O caso COPESUL: serviços prestados por não residentes e os tratados para evitar a dupla tributação

por Giancarlo Chamma Matarazzo
Sócio da área tributária do escritório Pinheiro Neto Advogados. Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo, pós-graduado em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, MBA em Finanças pelo Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais – IBMEC e mestre (LL.M) em Direito Tributário Internacional pela Universidade de Leiden, Holanda.

por Rubens Barrionuevo Biselli
Advogado da área tributária do escritório Pinheiro Neto Advogados. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

 

INTRODUÇÃO

 A incidência do imposto de renda sobre a remuneração de serviços prestados por residente no exterior sediado em país com o qual o Brasil tenha assinado Tratado para Evitar da Dupla Tributação em matéria de Imposto sobre a Renda (“Tratado para evitar a Dupla Tributação”) sempre foi uma questão polêmica.

O artigo 7º da Lei 9.779, de 19.1.1999 (“Lei 9.779/99”), determina de forma ampla e genérica que “os rendimentos do trabalho, com ou sem vínculo empregatício, e os da prestação de serviços, pagos, creditados, entregues, empregados ou remetidos a residentes ou domiciliados no exterior, sujeitam-se à incidência do imposto de renda na fonte à alíquota de vinte e cinco por cento.” [1] Por sua vez, o artigo VII dos Tratados para evitar a Dupla Tributação que seguem o modelo da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (“OCDE”) restringe a competência tributária dos países fonte à hipótese em que o prestador de serviços estrangeiro possui um estabelecimento permanente naquele país. Há, portanto, evidente conflito entre a legislação doméstica e o texto do Tratado para evitar a Dupla Tributação.

  Embora a legislação de regência e a doutrina sejam claras no sentido de que a regra prevista no texto dos tratados deve prevalecer sobre a regra interna, a jurisprudência não tinha ainda se manifestado de forma clara sobre este assunto. O objeto deste trabalho é analisar a recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) que, de forma acertada, afastou a tributação das remessas relacionadas à remuneração de serviços prestados por empresa sediada em país com o qual o Brasil firmou Tratado para evitar a Dupla Tributação.

 O CORRETO CONCEITO DE “LUCRO DA EMPRESA” E A PREVALÊNCIA DOS TRATADOS PARA EVITAR A DUPLA TRIBUTAÇÃO

 O centro da discussão é a classificação da renda referente à prestação de serviços no contexto dos Tratados para Evitar a Dupla Tributação. As autoridades fiscais já manifestaram seu entendimento[2] no sentido de que esta renda (prestação de serviços) deve ser classificada como “Outros Rendimentos” (Artigo XXI) e não como Lucro das Empresas (artigo VII). Os contribuintes não concordam com esse entendimento das autoridades fiscais.

 De fato, não há uma definição de Lucro das Empresas no texto dos Tratados para evitar a Dupla Tributação. Assim, seguindo-se o disposto no artigo III, parágrafo segundo, do Modelo de Convenção dos Tratados para evitar a Dupla Tributação editado pela OCDE, o intérprete deve buscar a definição desse conceito na legislação do país que está aplicando a Convenção. Nesse caso, deve-se utilizar o conceito de lucro das empresas existente na legislação fiscal brasileira, o qual decorre da comparação das receitas, despesas e custos incorridos pela pessoa jurídica no regular exercício de suas atividades. Como se percebe, a receita decorrente da prestação de serviços é um dos componentes essenciais do Lucro das Empresas. Daí porque, pode-se concluir que a correta classificação da renda obtida em decorrência da prestação de serviços é exatamente como Lucro das Empresas, artigo VII, do Modelo de Convenção da OCDE, já que é a legislação doméstica que inclui a receita de prestação de serviços no conceito de Lucro das Empresas.

 No caso recentemente analisado pelo STJ, a Copesul – Companhia Petroquímica do Sul havia proposto ação declaratória pleiteando a declaração de inexistência de relação jurídico-tributária com a União (Fazenda Nacional) relacionada com a exigência do IRF sobre pagamentos derivados de serviços prestados por empresas canadenses e alemãs[3] em seu benefício. O STJ não acolheu a distinção proposta pela União no sentido de que não se poderia identificar com “lucro” o próprio rendimento auferido pela prestação de serviços. No entendimento do STJ, ainda que a parcela recebida não represente o lucro da empresa estrangeira, em razão das adições ou exclusões prescritas pela legislação estrangeira, não há dúvidas de que essa parcela compõe o lucro do não residente.

 O STJ afirmou ainda que o entendimento das autoridades fiscais não seria compatível com a correta interpretação dos Tratados para evitar a Dupla Tributação. Isso porque “as Convenções referem-se a lucro – a abranger toda receita ou rendimento que o integra conceitualmente -, e não a lucro real ou similar. A vingar a tese da União, o art. VII não passará de letra morta, pois nenhum rendimento se enquadrará no conceito de lucro ali referido, na medida em que os ajustes (adições, exclusões ou compensações legais) só se farão ao final do exercício.

Somado a isso, o STJ colocou ainda que é no Estado cujo território foram produzidos os lucros que se processarão os ajustes tendentes à apuração do lucro efetivamente tributável, de forma que admitir a retenção antecipada do tributo pelo Brasil inviabilizaria eventual restituição / compensação que se fizer necessária. É exatamente por isso que o STJ afirmou que, se prevalecesse a tese das autoridades fiscais, estaríamos diante da tributação sobre uma “não renda” do não residente.

Assim, ao afastar a aplicação do ADN 1/00 e do artigo 7º da Lei 9.779/99, o Ministro Relator defendeu uma interpretação mais adequada da expressão “lucro da empresa estrangeira” para fins de aplicação dos Tratados para evitar a Dupla Tributação. Nas suas palavras: “Para tornar o dispositivo minimamente aplicável é preciso equiparar o ‘lucro da empresa’ a ‘lucro operacional’. Esse entendimento não desborda da legislação brasileira que consagra, expressamente, diversas modalidades de ‘lucro’.”

Esse entendimento proferido pelo STJ é muito relevante, por trazer um conceito mais objetivo para fins de aplicação do artigo VII dos Tratados para evitar a Dupla Tributação. Entendemos ser acertado esse entendimento, que procura classificar como “lucro da empresa” todo rendimento auferido pelo não residente, com exceção para os rendimentos que forem expressamente tratados de forma específica no âmbito do Tratado para evitar a Dupla Tributação (tal como ocorre com o auferimento de “juros”, “dividendos”, “royalties” etc).

Adicionalmente, na análise do conflito dos Tratados para evitar a Dupla Tributação com a legislação interna, o STJ se pronunciou novamente a favor da prevalência dos tratados, em razão de serem normas especiais em relação às normas internas. Ainda que essas normas internacionais não revoguem a legislação interna, elas suspendem a sua eficácia naquele caso específico, sem que a norma interna perca sua validade ou existência em relação ao ordenamento jurídico brasileiro.

Portanto, ainda que tenha afastado o argumento de que o Tratado para evitar a Dupla Tributação seria hierarquicamente superior à legislação interna – com base na aplicação do artigo 5o da Constituição Federal –, temos que o efeito prático do entendimento do STJ é exatamente o mesmo: por um critério de especialidade, o Tratado para evitar a Dupla Tributação prevalece sobre a legislação interna, ainda que a legislação interna seja posterior ao tratado.

CONCLUSÃO

Em síntese, o STJ entendeu que: (i) o termo “lucro das empresas” previsto no Artigo VII do Tratado para evitar a Dupla Tributação deve ser interpretado de forma análoga ao termo “lucro operacional” da pessoa jurídica brasileira; (ii) como conseqüência,  as receitas provenientes da prestação de serviços devem ser classificadas no Artigo VII dos Tratados para evitar a Dupla Tributação e; (iii) os Tratados para evitar a Dupla Tributação prevalecem sobre a legislação interna, por configurar um instrumento normativo específico quando comparado à legislação interna.


[1]O imposto sobre a renda na fonte (“IRF”) incidirá à alíquota de 15% no caso de serviços que envolvam a transferência de tecnologia, nos termos do que estabelece o artigo 2-A da Lei 10.168, de 29.12.2000 (“Lei 10.168/00”). Isso porque, nesse caso, haverá também a incidência da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (“CIDE”) à alíquota de 10%. Aqui, vale ressaltar que a presente análise esta restrita à tributação dos serviços que não envolvam a transferência de tecnologia e que, conseqüentemente, estariam sujeitos ao IRF à alíquota de 25%.

[2]No passado, após diversas decisões e manifestações em ambos os sentidos, as autoridades fiscais editaram o Ato Declaratório Normativo 1, de 5.1.2000 (“ADN 1/00”), a fim de uniformizar a sua posição no sentido de que as remessas para pagamento de serviços, sem a transferência de tecnologia, não estariam sujeitas às regras do Artigo VII dos Tratados pare evitar a Dupla Tributação, mas estariam classificadas na cláusula de “Outros Rendimentos”, Artigo 21 dos Tratados para evitar a Dupla Tributação. Dessa forma, as autoridades fiscais declararam que os pagamentos de serviços sem transferência de tecnologia de uma empresa brasileira ao exterior estariam sempre sujeitos ao IRF no Brasil, ainda que o prestador dos serviços estivesse localizado em País com o qual o Brasil tivesse firmado Tratado para evitar a Dupla Tributação. Por considerar indevido esse entendimento das autoridades fiscais, muitos contribuintes que efetuam pagamentos pela prestação de serviços estrangeiros a partes situadas em País que possua Tratado para evitar a Dupla Tributação com o Brasil passaram a procurar o Poder Judiciário para afastar a incidência do IRF supostamente devido.

[3]Ressaltamos que, quando dos pagamentos efetuados pela Copesul à empresa alemã, o Tratado para evitar a Dupla Tributação celebrado entre o Brasil e a República Federal da Alemanha ainda estava em vigor.

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