O julgamento do RE Nº 559.937 e a (im)possibilidade de repetição do indébito tributário

por Flávio Couto Bernardes
Doutor (2006), Mestre (2000) e Bacharel (1994) em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Membro do corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor de Direito Tributário e Financeiro da UFMG. Procurador do Município de Belo Horizonte. Advogado.

por Guilherme Alves Jeangregório Rodrigues
Mestrando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (2012). Advogado.

 

Artigo vinculado ao Projeto de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Direito Público da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

A Constituição da República de 1988, além de seguir a tradição desempenhada pelas outras constituições brasileiras, as quais vinculavam a receita auferida pelas contribuições a determinada despesa pública, afastou qualquer dúvida a respeito de sua natureza jurídica tributária, determinando que se lhes aplicassem as normas gerais em matéria tributária e os princípios da legalidade, da irretroatividade e da anterioridade[1].

Dentre as contribuições previstas no texto constitucional, destacam-se, para a análise do caso em comento, aquelas previstas no art. 149, incidentes sobre a importação de bens e serviços, cujas alíquotas, sendo ad valorem, terão como base de cálculo o chamado valor aduaneiro.

Ao determinar especificamente as hipóteses do critério material da regra-matriz de incidência das contribuições e da respectiva base de cálculo, o legislador constitucional estabeleceu evidente limite ao poder criativo do legislador ordinário, vedando-lhe instituir contribuição que destoasse do modelo adotado pela Constituição.

Partindo-se do permissivo constitucional, a União, por meio da Lei n. 10.865/2004, instituiu a Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público incidente na Importação de Produtos Estrangeiros ou Serviços – PIS/PASEP-Importação e a Contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social devida pelo Importador de Bens Estrangeiros ou Serviços do Exterior – COFINS-Importação.

Consoante o art. 3º, inciso I, da citada lei (dispositivo especial para a análise em comento), o critério material da regra-matriz de incidência das novas contribuições seria “a entrada de bens estrangeiros no território nacional”, fato jurígeno cujo conteúdo semântico se adéqua à hipótese de importação, estabelecida no art. 149, § 2º, incisivo I, da Constituição da República de 1988.

Por outro lado, segundo o art. 7º, inciso I, do mesmo diploma legal, a base de cálculo consistiria na soma do valor aduaneiro, do “Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – ICMS incidente no desembaraço aduaneiro e do valor das próprias contribuições”.

Aqui, vale destacar que, quando da promulgação das Emendas Constitucionais n. 33/2001 e n. 42/2003, que acrescentaram ao texto maior as hipóteses de incidência das contribuições sociais sobre a importação (art. 149, §2º, II e III, “a”), já existia no ordenamento jurídico pátrio a definição legal do “valor aduaneiro”, base de cálculo do Imposto de Importação, prevista no art. 2º, inciso II, do Decreto-Lei n. 37/1966 (BRASIL, 1966) e destrinchado no art. 77 do Decreto n. 6.759/2009 – Regulamento Aduaneiro.

Como destacado pelo Ministro DIAS TOFFOLI em seu voto-vista no Recurso Extraordinário n. 559.937, quando as Emendas Constitucionais n. 33/2001 e n. 42/2003 autorizaram a incidência das contribuições sociais sobre a importação, indicando como base de cálculo daquela exação o “valor aduaneiro”, tais Emendas utilizaram termo técnico-jurídico já previsto no ordenamento desde 1966, como acima mencionado[2].

Assim, a conclusão a que se chega é que ao estabelecer quantum superior ao valor aduaneiro para compor a base de cálculo do PIS-Importação e da COFINS-Importação, integrando à esse montante o valor do ICMS pago no desembaraço aduaneiro e o valor correspondente ao próprio PIS-Importação e à COFINS-Importação, a Lei n. 10.865/2004 extrapolou os limites impostos pelo art. 149, §2º, III, “a“, do texto constitucional.

Destacamos que essa foi a conclusão prevalecente no julgamento do RE n. 559.937, que declarou, em sede de controle difuso de constitucionalidade, a incompatibilidade de parte da redação do art. 7º, inciso I, da Lei n. 10.865/2004[3], com a Carta Magna vigente.

Partindo-se da premissa de que o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal permanecerá o mesmo quanto ao mérito da questão, acaso seja interposto eventual recurso pela Fazenda Nacional, resta indagar sobre as possibilidades de repetição do indébito tributário.

É bem verdade que a declaração de inconstitucionalidade de determinado dispositivo, via de regra, afasta por completo a norma do ordenamento jurídico. Em outras palavras, uma norma declarada inconstitucional apresenta-se como norma que jamais poderia ter sido inserida no sistema jurídico, é dizer, desde seu nascedouro apresenta-se como norma inválida, “incapaz” de produzir efeitos.

 Por outro lado, ainda que a decisão pela inconstitucionalidade de parte da redação do dispositivo legal citado tenha se dado em sede de controle difuso de constitucionalidade, pela via do Recurso Extraordinário, a mais recente orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal tem assentado que mesmo as decisões tomadas pelo Plenário do STF, sobretudo considerando-se a sistemática da “Repercussão Geral”, possuem densidade normativa suficiente para apresentar o posicionamento adotado pela Corte, o qual poderá ser aplicado, inclusive, em juízo monocrático[4].

Considerando, portanto, o efeito ex tunc da declaração de inconstitucionalidade, bem como a “densidade normativa” própria das decisões do Plenário do Supremo Tribunal Federal, em sede de controle difuso de constitucionalidade, há que se concluir que todos os valores indevidamente pagos pelos contribuintes em virtude da redação do art. 7º, inciso I, da Lei n. 10.865/2004 poderão ser objeto de ação de repetição de indébito, nos termos do art. 165, inciso I, do Código Tributário Nacional.

Ocorre que, não obstante o sedimentado entendimento quanto ao mérito da questão, o Supremo Tribunal Federal ainda pode analisar eventual pedido da Fazenda Nacional acerca da modulação dos efeitos da decisão. Esse expediente, previsto originalmente no art. 27 da Lei n. 9.868/1999, que dispõe sobre a ação direta de inconstitucionalidade e sobre a ação declaratória de constitucionalidade perante o STF, tem sido aplicado pela jurisprudência da Corte ao controle difuso de constitucionalidade[5], pela via das ações judiciais ordinárias, justamente por ter o Recurso Extraordinário, hoje, características também de verdadeiro controle abstrato, “em tese”, das normas jurídicas.

Em outras palavras, em eventual julgamento de recurso interposto pela Fazenda Nacional, o próprio Tribunal poderá alterar os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, determinando que a decisão valha apenas após o seu trânsito em julgado, operando os chamados efeitos ex nunc.[6] Esta decisão, naturalmente, apresentar-se-á prejudicial aos contribuintes, que não poderão reaver os valores indevidamente recolhidos ao Tesouro Nacional.

Em verdade, caso essa hipótese prevaleça, ter-se-á verdadeira afronta à segurança jurídica, manifestada no princípio de proteção à confiança legítima do contribuinte. Isso porque, ante a flagrante inconstitucionalidade da norma analisada, firmará o contribuinte uma expectativa legítima de reaver os valores indevidamente recolhidos ao Estado, fundada no sistema normativo que rege a declaração de inconstitucionalidade, expectativa essa que cabe ao Poder Judiciário resguardar, mantendo a estabilidade do sistema e assegurando os direitos fundamentais à proteção à confiança do contribuinte (DERZI, 2009, p. 589-600) e à propriedade.

Ante toda a exposição apresentada, concluímos que a decisão do Supremo Tribunal quanto ao mérito do Recurso Extraordinário n. 559.937 prestigiou a exatidão terminológica indicada no texto do art. 149, § 2º, II e III, “a”, da Constituição da República de 1988, quanto ao conteúdo jurídico do “valor aduaneiro”, única base de cálculo constitucionalmente aceita para integrar a regra-matriz de incidência do PIS-Importação e da COFINS-Importação. Contudo, não obstante o acertamento quanto ao mérito da questão, o Supremo Tribunal Federal, em sede recursal, ainda poderá aditar a decisão proferida quanto à sua eficácia temporal, fazendo com que os efeitos do decisium operem apenas a partir do trânsito em julgado da decisão, o que impedirá que os contribuintes possam reaver os valores indevidamente recolhidos pela via da ação de repetição de indébito. Destaca-se que a modulação nestes termos afeta direitos fundamentais assegurados aos contribuintes, tendo em vista que não se encontram presentes os requisitos pertinentes à sua aplicação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 447, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/constituicao/artigobd.asp?item=%201379, Acesso em: 08 abr. 2013.

 _______. Supremo Tribunal Federal. AI 627770 AgR, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628947, Acesso em: 08 abr. 2013.

 _______. Supremo Tribunal Federal. RE 560626 / RS, Rel. Min. GILMAR MENDES. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=567931, Acesso em: 09 abr. 2013.

 ______. Supremo Tribunal Federal. RE 677589 AgR, Rel. Min. LUIZ FUX. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=2226368, Acesso em: 08 abr. 2013.

 DERZI, Misabel Abreu Machado. Modificações da jurisprudência no direito tributário: Proteção da confiança, boa-fé objetiva e irretroatividade como limitações constitucionais ao poder judicial de tributar. São Paulo: Noeses, 2009.

 DIDIER JÚNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil: Meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. Vol. III, 7ª Ed. Salvador: JusPodivm, 2009.

 PAULSEN, Leandro; VELLOSO, Andrei Pitten. Contribuições: Teoria geral, contribuições em espécie. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.



[1] O Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento segundo o qual a Constituição da República incluiu as contribuições como espécies tributárias. Confira-se a ADI 447, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI, especialmente o esclarecedor voto do Min. CARLOS VELLOSO, o qual enumera as espécies tributárias previstas na Constituição da República de 1988. (BRASIL, 1993). Confira também em PAULSEN; VELLOSO, 2010, p. 21.

[2] Voto-vista disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE559937.pdf. Acesso em: 08 abr. 2013.

[3] O acórdão, contudo, até a data da elaboração deste trabalho (08 abr. 2013), não foi publicado.

[4] Vide RE 677589 AgR, Rel. Min. LUIZ FUX, DJ 27/06/2012 (BRASIL, 2012). No mesmo sentido é a análise de Fredie Didier Júnior e Leonardo José Carneiro da Cunha (DIDIER JÚNIOR; CUNHA, 2009, p. 343-350).

[5] Confira o seguinte julgado: AI 627770 AgR, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA, DJ 21/10/2011 (BRASIL, 2011).

[6] A experiência demonstra que nas causas em que são discutidos valores de patamar elevadíssimo em prejuízo à Fazenda Pública, o STF tem a tendência a acatar os pedidos de modulação de efeitos. Nesse aspecto específico, confira, a título de exemplo, o seguinte julgado:  RE 560626 / RS, Rel. Min. GILMAR MENDES, DJ 05/12/2008 (BRASIL, 2008).

 

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