Planejamento Tributário
por Ricardo Lobo Torres
Professor Titular de Direito Financeiro na UERJ (aposentado)
Procurador do Estado do Rio de Janeiro (aposentado)
No Brasil, durante muitos anos, se desconsiderou o estudo do planejamento abusivo ou da elisão abusiva, divididas que estavam a jurisprudência e a doutrina entre duas posições básicas e radicais, ambas de fonte positivista: a) o positivismo formalista e civilista, que defendia o amplo espectro da elisão como instrumento lícito de planejamento das empresas, coincidindo a forma jurídica com o substrato econômico dos negócios tributários; b) o positivismo historicista ou economicista, que, ao contrário, rejeitava qualquer prevalência da forma sobre o conteúdo ou a coincidência entre ambas.
Só a partir da década de 1970, principalmente na Alemanha e nos Estados Unidos, é que se conseguiu pinçar com mais clareza e melhor metodologia a categoria da elisão abusiva (= planejamento abusivo) ou abusive tax avoidance. A elisão abusiva passa a significar o conjunto de instrumentos que contrastam com a boa-fé e levam ao abuso da forma jurídica mediante figuras que apenas no seu aspecto externo ou aparente podem promover a aproximação entre o espírito e a letra da lei. A elisão abusiva vale-se do abuso do direito em toda a sua extensão e dá lugar ao conjunto dos ilícitos atípicos (fraude à lei, prevalência da forma sobre a substância, falta de propósito mercantil, etc.).
Não se confundem, pois, como veremos adiante, o planejamento legítimo (= elisão lícita) com o planejamento abusivo (= elisão abusiva). Esta última é a que mais de perto nos interessa, por constituir categoria pouco estudada no Brasil, muitas vezes maltratada e constantemente manipulada pela doutrina e pela jurisprudência.
Uma das questões mais difíceis da dogmática do direito tributário é a dos limites do planejamento fiscal legitimo e, conseguintemente, das distinções entre simulação (= evasão ilícita) e elisão abusiva.
No Brasil o problema é particularmente grave porque inexistia legislação sobre o assunto e prevalecia a ideia, eminentemente positivista, de que qualquer elisão seria lícita, porque coincidiria sempre com a liberdade de iniciativa e se apoiaria nos conceitos do direito civil.[1] Só com a edição da Lei Complementar 104, de 2001, que introduziu no Código Tributário Nacional os artigos 43, II e 116, parágrafo único, é que se iniciou o processo de internalização de normas jurídicas que nas últimas décadas do século XX haviam sido introduzidas nos países europeus e na América do Norte. A globalização, a toda evidência, produziu a necessidade de alinhamento do Brasil com o que ocorria nas relações econômicas internacionais.
Houve, entretanto, o desencontro entre as novas regras brasileiras, que até hoje são contestadas, e os aportes do direito tributário comparado. A dificuldade surgiu assim no plano da doutrina que no da jurisprudência e da administração fiscal.
Importante considerar, neste passo, que a confusão entre elisão e simulação (= evasão) vem sendo cometida também pela doutrina brasileira, com especial reflexo sobre os trabalhos da Receita Federal, assim no seu papel de órgão fazendário responsável pela formulação da política jurídico-tributária do País, como na sua atuação prática na fiscalização das rendas.
Desde a publicação da Lei Complementar 104, de 2001, surgiu a dúvida por parte da doutrina brasileira: tratava-se de regra antielisiva ou antievasiva (antissimulação)?
Coube a Alberto Xavier lançar, de modo mais articulado, a tese de que se cuidava de norma antievasiva: “o novo parágrafo único do art. 116 do CTN estabelece que a autoridade administrativa “poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos
viciados por simulação”.[2] Além de afirmar que a dissimulação significa simulação relativa, Xavier lança mão do argumento de que, se interpretada como norma antielisiva, a nova regra seria inconstitucional, pois conflitaria com os princípios da legalidade estrita e da tipicidade fechada, afrontaria a proibição de analogia estabelecida no art. 108, § 1o, do CTN e recorreria às teorias da fraude à lei e do abuso do direito, inaplicáveis no direito tributário.[3]
A outra corrente de ideias, à qual nos filiamos,[4] defende a constitucionalidade da LC 104/01 e a possibilidade e a conveniência das normas antielisivas.[5]
Podemos alinhar os seguintes argumentos gerais no sentido de que a Lei Complementar 104 de 2001 trouxe uma verdadeira norma antielisiva, influenciada pelo modelo francês, e não uma norma antievasiva ou antissimulação:
- não tem peso argumentativo concluir-se que o Congresso Nacional, legitimamente eleito, teria se reunido para votar lei inócua, que repetiria a proibição de simulação já constante do CTN (arts. 149, VII e 150, § 4o);
- não faz sentido admitir-se que a lei inócua foi votada por engano ou por ignorância, já que a Mensagem que encaminhou o projeto se referia expressamente à necessidade de introdução da regra antielisiva no ordenamento jurídico brasileiro;
- não pode haver nenhuma incompatibilidade da norma antielisiva com o Estado de Direito, senão até que se tornou necessidade premente nas principais nações democráticas na década de 1990;
- em nenhum país democrático levantou a doutrina a tese da inconstitucionalidade, e muito menos a declararam os Tribunais Superiores;
- quando muito se encontra a afirmativa de que certas nações não estão “maduras” para a prática das normas antielisivas;[6]
- as teses da legalidade “estrita” e da tipicidade “fechada” têm conotação fortemente ideológica e se filiam ao positivismo formalista e conceptualista;[7]
- as normas antielisivas equilibram a legalidade com a capacidade contributiva;[8]
- as normas antielisivas no direito comparado têm fundamento no combate à fraude à lei (Alemanha, Espanha, Portugal), ao abuso de direito (França) ou ao primado da forma sobre a substância (Estados Unidos, Inglaterra, Canadá, etc.), e não há motivo para que tais fundamentos não possam ser invocados no Brasil.
De notar que as normas antielisivas se espalham rapidamente, a partir da década de 1990, por todos os países civilizados e vão entrando no direito tributário sob diferentes configurações, a depender do ambiente cultural dos países que as adotam. O Prof. Frederik Zimmer, Relator Geral do Tema Forma e Substância no Direito Tributário, no Congresso da IFA realizado em Oslo em 2002, depois de ressalvar que todos os países possuem normas específicas antielisivas (specific tax avoidance rule), separa-os em três grandes grupos no que concerne às normas gerais: a) não possuem nem regras expressas na lei (statute-based) nem medidas gerais baseadas nas cortes (court-based general tax avoidance): Colômbia, Japão, México; b) muitos países criaram regras gerais antielisivas por lei (general anti avoidance rules – GAAR): Argentina, Austrália, Bélgica, Canadá, Finlândia, França, Alemanha, Hungria, Itália, Korea, Luxemburgo, Nova Zelândia, Espanha e Suécia; c) alguns países criaram regras jurisprudenciais antielisivas (court-based general tax avoidance rules): Dinamarca, França, Índia, os Países Baixos, Noruega, Suécia, Estados Unidos e Reino Unido.[9]
O objetivo deste artigo, portanto, é resgatar e aprofundar o estudo sobre a elisão abusiva, categoria que ficou perdida nas discussões travadas entre os positivistas conceptualistas e os adeptos da só consideração econômica do fato gerador no Brasil e em outros países.[10]
[1] Cf. SAMPAIO DÓRIA, Antonio Roberto. Elisão e evasão fiscal. São Paulo: José Bushatsky, 1977, p. 67.
[2] XAVIER, Alberto. Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva. São Paulo: Dialética, 2001, p. 68. No mesmo sentido se manifestaram os seguintes autores: MARTINS, Ives Gandra da Silva. Norma antielisão. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). O planejamento tributário e a Lei Complementar 104. São Paulo: Dialética, 2001, p. 117-128; TROIANELLI, Gabriel Lacerda. O parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional como limitação do poder na administração. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). O planejamento tributário e a Lei Complementar 104. São Paulo: Dialética, 2001, p. 85-102; DERZI, Misabel Abreu Machado. A desconsideração dos atos e negócios jurídicos dissimulatórios, segundo a lei complementar 104, de 10 de Janeiro de 2001. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). O planejamento tributário e a Lei Complementar 104. São Paulo: Dialética, 2001, p. 205-232; TÔRRES, Heleno Taveira. Direito tributário e direito privado. Autonomia privada, simulação, elusão tributária. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2003, p. 260.
[3] ALBERTO XAVIER, Tipicidade…, cit., p. 19, 98, 102 e 138. Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Planejamento tributário: limites à norma antiabuso. In: Direito Tributário Atual 24: 348, 2010: “Pensamos ser impróprio cogitar de abuso de direito em caso de planejamento tributário”.
[4] Cf. TORRES, Ricardo Lobo. A chamada “interpretação econômica do direito tributário”, a Lei Complementar 104 e os limites atuais do planejamento tributário. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). O planejamento tributário e a Lei Complementar 104. São Paulo: Dialética, 2001, p. 233-244; __. Normas gerais antielisivas. In: __. (Coord.). Temas de interpretação do direito tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 331-368; __. Normas de interpretação e integração do direito tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 243 e seguintes.
[5] Cf. GRECO, Marco Aurélio. Constitucionalidade do parágrafo único do artigo 116 do CTN. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). O planejamento tributário e a Lei Complementar 104. São Paulo: Dialética, 2001, p. 181-204; __. Planejamento tributário. São Paulo: Dialética, 2004; HUCK, Hermes Marcelo. Evasão e elisão. Rotas nacionais e internacionais do planejamento tributário. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 141 e seguintes; SEIXAS FILHO, Aurélio Pitanga. A interpretação econômica no direito tributário, a Lei Complementar no 104/2001 e os limites do planejamento tributário. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). O planejamento tributário e a Lei Complementar 104. São Paulo: Dialética, 2001, p. 7-19.
[6] RUSSO, Pasquale. Brevi note in tema di disposizioni antielusive. Rassegna Tributaria 1: 68: “A primeira reflexão a fazer é que o ordenamento italiano, pela tradição e tendo em vista a situação concreta da Administração financeira, não está ainda maduro (non è ancora maturo) para a introdução de uma General–Klause antielisiva do tipo das vigentes em outros países (Alemanha, Áustria, Argentina)”.
[7] Cf. TORRES, Ricardo Lobo. Legalidade tributária e riscos sociais. Revista Dialética de Direito Tributário 59: 95-112, 2000.
[8] Cf. MARCO AURÉLIO GRECO, Constitucionalidade do parágrafo único do artigo 116 do CTN…, cit., p. 188: “… o parágrafo único do artigo 116 prestigia a legalidade e a tipicidade, pois estas cercam a qualificação dos fatos da vida para dar-lhes a natureza de fato gerador do tributo”.
[9] Form and Substance in Tax Law. General Report. Cahiers de Droit Fiscal International.Rotterdam: IFA, 2002, v. 87-a, p. 37.
[10] SALDANHA SANCHES, J. L. Justiça fiscal. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2010, p. 54: “É neste contexto que devemos situar as duas grandes tarefas e questões problemáticas para o Direito Fiscal: a fraude fiscal e o planejamento fiscal abusivo”.