O direito de ampla defesa administrativa ao terceiro responsável pelo pagamento do tributo.
por Natercia Sampaio Siqueira. Mestre em Direito Tributário pela UFMG e Doutora em Direito Constitucional pela UNIFOR. Professora dos Cursos de Graduação e Pós graduação stricto sensu do curso de direito da Unifor. Procuradora do Município de Fortaleza. Advogada.
por Márcio Augusto de Vasconcelos Diniz. Mestre em Direito Constitucional UFMG e Doutor em Direito pela UFMG/Universidade de Frankfurt am Main. Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFC. Procurador do Município de Fortaleza. Advogado.
Introdução
Recente decisão da segunda Turma do STF, no RE 608426/AgR/PR, de relatoria do Min. Joaquim Barbosa, compreendeu que “os princípios do contraditório e da ampla defesa aplicam-se plenamente na constituição do crédito tributário em desfavor de qualquer espécie de sujeito passivo, irrelevante sua nomenclatura legal (contribuintes, responsáveis, substitutos, devedores solidários etc)” .
O que significa que independente do título ao qual se dê a sujeição passiva, deve-se assegurar ao responsável pelo pagamento do tributo, seja contribuinte ou terceiro, a ampla defesa e o contraditório no processo administrativo tributário, que é garantia fundamental do administrado. Desta premissa, a conclusão irrefutável: a ampla defesa e o contraditório demandam que o sujeito passivo, contribuinte ou terceiro, seja intimado dos atos que lhes são prejudiciais por meio idôneo, possibilitando-lhes a impugnação administrativa.
Nada mais correto. É o que se demonstrará por meio deste artigo, quando se tratará da praticidade, da ampla defesa e da responsabilidade de terceiros no pagamento de tributos, sob a argumentação de que as exigências de praticidade devem ser equilibradas com a ampla defesa e o instituto da responsabilidade de terceiro, que responde pelo pagamento de tributo a título diverso do contribuinte.
1.0 Praticidade
O acerto da decisão proferida pela Segunda turma do STF revela-se no contexto em que realizada a atividade tributária.
De primeiro, ressalta-se: a atividade fazendária de realização do tributo é informada pelo princípio da praticidade. O que significa que o procedimento de aplicação e cobrança da exação fiscal deve utilizar-se de meios que possibilitem a realização eficiente e econômica do tributo, assegurando a eficácia material da lei tributária, assim como a isonomia na sua aplicação.
Isto, porque o tributo é aplicado e cobrado em massa. Não por menos, em direito tributário: a) o crédito tributário é constituído, unilateralmente, pela fazenda pública; b) a certidão de inscrição em dívida ativa do crédito tributário corporifica o título executivo extrajudicial, apto a iniciar o processo de execução forçada; c) o título executivo extrajudicial é revestido da presunção de certeza e liquidez, passível de ser desconstituída em processo de embargos à execução fiscal, cujo pressuposto objetivo consiste na garantia integral do crédito tributário.
Veja-se bem: o título executivo é confeccionado pela parte credora, prescindindo não apenas do consentimento do sujeito passivo, como do conhecimento judicial. E nada há de estranhar neste procedimento. Imagine-se que a elaboração do título executivo extrajudicial carecesse do assentimento do sujeito passivo: quem o iria dar?
De outra sorte, caso a execução forçada ficasse a depender do conhecimento judicial, a ineficiência na realização do tributo seria inegável. De primeiro, porque a quantidade de ações de conhecimento, cujo objeto consistisse na declaração da relação jurídica tributária e na constituição do respectivo título executivo, sobrecarregaria o judiciário, que não teria infraestrutura para o trâmite eficiente e célere de referidos processos. Sem considerar que na constituição do crédito tributário, o conhecimento da ciência contábil, que escapa aos juízes, revela-se, em não raras situações, tão relevante quanto o conhecimento da ciência jurídica.
De segundo, porque o necessário conhecimento judicial à elaboração do título executivo inviabilizaria muitas das práticas de cobrança indireta do tributo, bem como instrumentos de otimização da arrecadação, como o desconto na fonte. Outra, portanto, não pode ser a conclusão: o processo judicial não é o instrumento adequado para criar título executivo fiscal, posto que tal procedimento é, no modelo constitucional e no sistema de competências, uma atividade tipicamente administrativa.
As justificativas, para tal afirmativa, vão além das até agora enumeradas, não escapando ao senso comum. Mas ainda falta um último argumento, que bem realça o porquê de a aplicação e cobrança do tributo ser informado pela praticidade, mediante o procedimento de constituição do título executivo extrajudicial pela Fazenda Pública: a escolha do modelo do Estado Fiscal pelo Estado brasileiro.
A eleição do modelo do Estado fiscal significa que o Brasil é custeado, preferencialmente, por impostos, uma vez que a exploração da atividade econômica não lhe é livre, conforme o disposto nos art. 170, caput e 173, caput da CF. Não por outra razão, a CF reconhece a administração fazendária da União, dos Estados, do DF e dos Municípios como fundamental ao funcionamento do Estado – art. 37, XXII.
Chega-se, por este momento, a uma primeira e relevante constatação: a essencialidade da atividade tributária ao funcionamento do Estado, aliada à aplicação em massa do tributo, justifica o procedimento de realização da lei tributária, cuja elaboração do titulo executivo extrajudicial se dá, unilateralmente, pela parte credora, prescindindo do assentimento do devedor e do conhecimento judicial.
2.0. Ampla defesa e contraditório
Mas se o procedimento de aplicação e cobrança do tributo não consiste em mero privilégio, justificando-se na aplicação e cobrança em massa da lei tributária, assim como no modelo do Estado fiscal adotado pela Constituição brasileira, deve ele adequar-se às garantias fundamentais asseguradas ao indivíduo, dentre as quais a ampla defesa e o contraditório em processo administrativo.
A ampla defesa e o contraditório em processo administrativo têm ganhado destaque face às considerações democráticas. Eles possibilitam um real diálogo entre a administração pública e o particular, que suplanta a mera relação de subordinação que decorre dos atributos inerentes ao ato administrativo: presunção de legitimidade e veracidade, imperatividade, exigibilidade e – por vezes – executoriedade.
Em síntese: o processo administrativo, informado pela ampla defesa e o contraditório, revela-se como antídoto aos atributos do ato administrativo. Se razões de praticidade justificam os requisitos inerentes aos atos administrativos, razões democráticas ou de legitimação reivindicam que as manifestações do Estado sejam constituídas sob a oportunidade do diálogo ao particular. Tal legitimação pelo diálogo (participação do interessado na formação do título) se torna tão e mais relevante em matéria tributária, cuja regulamentação, além de extensa, revela-se complexa e de difícil manuseio.
Neste quadro, a ampla defesa e o contraditório são fundamentais não apenas à legitimação da atuação fazendária, mas à legalidade, que é princípio maior tanto do direito administrativo como do direito tributário. Isto, porque o processo administrativo, informado pela ampla defesa e contraditório, bem como pelos meios e recursos que lhes são inerentes, consiste no procedimento que apresenta maior eficiência na descoberta da verdade e na correta interpretação do direito.
Razões das mais diversas ordens estão, desta feita, a justificar a ampla defesa e o contraditório em processo administrativo. Democracia, legitimidade, legalidade e redução ou esclarecimento das complexidades são as razões pelas quais o processo administrativo – e a garantia que ele encerra – deve ser levado a sério na prática jurídica brasileira.
3.0. Responsabilidade do terceiro
Dentro das considerações acerca da ampla defesa e do contraditório, não se pode esquecer que em Direito Tributário, o sujeito passivo não se limita à figura do contribuinte. Um terceiro, que não seja o contribuinte, desde que tenha relação com o fato gerador (art. 128 do CTN), pode vir a ser chamado para o pagamento de tributo mediante expressa previsão legal.
Observa-se que não é qualquer terceiro que pode ser chamado ao pagamento do tributo; é necessário que ele esteja ‘vinculado ao fato gerador da respectiva obrigação’. Uma das possíveis interpretações, ao que signifique estar ‘vinculado ao fato gerador da respectiva obrigação’, consiste na possibilidade de o terceiro ressarcir-se, econômica e previamente, do ônus tributário, antes de efetuar o pagamento do tributo.
Neste momento, releva observar que o tributo tem por causa ou a remuneração, ao Estado, pelos destinatários e beneficiários da atuação pública ou a capacidade contributiva, revelando-se como obrigação pessoal.
Daí a obrigatoriedade de assegurar-se ao terceiro meios de ressarcimento prévio e econômico do tributo, cujo pagamento lhe foi atribuído. Caso contrário, uma pessoa, que não a destinatária e beneficiária da atuação pública ou a titular da capacidade contributiva, será a onerada pela obrigação tributária, sem que se manifeste causa jurídica para tanto.
Mas além da exigência do prévio ressarcimento econômico do tributo, a razão do chamamento de terceiro para pagamento da prestação tributária pode dar-se a título de responsabilidade: a) pelo descumprimento de obrigações acessórias, que tenha dificultado a cobrança tributária; b) pela atuação na gestão de bens de terceiros sem a usual diligência e honestidade que se espera do homem probo, do que resultou a inadimplência tributária ou o próprio nascimento do tributo.
O pagamento de tributos por terceiro, em razão dos ilícitos acima enumerados, é uma das razões pelas quais o CTN atribui a responsabilidade pelo crédito tributário a terceiros (arts. 134 e 135). Entretanto, uma outra causa de atribuição de responsabilidade tributária a terceiro consta do CTN: a sucessão, que se dá quando um terceiro assume a posição antes ocupada pelo contribuinte, não raro incorporando o seu patrimônio – sucessão causa mortis e empresarial, por exemplo.
O importante, entretanto, é verificar que a atribuição da responsabilidade pelo pagamento de tributo a terceiro não é livre, devendo observar determinados requisitos. O que é fundamental, conforme o já ressaltado, tanto para que não se descaracterize a causa jurídica dos tributos, como para que se observem princípios inerentes ao direito privado, como a distinção da personalidade jurídica entre a sociedade e os sócios. Sob estas premissas o STF, em decisão proferida no RE 562276/PR, de Relatoria da Ministra Ellen Gracie, compreendeu pela inconstitucionalidade do art. 13 da lei 8.620/93. Nesta ocasião, resultou expresso das considerações tecidas pelo STF: o terceiro responde pela dívida tributária a título diverso do contribuinte, de forma que a sua responsabilidade não decorre da mera ocorrência do fato gerador da obrigação tributaria principal stricto sensu.
Conclusão
O terceiro, portanto, responde pelo crédito tributário a título próprio. Deve ele: a) ter relação com o fato gerador – que é diferente da relação imediata e pessoal do contribuinte, ou; b) ter descumprido com obrigações acessórias ou de probidade na administração de bens de terceiros, ou; c) suceder o contribuinte.
Por decorrência, a ampla defesa e contraditório que tenham sido possibilitados ao contribuinte não aproveita o terceiro, que responde pelo pagamento por fato distinto do fato gerador. Aqui, não se pode esquecer: o sócio é terceiro em relação à sociedade. As personalidades jurídicas da sociedade e do sócio não se confundem, de forma que um responde pela dívida tributária a título diverso do outro. Consequentemente: o processo administrativo deve ser oportunizado ao sócio mediante meio idôneo, não lhe aproveitando a impugnação administrativa que o contribuinte tenha interposto.