O STF e a modulação temporal dos efeitos de suas decisões em matéria tributária

Por Fábio Martins de Andrade
Advogado
Mestre (UCAM) e Doutor (UERJ) em Direito

 

Considerações Preliminares

            A Lei nº 9.868/99 dispõe acerca do processo e julgamento da ADI e da ADC perante o STF. Dentre os dispositivos que regulamentam essas ações diretas que integram o sistema de controle jurisdicional concentrado de constitucionalidade das leis, cabe destacar o art. 27, que cuida da modulação dos efeitos das decisões judiciais.

            Eis a sua dicção: “Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”.

            As diferentes possibilidades de aplicação da modulação temporal dos efeitos da decisão judicial se ajustam em quatro grupos principais, a saber: a) plenamente retroativo ou ex tunc, que fulmina o ato normativo declarado inconstitucional ab ovo e constitui a regra geral; b) retroativo mitigado ou ex tunc mitigado, ou seja, a decisão produz efeito a partir de algum momento situado entre a edição da lei declarada inconstitucional e a decisão; c) não retroativo ou ex nunc, isto é, vale da decisão pra frente; e d) pro futuro, quando a decisão produz efeitos a partir de algum momento entre o presente (momento da decisão) e algum momento futuro.

Alguns julgados

            O STF já teve oportunidade de analisar a aplicação da modulação temporal dos efeitos de suas decisões em matéria tributárias. Antes mesmo do advento da Lei nº 9.868/99, alguns Ministros da Suprema Corte já se sensibilizaram no sentido de que algumas situações específicas então submetidas ao seu pronunciamento definitivo poderiam carecer de instrumento jurídico capaz de minimizar a rigidez inerente ao juízo sobre a (in)constitucionalidade de certa lei. Isto ocorria, geralmente, com a discussão em torno da aplicação do efeito ex nunc, ou seja, da decisão tomada em diante.[1]

            Além disso, o STF já definiu alguns temas que, pela sua trivialidade, não merecem enquadramento na hipótese excepcional prevista no art. 27. Exemplo disso ocorre tanto em relação à inconstitucionalidade da taxa de coleta de lixo e limpeza pública, como também da taxa de iluminação pública, quando a Corte negou a possibilidade de modulação temporal dos efeitos de sua decisão, tanto pela inviabilidade da cobrança no primeiro caso como também pelo reconhecimento da não recepção de lei municipal pré-constitucional. Ademais, cabe aduzir neste elenco a ilegitimidade da cobrança do IPTU com alíquotas progressivas, que também teve o pleito de modulação sistematicamente negado.[2]

Principais precedentes

            Em matéria tributária, há quatro casos principais que já foram objeto de análise pelo Plenário do STF sobre a possível modulação temporal. Em apenas um deles foi efetivamente aplicada a restrição dos efeitos de sua decisão.

            O primeiro caso relaciona-se ao julgamento que se discutiu o direito ao crédito de IPI decorrente da aquisição de matéria-prima cuja entrada seria não tributada ou sobre a qual incidiria a alíquota zero. Decidida a questão de fundo no sentido favorável ao Fisco por apertada maioria, restou à Corte o intenso debate em torno da possível aplicação da modulação temporal dos efeitos dessa decisão. Neste sentido, depois de discutir alguns aspectos sobre a questão de fundo, o Ministro Ricardo Lewandowski suscitou questão de ordem e decidiu no sentido de que “convém emprestar-se efeitos prospectivos às decisões em tela, sob pena de impor-se pesados ônus aos contribuintes que se fiaram na tendência jurisprudencial indicada nas decisões anteriores desta Corte sobre o tema, com todas as conseqüências negativas que isso acarretará nos planos econômicos e social”.[3]

   O seu voto, integralmente favorável à modulação temporal dos efeitos da decisão (na modalidade ex nunc), restou isolado no julgamento da referida questão de ordem, que foi rejeitada pelos seus pares. O fundamento girou em torno dos seguintes argumentos principais: o caso não versou sobre a declaração de inconstitucionalidade de lei (e sim constitucionalidade, cuja hipótese de modulação não é prevista em lei); e não houve “virada jurisprudencial” (isto é, “jurisprudência” e muito menos “pacífica” a ser contrariada com a decisão) no âmbito da Suprema Corte.

O segundo caso refere-se à declaração de inconstitucionalidade dos arts. 45 e 46 da Lei nº 8.212/91 e do parágrafo único do art. 5º do Decreto-lei nº 1.569/77. No mérito, foi reconhecida a reserva à lei complementar para o tratamento da prescrição e da decadência. O caso resultou na edição da Súmula Vinculante nº 08. No tocante à modulação, o Relator, Ministro Gilmar Mendes, lançou em fundamento “relâmpago” o efeito ex tunc apenas e tão somente quanto às eventuais repetições de indébito ajuizadas até a data do julgamento.[4]

De acordo com essa orientação, os contribuintes que efetivamente recolheram as contribuições previdenciárias e não discutiram, seja na esfera administrativa, seja na judicial, deixariam de pagar dali pra frente. O Fisco, por sua vez, se não tivesse adotado as medidas cabíveis até o dia do julgamento, não poderia mais se beneficiar daquele prazo de dez anos para fazê-lo. Em qualquer situação, incidiriam os efeitos ex nunc da decisão, com a produção dos seus efeitos dali pra frente no concernente à prescrição e à decadência das contribuições previdenciárias (como espécies tributárias). Por outro lado, tal modulação temporal não abrangeria os processos administrativos e judiciais já em curso no dia do julgamento, nos termos do voto do Relator. Nesta hipótese, a decisão teria o tradicional efeito retroativo pleno (ex tunc), abarcando o período objeto do litígio em cada caso.

O terceiro caso diz respeito ao reconhecimento da revogação pelo art. 56 da Lei nº 9.430/96 da isenção da Cofins anteriormente concedida às sociedades civis de prestação de serviços de profissão legalmente regulamentada, consoante dispunha o inciso II do art. 6º da Lei Complementar nº 70/91, ao fundamento jurídico de que inexiste no cotejo de tais dispositivos qualquer relação hierárquica, o que somente seria possível em razão de eventual reserva material específica.

Neste caso concreto, cabe destacar a decisão do Ministro Celso de Mello que fundamentou o seu voto a partir do postulado da segurança jurídica e do princípio da confiança do cidadão. Ao final de sua decisão, esclareceu que o próprio Tribunal sistematicamente decidia que a matéria era de índole infraconstitucional, confirmando, por conseguinte, o entendimento consolidado na Súmula nº 276 do Superior Tribunal de Justiça. Esse voto motivou a mudança na orientação dos votos dos Ministros Ricardo Lewandowski e Carlos Britto.[5]

Cabe registrar que, até esse ponto, sob um ponto de vista doutrinário, é possível afirmar que o STF aplicou a modulação dos efeitos (no segundo caso anteriormente destacado) e deixou de aplicá-la (no primeiro e no terceiro caso antes assinalado) de modo equivocado. Isso ocorreu porque, subjacente ao debate jurídico que se travou em cada uma daquelas sessões de julgamento, prevaleceu o argumento pragmático ou consequencialista de cunho econômico (ad terrorem) sobre o valor do “rombo” que seria causado no caixa do governo e, consequentemente, nas políticas de saúde e assistência social.[6]

            O quarto e último caso se refere à declaração de inconstitucionalidade do Funrural sobre a receita de comercialização de produtos rurais. Concluído o julgamento a respeito da questão de fundo, o Relator, Ministro Marco Aurélio, levou ao conhecimento do Pleno o pleito formulado pela Fazenda Nacional, no sentido de aplicar ao caso a modulação temporal (na modalidade ex nunc).[7]

            O Ministro Marco Aurélio decidiu que essa técnica é conflitante com o regime rígido próprio de nossa Constituição da República, até mesmo em processos de índole objetiva. De fato, a missão a que incumbe o STF é guardá-la, no sentido de dar-lhe maior eficácia e máxima efetividade. Em razão disso, as decisões da Suprema Corte a respeito do juízo de constitucionalidade, explicou o Ministro, possuem o caráter claramente definido de orientações pedagógicas, que são endereçadas aos demais ramos políticos do Poder e à sociedade civil. O entendimento contrário implicaria no reconhecimento de que o STF poderia mitigar a eficácia das normas constitucionais em sua elevada missão institucional de guardá-las, com a prevalência da lei sobre a Constituição.

            Depois do debate que se instaurou entre os Ministros, todos manifestando a nítida preocupação com o (ab)uso ou banalização em torno da modulação em matéria tributária e, por conseguinte, as consequências jurídicas danosas que daí adviria, o STF decidiu no sentido de inaplicá-la à situação específica, vencida apenas a Ministra Ellen Gracie.

            Com essa decisão, o STF retomou o caminho para a correção de rumo em relação à trajetória (incipiente) da sua jurisprudência acerca da modulação temporal dos efeitos de suas decisões em matéria tributária, reservada para situações excepcionais, como a “virada jurisprudencial”, em respeito à segurança jurídica.

Conclusões e Perspectivas

            Tratando-se do juízo acerca da (in)constitucionalidade de dispositivo legal que contemple relevante questão constitucional-tributária, a orientação do STF tem sinalizado no sentido da inaplicação da modulação como regra geral, tanto no modelo concentrado de controle de constitucionalidade das leis e atos normativos como também no difuso.

            A trajetória dos principais precedentes mencionados registra desejável cautela e parcimônia pela Suprema Corte na aplicação da modulação dos efeitos de suas decisões, que efetivamente deve ser reservada para situações excepcionais de tolerância em prol do maior cumprimento da vontade constitucional.

            Uma vez retomada a aplicação da regra geral da retroatividade plena consagrada na sua (incipiente) jurisprudência acerca da modulação temporal dos efeitos de suas decisões em matéria tributária, incumbe ao STF examinar as questões jurídicas que lhe são postas com desassombro e sem se deixar (im)pressionar por quaisquer argumentos pragmáticos ou conseqüencialistas de cunho econômico. Com efeito, o argumento ad terrorem crescentemente suscitado pelos órgãos de arrecadação e representação fazendárias não se prestam – e tampouco devem se prestar – a fundamentar exclusiva ou predominantemente qualquer pronunciamento definitivo da Suprema Corte, sob pena de provável subversão e subordinação da proteção dos direitos dos contribuintes estabelecidos em elevados ditames constitucionais às necessidades transitórias e meramente arrecadatórias do Fisco.

            No corrente ano aguarda-se o julgamento da ADC 18, quando o STF decidirá sobre a inconstitucionalidade da inclusão da parcela do ICMS na base de cálculo da COFINS e do PIS. Consta expressamente na sua petição inicial o pedido de modulação temporal dos efeitos, caso a decisão venha a se confirmar no sentido favorável aos contribuintes. Cabe lembrar que no julgamento do RE 240.785, que versou sobre o mesmo tema, foram proferidos seis votos favoráveis aos contribuintes, contra apenas um contrário. A confirmar-se a tendência virtualmente favorável aos contribuintes, caberá ao STF examinar a questão referente à modulação temporal ou não dos efeitos de sua decisão. Nesse caso, sobram razões jurídicas (e até mesmo de outras espécies) para que o STF mantenha a sua linha de decisão pela inaplicação da modulação dos efeitos de sua decisão.



[1] Cf. STF – Pleno, ADI 513, Rel. Min. Célio Borja, j. 14.06.1991, DJU 30.10.1992; STF – Pleno, ADI 1.102, Rel. Min. Maurício Corrêa, j. 05.10.1995, DJU 17.11.1995.

[2] A título meramente ilustrativo: STF – 2ª Turma, RE 273.074-AgR, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 18.02.2008, DJE 29.02.2008; STF – 2ª Turma, AI 634.030-AgR, Rel. Min. Eros Grau, j. 04.09.2007, DJE 27.09.2007; STF – Pleno, AI 472.768-AgR., Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 21.11.2006, DJU 16.02.2007, dentre tantos outros.

[3] STF – Pleno, RE 353.657, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 25.06.2007, DJE 07.03.2008. No mesmo sentido, julgado conjuntamente, confira: STF – Pleno, RE 370.682, Rel. p/ ac. Min. Gilmar Mendes, j. 25.06.2007, DJe 19.12.2007.

[4] STF – Pleno, RE 559.943, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 12.06.2008, DJE 25.09.2008 – com repercussão geral reconhecida; STF – Pleno, RREE 556.664 e 559.882, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 12.06.2008, DJE 14.11.2008; STF – Pleno, RE 560.626, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 12.06.2008, DJE 04.12.2008

[5]STF – Pleno, RE 377.457, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 17.09.2008, DJe 18.12.2008; STF – Pleno, RE 381.964, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 17.09.2008, DJe 13.03.2009.

[6]Para aprofundar: Andrade, Fábio Martins de. Modulação em Matéria Tributária: O argumento pragmático ou consequencialista de cunho econômico e as decisões do STF. São Paulo: Quartier Latin, 2011, 494 p.

[7] STF – Pleno, RE 363.852, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 03.02.2010, DJE 23.04.2010.

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