O Papel dos Tribunais Administrativos no Aperfeiçoamento dos Lançamentos de Créditos Tributários e o Caráter Vinculante de suas Decisões para a Fazenda Pública

por  Frederico Pereira Rodrigues da Cunha
Advogado do Escritório Gaia, Silva, Gaede & Associados em Curitiba
Pós-Graduado em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV)

 

 

INTRODUÇÃO

 

 A atuação do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) e de outros tribunais administrativos estaduais e municipais, últimas instâncias administrativas para disputas com o fisco, tem despertado grande interesse por parte dos contribuintes, que não abrem mão de se socorrer da via do processo administrativo para resolver seus litígios. Atentos a este movimento, os tributaristas pátrios têm promovido uma série de eventos por todo o Brasil com a finalidade de discutir as peculiaridades da atuação dos tribunais administrativos e melhor orientar os contribuintes nas defesas de seus direitos, a exemplo do XXXVI Simpósio Nacional de Direito Tributário ocorrido em novembro de 2012, coordenado pelo eminente tributarista Ives Gandra da Silva Martins.

 

Dentre os questionamos que vêm sendo debatidos, podemos destacar os seguintes: compete aos tribunais administrativos o aperfeiçoamento dos lançamentos dos créditos tributários?; as decisões por eles proferidas vinculam os demais órgãos da Fazenda Pública?

 

Pretendemos aqui, em apartada síntese, responder a estas questões.

 

O PAPEL DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS NO APERFEIÇOAMENTO DOS LANÇAMENTOS DE CRÉDITOS TRIBUTÁRIOS

 

As fiscalizações municipais, estaduais e federal têm a função constitucional de aferir o correto recolhimento dos tributos e, caso seja constatada ausência ou recolhimento a menor dos tributos, compete à autoridade administrativa realizar o lançamento, entendido como o ato de competência privativa apto a constituir o crédito tributário e “tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível” (art. 142 do Código Tributário Nacional).

Após a realização do lançamento e a apresentação de defesa administrativa pelo contribuinte, instaura-se o contencioso administrativo fiscal, sendo que os recursos administrativos serão julgados, usualmente, por órgãos julgadores compostos de membros apenas da Administração e, em momento posterior, serão analisados pelos tribunais administrativos, a exemplo do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), competente para julgamento dos litígios tributários federais.                 

 

A doutrina e a jurisprudência passaram a debater a possibilidade do aperfeiçoamento do lançamento pelos órgãos julgadores, especialmente pelos tribunais administrativos, a fim de verificar quais seriam os limites do poder judicante destes órgãos.

 

A corrente à qual nos filiamos defende a impossibilidade do julgador administrativo ajustar o lançamento em prejuízo ao contribuinte, tendo em vista que tal órgão seria incompetente para alterar a motivação fática ou legal do lançamento.

 

O lançamento, realizado pela autoridade competente, deve cumprir todos os requisitos legais caracterizadores dos fatos gerados tributários, não podendo ser convalidado o lançamento que apresente vícios formais ou materiais, já que os tribunais administrativos não possuem competência para retificar ou alterar as razões, fatos ou fundamentos constantes no lançamento.

 

Segundo José Eduardo Soares de Melo[1], “as decisões podem acarretar os efeitos seguintes: (a) manutenção do lançamento; (b) insubsistência do lançamento; (c) anulação de atos praticados com violação a princípios e normas; (d) conversão do julgamento em diligência para que sejam tomadas específicas providências à instrução processual”, concluindo que “não podem os julgadores apresentar motivação distinta daquela contida na ação fiscal, uma vez que impõem-se o julgamento da legitimidade do lançamento na forma em que fora fundamentado”.  

 

O julgamento dos lançamentos deve se ater aos exatos termos contidos nos autos de infração e/ou nas notificações de lançamento, sob pena de aperfeiçoamento do lançamento por autoridade diversa daquela que possui competência legal para constituir o crédito tributário. Neste sentido, restou revogado o parágrafo único do artigo 15 do Decreto nº 70.235/72 que possibilitava o agravamento da exigência fiscal decorrente de decisão de órgão julgador administrativo.

 

A função judicante dos tribunais administrativos deve se limitar ao controle da legalidade do ato administrativo do lançamento, podendo manter integralmente (ou parcialmente) o lançamento, reconhecer sua insubsistência ou reconhecer a sua nulidade total ou parcial, sendo vedada a alteração da fundamentação legal ou dos fundamentos fáticos que o embasaram, constantes do termo de verificação fiscal.

 

Ao manter um lançamento por motivos e fundamentos diversos do que fora lançado, o tribunal administrativo estará claramente ofendendo (i) a função exclusiva da autoridade administrativa para realizar o lançamento, (ii) o contraditório e a ampla defesa do contribuinte, e (iii) o duplo grau de jurisdição administrativa. 

 

Neste sentido, o CARF[2] vem decidindo que “de acordo com a teoria dos motivos determinantes, o ato administrativo está forçosamente vinculado aos fatos concretos apurados e aos fundamentos legais que lhe dão suporte. (…)tal alteração de motivação exigiria quando menos a expedição de auto de infração retificador do lançamento anterior, nada obstante a boa praxe exigisse, isso sim, o cancelamento do lançamento anterior e a lavratura de um novo, amparado na nova motivação, com a fundamentação adequada”.

 

Portanto, ao se deparar com lançamento que seria cabível com base em outra fundamentação legal ou fática, deve o lançamento ser cancelado pelos órgãos julgadores administrativos, para que, dentro do prazo decadencial, seja realizado um novo lançamento com base na correta fundamentação aplicável para o caso, sendo flagrantemente ilegal e inconstitucional a alteração do lançamento pelos órgãos de julgamento.

 

DO CARÁTER VINCULANTE DAS DECISÕES DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS PARA A FAZENDA PÚBLICA

 

Outra questão que também vem sendo amplamente debatida na doutrina e nos Tribunais pátrios é a possibilidade de a Fazenda Pública recorrer ao poder judiciário para desconstituir as decisões proferidas pelos Tribunais Administrativos municipais, estaduais e federais, quando favoráveis aos contribuintes.

 

Os tribunais administrativos são órgãos colegiados, possuindo composição paritária entre julgadores representantes do fisco e dos contribuintes, responsáveis por julgar o crédito tributário em âmbito administrativo, sendo órgão componente da própria Administração Pública.

 

No cenário atual, a doutrina e a jurisprudência pátrias majoritárias reconhecem a eficácia preclusiva das decisões terminativas proferidas pelos tribunais administrativos em relação ao fisco, nos casos em que os contribuintes obtém êxito em ver cancelado o crédito tributário.  Entretanto, se contrária aos interesses do contribuinte, este poderá recorrer ao Poder Judiciário para questionar a imposição tributária imputada pela Administração Pública, tendo em vista que compete ao Poder Judiciário o controle da legalidade e constitucionalidade das exigências administrativas.

 

A corrente majoritária que entende pela impossibilidade de discussão judicial pelo fisco da decisão proferida pelos Tribunais Administrativos em prol dos contribuintes se baseia, dentre outros fundamentos, (i) na força vinculante, equivalente à coisa julgada, da decisão proferida pelos tribunais administrativos e (ii) na segurança jurídica oriunda destas decisões proferidas por órgão componente da própria Administração.

 

O Supremo Tribunal Federal[3] já se filiou a tal corrente ao considerar, em julgado histórico, que a decisão proferida pela autoridade fiscal, embora de instância administrativa, tem, em relação ao fisco, força vinculante, equivalente à da coisa julgada, principalmente quando gerou aquela decisão direito subjetivo para o contribuinte.

 

Em sentido contrário, a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional editou a Portaria PGFN nº 820/2004 dispondo sobre as situações em que haveria a possibilidade de submissão das decisões proferidas pelos Tribunais Administrativos Federais à apreciação do Poder Judiciário. A referida Portaria recebeu diversas críticas da doutrina especializada por elencar motivações genéricas, como os casos de “grave lesão ao Fisco” ou “cuja relevância temática recomende a sua apreciação na esfera judicial”, aptas a possibilitar a discussão judicial da decisão administrativa favorável ao contribuinte.    

 

De fato, possibilitar a discussão judicial da decisão proferida pelos tribunais administrativos em prol do contribuinte acarreta insegurança jurídica, esvazia a possibilidade de questionamento do crédito tributário em âmbito administrativo e retira da própria Administração Pública o poder de por fim ao contencioso fiscal, sobrecarregando ainda mais o Poder Judiciário. Além disso, há clara afronta ao disposto nos artigos 42 e 45 do Decreto nº 70.235/1972, que garantem a definitividade das decisões administrativas e determina, inclusive, à autoridade preparadora a exoneração, de ofício, dos gravames decorrentes do litígio em caso de êxito do contribuinte.

 

A definitividade das decisões administrativas também encontra previsão no Código Tributário Nacional que, em seu artigo 156, inciso IX, elenca como causa de extinção do crédito tributário “a decisão administrativa irreformável, assim entendida a definitiva, na órbita administrativa, que não mais possa ser objeto de ação anulatória”.

 

Por fim, também é contraditório o entendimento da corrente que defende a validade da discussão judicial da decisão administrativa favorável ao contribuinte, ao passo que a Administração estará recorrendo ao Judiciário para a modificação de atos proferidos por órgão componente da própria Administração, retirando do contribuinte a segurança da decisão que lhe foi favorável. Por todo o exposto, parece-nos ser mais adequada a corrente que sustenta a existência de efeito vinculativo das decisões proferidas pelos órgãos julgadores administrativos em prol dos contribuintes.

 

SÍNTESE CONCLUSIVA

 

 Como conclusão, podemos afirmar: (i) que os tribunais administrativos não possuem competência para alterar a fundamentação legal e/ou fática dos lançamentos, em respeito ao contraditório e a ampla defesa do contribuinte, a legalidade e ao duplo grau de jurisdição administrativa, sendo função exclusiva e privativa da autoridade administrativa realizar o lançamento, bem como (ii) a existência de efeito vinculante das decisões proferidas pelos órgãos julgadores administrativos em prol dos contribuintes, em homenagem a segurança jurídica, boa-fé, proporcionalidade e razoabilidade, legalidade, dentre outros princípios constitucionais basilares e princípios e normas legais.

 



[1]MELO, José Eduardo Soares de. Questões Controvertidas no processo administrativo fiscal – CARF.  São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, pág. 176.

[2]CARF – 3ª Seção / 3ª Turma da 4ª Câmara / Acórdão nº 3403-00.565 em 29/09/2010.

[3] STF – RE 68253, Relator(a): Min. Barros Monteiro, Primeira Turma, julgado em 02/12/1969, DJ 08-05-1970.

 

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