O ATO DECLARATÓRIO INTERPRETATIVO RFB N. 8, DE 02.09.2014, E A INFINDÁVEL DISCUSSÃO ACERCA DA INCIDÊNCIA DO IRRF PELO LANÇAMENTO CONTÁBIL

por Livia De Carli Germano
Mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP, especialista em Direito Tributário pela PUC-SP/COGEAE e bacharel em Direito pela USP. Concluiu o Curso de Aprimoramento Docente pela Fundação Getulio Vargas – FGV
Membro do Instituto Brasileiro de Direito Tributário – IBDT
Consultora de conteúdo e membro da banca elaboradora de questões do módulo Planejamento Sucessório e Fiscal para os exames de certificação (Certified Financial Planer – CFP) aplicados pelo Instituto Brasileiro de Certificação de Profissionais Financeiros – IBCPF
Parecerista ad hoc da Revista CEJ – Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal
Autora de “Planejamento tributário e limites para a desconsideração dos negócios jurídicos” (Saraiva, 2013), coautora de “Planejamento Financeiro Pessoal e Gestão do Patrimônio – Fundamentos e Prática” (Atlas, 2012), além de diversos artigos em revistas especializadas
Associada de Lobo & de Rizzo Advogados

A novela sobre o momento da incidência do Imposto de Renda Retido na Fonte (“IRRF”) ganhou mais um capítulo com a publicação, pela Receita Federal do Brasil (“RFB”), do Ato Declaratório Interpretativo nº 8, de 2.09.2014 (“ADI 8/2014”).

A discussão é sobre o que se deve entender por “crédito” quando a legislação do IRRF estabelece como fato gerador o “pagamento ou crédito” de valores, sobretudo quando o crédito ocorre antes da efetiva entrega dos recursos.

Por meio do ADI 8/2014, a RFB reiterou sua posição de que, no caso de importâncias creditadas, o fato gerador do IRRF ocorre “na data do lançamento contábil efetuado por pessoa jurídica, nominal ao fornecedor do serviço, a débito de despesas em contrapartida com o crédito de conta do passivo, à vista da nota fiscal ou fatura emitida pela contratada e aceita pela contratante” (art. 1º).

Assim, para a RFB, o IRRF deve ser retido na data da contabilização do valor dos serviços prestados, considerando-se a partir dessa data o prazo para o recolhimento (art. 2º do ADI RFB 8/2014).

Não obstante a discussão sobre o momento da incidência seja válida para todos os casos de IRRF, o ADI 8/2014 trata especificamente da hipótese de retenção no pagamento local por serviços caracterizadamente de natureza profissional, prevista no artigo 647 do Regulamento do Imposto de Renda (“RIR/1999” – Decreto 3.000, de 26.03.1999). Esse IRRF é antecipação do devido pela beneficiária, nos termos do artigo 650 do RIR/1999.

Vale notar que, antes do ADI 8/2014, a RFB já havia consolidado a sua posição em favor do crédito contábil por meio da Solução de Divergência COSIT 26/2013[1], publicada em 16.07.2014.

A divergência, suscitada internamente pela própria Receita Federal, contrapôs duas soluções de consulta proferidas por diferentes Superintendências Regionais da Receita Federal – especificamente, a Solução de Consulta SRRF08/DISIT nº 338/2002, que decide pelo crédito contábil[2], se este ocorrer antes do pagamento, e a Solução de Consulta SRRF01/DISIT nº 60/2011[3], a qual conclui que o mero lançamento contábil não configura fato gerador do IRRF, “visto que o beneficiário deverá adquirir disponibilidade econômica ou jurídica do produto de seu serviço profissional”. Como resultado, a Solução de Consulta 60/2011 acabou sendo reformada e, meses depois, houve a publicação do ADI 8/2014.

A Solução de Divergência COSIT 26/2013 é, portanto, o pano de fundo da publicação do ADI 8/2014. E quais seriam os fundamentos para a conclusão em favor do crédito contábil?

Segundo a Solução de Divergência COSIT 26/2013, “para se entender a intenção do legislador ao referir-se ‘as importâncias creditadas’, é preciso buscar o conceito da expressão ‘creditada’ à vista dos princípios contábeis”. Nesses termos, a consulta discorre sobre os princípios contábeis de caixa e de competência para extrair a conclusão de que, mesmo que o contrato estabeleça prazo posterior para o pagamento, o IRRF deve ser retido por ocasião do crédito contábil da despesa, pois é este “o fato jurídico da prestação de serviço”.

De fato, os princípios contábeis estabelecem que, no regime de competência, a despesa deve ser reconhecida no momento em que o serviço é recebido – “a base para o registro do passivo é similar à das outras contas, pois deve ser reconhecido o passivo e registrada a despesa em função do serviço ou utilidade recebida até a data do Balanço, mas a pagar posteriormente[4].

Todavia, vincular a ocorrência do fato gerador de um imposto ao registro contábil da despesa pela fonte pagadora pode, em última análise, transformar o IRRF de um imposto sobre a renda em um imposto sobre a contabilização de despesa.

A incongruência fica evidente no caso de prestadores de serviço autorizados a adotar o regime de caixa para o reconhecimento e tributação de suas receitas – a exemplo das pessoas jurídicas optantes pelo regime de lucro presumido[5]. Neste caso, pode ocorrer de a empresa sofrer a retenção do IRRF, a despeito de ainda não estar obrigada a oferecer o rendimento à tributação – por exemplo, por se tratar de pessoa jurídica tributada pelo lucro presumido optante pelo regime de caixa que prestou serviços mediante recebimento em parcelas.

Ora, o fato gerador do IRRF diz respeito à renda do prestador de serviço e não é o ato de a fonte pagadora reconhecer a despesa em sua contabilidade que configurará a disponibilidade, econômica ou jurídica, dessa renda. Não necessariamente.

É curioso notar que tanto o ADI 8/2014 quanto a Solução de divergência COSIT 26/2013 citam como fundamentos os Pareceres Normativos do Coordenador do Sistema de Tributação (“PN CST”) nº 7, de 2.04.1986 e nº 121, de 31.08.1973.

O primeiro trata de pagamentos realizados entre pessoas jurídicas e conclui que o lançamento contábil marca a ocorrência do fato gerador desde que comunicado ao prestador de serviços, sendo que, em não ocorrendo tal comunicação, o fato gerador se consumará quando do vencimento da fatura. Já o PN CST 21/1973 aborda a retenção de imposto de renda em pagamentos realizados a pessoas físicas (sabidamente tributadas em regime de caixa), e conclui que não deve haver retenção senão por ocasião da liberação dos pagamentos, pois “Não integram o rendimento bruto, no cálculo da renda líquida imponível as parcelas creditadas que não estejam juridicamente à disposição do contribuinte.”.

A leitura desses pareceres nos leva a uma consideração importante: especialmente (mas não apenas) no caso em que o prestador de serviços é tributado segundo o regime de caixa, a disponibilidade da renda não necessariamente ocorre por ocasião da contabilização da despesa pela fonte pagadora.

Assim, o ADI 8/2014 incorre em potencial ilegalidade ao estabelecer um mesmo tratamento para as toda e qualquer retenção, independentemente da situação e do beneficiário do rendimento.

Como se não bastasse, já vimos que o IRRF objeto do artigo 647 do RIR/1999 é apenas antecipação do IRPJ devido pelo prestador de serviços. Assim, sobretudo para os prestadores de serviço tributados em regime de caixa, o tratamento sugerido pelo ADI 8/2014 ainda fomenta a discussão sobre a partir de que momento o IRRF poderá ser aproveitado: após a retenção ou apenas quando efetivamente receber o rendimento? E se o serviço for prestado em um período de apuração e o recebimento ocorrer apenas no período seguinte?

O ADI 8/2014 é omisso nesse ponto. Por sua vez, uma leitura apressada da Solução de Divergência COSIT 26/2013 pode levar à conclusão de que o IRRF apenas pode ser deduzido das receitas que sofreram a retenção, pois menciona: “é a partir deste momento [contabilização da despesa pela fonte pagadora] que o contratado poderá se creditar do imposto retido, como antecipação do devido, na forma do art. 650 do RIR de 1999, bem como poderá utilizá-lo, deduzindo-o do apurado no respectivo período de apuração das receitas que sofreram a retenção” (grifamos).

É possível argumentar que a Instrução Normativa RFB 1.515, de 24.11.2014 dá base ao aproveitamento do IRRF independentemente de o respectivo rendimento ter sido oferecido à tributação, na medida em que ela dispõe, genericamente, que “O imposto sobre a renda incidente na fonte, retido até o encerramento do correspondente período de apuração, poderá ser deduzido do imposto calculado com base no lucro presumido.”(art. 122, §24). Não obstante, a insegurança jurídica permanece.

Por fim, cumpre notar que o entendimento da RFB expresso no ADI nº 8/2014 aplica-se, como mencionado acima, exclusivamente à prestação de serviços locais. A princípio, referida norma não é aplicável a outras hipóteses de IRRF – em especial no caso de importação de serviços – até porque os fatos geradores são específicos[6]. De qualquer forma, vale observar que, no caso de IRRF nas importações de serviços, a RFB já proferiu soluções de consulta demonstrando entendimento semelhante ao expresso no ADI nº 8/2014. Felizmente, nesses casos a jurisprudência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (“CARF”) tem se consolidado no sentido de que não basta o crédito contábil, devendo a disponibilidade econômica ou jurídica da renda ser analisada no caso concreto levando-se em conta, inclusive, o vencimento da obrigação[7].



[2] “SOLUÇÃO DE CONSULTA Nº 338 de 10 de Dezembro de 2002 – DISIT 8. ASSUNTO: Imposto sobre a Renda Retido na Fonte – IRRF. EMENTA: FATO GERADOR – Serviços Prestados por Pessoa Jurídica. A retenção do imposto de renda na fonte incidente sobre as importâncias devidas por pessoa jurídica a outra pessoa jurídica pela prestação de serviços caracterizadamente de natureza profissional (auditoria) deve ser feita quando da ocorrência do fato gerador, que corresponde ao pagamento ou crédito, o que ocorrer primeiro. Ocorrendo em primeiro lugar o crédito contábil das referidas importâncias, nominal a beneficiária, incondicional e não sujeito a termo, configura-se o fato gerador, devendo ser retido o imposto neste momento.”

[3] “SOLUÇÃO DE CONSULTA Nº 60 de 18 de Agosto de  2011 – DISIT 1. ASSUNTO: Imposto sobre a Renda Retido na Fonte – IRRF. EMENTA: FATO GERADOR. MOMENTO DE OCORRÊNCIA. PRESTAÇÃO DE SERVIÇO. NATUREZA PROFISSIONAL. Ocorrendo em primeiro lugar o crédito das importâncias devidas a pessoas jurídicas, civis ou mercantis, pela prestação de serviços caracterizadamente de natureza profissional, nominal às beneficiárias, incondicional e não sujeito a termo, configura-se o fato gerador, devendo ser retido o imposto neste momento. O mero lançamento contábil não tem o poder de configurar o fato gerador do tributo. O beneficiário terá que possuir (adquirir) disponibilidade econômica ou jurídica do produto de seu serviço profissional.”

[4] Iudicibus, S. et. alManual de Contabilidade Societária. São Paulo: Atlas, 2010. p. 294. Da mesma forma, os autores observam que “para se reconhecer a receita que gere contas a receber, deve-se atentar que: (i) as partes mais importantes do processo de ganhá-la estão completadas; (ii) existe um preço atribuído pelo mercado; (iii) há liquidez estimada com relação ao seu recebimento; e (iv) todas as despesas já foram incorridas ou as a incorrer são estimadas.” E continuam: “a incerteza quanto ao recebimento de determinada venda normalmente não é motivo para postergar o registro contábil da receita para o momento em que é recebida.” (cit. p. 55-56)

[5] Arts. 122, §6º e 129 da IN RFB 1.515, de 24.11.2014. Outro exemplo de tributação em regime de caixa é o dos contratos de empreitada ou fornecimento contratado nas condições do art. 10 do Decreto-lei nº 1.598, de 26.12.1977, com pessoa jurídica de direito público, ou empresa sob seu controle, empresa pública, sociedade de economia mista ou sua subsidiária (IN SRF 21, de 13.03.1979).

[6] No caso de remessa para pagamento de importação de serviços, o fato gerador compreende o pagamento, o crédito, a entrega, o emprego ou a remessa.

[7] Câmara Superior de Recursos Fiscais, acórdãos 9304-00.114, 4ª Turma, sessão de 4.05.2009, e 9202­003.120, 2ª Turma, sessão de 26.03.2014 (vle transcrever a ementa deste último: “Assunto: Imposto sobre a Renda Retido na Fonte – IRRF Data do fato gerador: 30/11/2001, 31/12/2001 IMPOSTO DE RENDA RETIDO NA FONTE. REMESSAS PARA O EXTERIOR. IMPOSTO CALCULADO TENDO COMO DATA DO FATO GERADOR A DATA DOS CRÉDITOS CONTÁBEIS. IMPOSSIBILIDADE. A hipótese de incidência exige que as importâncias sejam pagas, creditadas, entregues, empregadas ou remetidas a beneficiários domiciliados no exterior, por fonte situada no País. As dicções “pagas”, “creditadas”, “entregues”, “empregadas” ou “remetidas” não deixam dúvidas de que o beneficiário não-residente tem que ter tido a aquisição de disponibilidade jurídica ou econômica do rendimento, conforme disciplina contida no art. 43 do CTN. “A disponibilidade econômica decorre do recebimento do valor que se vem a acrescentar ao patrimônio do contribuinte. Já a disponibilidade jurídica decorre do simples crédito desse valor, do qual o contribuinte passa a juridicamente dispor, embora este não lhe esteja ainda nas mãos.” (Hugo de Brito Machado. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p. 243). Não há fato gerador do imposto incidente na fonte quando as importâncias são contabilmente creditados ao beneficiário do rendimento em data anterior ao vencimento da obrigação, consoante os prazos ajustados em contrato. O simples crédito contábil, antes da data aprazada para seu pagamento, não extingue a obrigação nem antecipa a sua exigibilidade pelo credor. O fato gerador do imposto de renda na fonte, pelo crédito dos rendimentos, relaciona-se, necessariamente, com a aquisição da respectiva disponibilidade econômica ou jurídica. Por si só, o fato de a fonte pagadora lançar contabilmente o acréscimo do valor de sua obrigação na respectiva conta de passivo não torna devido o imposto de renda na fonte, por não importar na aquisição de qualquer disponibilidade econômica ou jurídica de renda pelo beneficiário. No caso dos autos, os rendimentos só passaram a ser devidos quando do vencimento previsto no contrato. Ora, por dedução lógica, o simples registro contábil, nos períodos questionados, não tem, por si só, o condão de modificar o prazo de vencimento da obrigação contratual. Recurso especial negado.” – grifos nossos). No mesmo sentido, acórdãos CARF 106-17.142, de 5.11.2008; 106-16.158, de 1.03.2007 e  106-14.497, de 16.03.2005.

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