o caminho que vem sendo adotado pelas autoridades fiscais brasileiras no intuito de colaborar com o resultado fiscal tão combalido no dias atuais, buscando o confronto e a adoção de providências coativas que dificultam sobremaneira a livre atividade econômica e empresarial, acaba por atingir resultado diametralmente oposto, fragilizando o sistema e penalizando contribuintes que, lembre-se, serão aqueles que, ao final do dia, colaborarão com os tributos necessários para o avanço do país, sempre e quando possam desempenhar regularmente as suas atividades.

Enfim, ao invés de atuar de forma conflituosa, repetir previsões já existentes em algumas situações, criar ilegalmente exigências não previstas em lei e buscar caracterizar todos os contribuintes como “maus pagadores”, utilizando todos os procedimentos ao seu alcance para buscar resultados fiscais imediatos a qualquer custo (que, repita-se, a médio e longo prazo tendem a culminar com resultados negativos e indesejáveis para o desenvolvimento do país), as autoridades fiscais poderiam preocupar-se em propor soluções que busquem construir relacionamento de cooperação e confiança com os contribuintes, identificando-os como indivíduos que necessitam de serviços rápidos, eficientes e desburocratizados para que possam desenvolver suas atividades, contribuir com os tributos que daí advenham e, sendo o caso, saldar eventuais dívidas que sejam efetivamente devidas.

Medidas, essas sim, alinhadas com as políticas governamentais propaladas aos investidores e, curiosamente, raríssimas.



[2] O que, aliás, contraria em sua essência recentes medidas de abertura, cooperação e diálogo adotadas pela RFB, como a consulta pública sobre as minutas de Instruções Normativas editadas para regulamentar disposições da legislação de regência (Portaria RFB nº 35/15). A inciativa tem o intuito de possibilitar a apresentação de sugestões visando o aperfeiçoamento destes instrumentos antes da sua edição.

[3] Estudos de extrema relevância a esse respeito tem sido desenvolvidos pelo Núcleo de Estudos Fiscais (NEF) da Escola de Direito da FGV, tais como: “Receita Federal do Brasil: Desafios para a Realização de um Projeto de Cooperação Fiscal (Aprendendo com a Experiência Nacional e Internacional)” (2011); e “Transparência e Controle Social da Administração Tributária: Pensando Caminhos para uma Reestruturação do Relacionamento entre Administração Tributária e Contribuintes” (2012). Tratam-se de detalhados estudos sobre novas formas de cooperação fiscal e controle social da Administração Tributária, de modo a pensar estratégias para gerar mais transparência e legitimidade na atuação da Receita Federal do Brasil.

Para maiores detalhes: PACHECO, Mariana Pimentel Fischer. “Receita Federal do Brasil: Desafios para a realização de um projeto de cooperação fiscal – aprendendo com a experiência nacional e internacional. Fiscosoft, set/2011. Disponível em: http://www.fiscosoft.com.br/. Acesso em 16/10/2015.

[4] Como brilhantemente observado em outra ocasião, já desmistificamos a ideia de que o interesse público é o interesse fazendário. O interesse público é o interesse de cada um de nós. O conjunto dos interesses de todos nós perfaz o interesse público. Às vezes, o interesse da Fazenda é contra o interesse público e contra o interesse de todos nós” (trecho do voto do Min. Luiz Fux no REsp 382.736/SC/STJ).

[5] Trecho do voto do Ministro Joaquim Barbosa na ADI nº 173-6.

[6] O Supremo Tribunal Federal sumulou o entendimento de que é vedado ao Poder Público interditar o estabelecimento do contribuinte para cobrança de tributos (Súmula nº. 70). De forma semelhante, também editou a Súmula nº. 323, em que definiu que a apreensão de mercadorias para compelir o seu proprietário ao pagamento de tributos devidos é inadmissível. Ademais, consolidou posição no sentido de ser defeso às autoridades públicas proibir o contribuinte inadimplente de adquirir estampilhas, despachar mercadorias ou exercer suas atividades profissionais (Súmula nº 547). Tal posicionamento é ainda observado em diversos outros precedentes mais recentes, tais como: RE 413.782, Rel. Min. Marco Aurélio; AI 798.210 – AgR, Rel. Min.  Gilmar Mendes; RE 550.769, Rel. Min. Joaquim Barbosa; RE 195.621/GO, Rel. Min. Marco Aurélio; RE 374.981/RS; RE 914045/MG.

[7] Lei nº 9.964/00:

“Art. 3 o A opção pelo Refis sujeita a pessoa jurídica a: (…) VI – pagamento regular das parcelas do débito consolidado, bem assim dos tributos e das contribuições com vencimento posterior a 29 de fevereiro de 2000.

…………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………

Art. 5 o A pessoa jurídica optante pelo Refis será dele excluída nas seguintes hipóteses, mediante ato do Comitê Gestor:

II – inadimplência, por três meses consecutivos ou seis meses alternados, o que primeiro ocorrer, relativamente a qualquer dos tributos e das contribuições abrangidos pelo Refis, inclusive os com vencimento após 29 de fevereiro de 2000;”

[8] Lei nº 10.684/03:

“Art. 7o O sujeito passivo será excluído dos parcelamentos a que se refere esta Lei na hipótese de inadimplência, por três meses consecutivos ou seis meses alternados, o que primeiro ocorrer, relativamente a qualquer dos tributos e das contribuições referidos nos arts. 1o e 5o, inclusive os com vencimento após 28 de fevereiro de 2003.”

[9] Medida Provisória 303/06:

“Art. 7o O parcelamento de que trata o art. 1o desta Medida Provisória será rescindido quando:

I – verificada a inadimplência do sujeito passivo por 2 (dois) meses consecutivos ou alternados, relativamente às prestações mensais ou a quaisquer dos impostos, contribuições ou exações de competência dos órgãos referidos no caput do art. 3o, inclusive os com vencimento posterior a 28 de fevereiro de 2003;”

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