O Ato Declaratório Interpretativo RFB n. 8, de 02.09.2014, e a infindável discussão acerca da incidência do IRRF pelo lançamento contábil.
por Emmanuel Garcia Abrantes
Advogado associado do escritório Mariz de Oliveira e Siqueira Campos Advogados
Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário
Paulo Coviello Filho
Advogado associado do escritório Mariz de Oliveira e Siqueira Campos Advogados
Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie
1 – Introdução
Primeiramente, antes de se aprofundar na análise específica do Ato Declaratório em referência, devem-se estabelecer algumas premissas que conduzirão este estudo.
Acerca da incidência do Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF), cabe registrar que o tributo em questão segue a regra geral prescrita no artigo 43 do Código Tributário Nacional (CTN), segundo o qual o Imposto sobre a Renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica da renda.
De forma geral, entende-se como renda o acréscimo patrimonial que represente riqueza nova, disponível e realizada. De forma que, para se considerar realizada, a renda deve ser mensurável, líquida e haver uma “quase certeza” do cumprimento da obrigação.
Dai a afirmação de Ricardo Mariz de Oliveira (2006, p. 33) no sentido de que a hipótese de retenção em vista do “crédito” ocorre apenas na hipótese em que a fonte reconhece a sua dívida já devida porque já vencida, e a disponibiliza em conta individual para o respectivo credor, titular da renda ou do provento correspondente.
Realmente, o fato gerador do Imposto de Renda nutre-se de um fato econômico que indique capacidade contributiva. Assim que o imposto não deve incidir sobre fatos incompletos ou incertos, tampouco deve onerar o patrimônio, mas o seu acréscimo (renda). Não observar tais premissas seria estender a imputação tributária além do previsto pela Constituição.
2 – O IRRF e o ADI n. 8/2014
Estabelece o art. 647 do Regulamento do Imposto de Renda (RIR/99) que as importâncias pagas ou creditadas por pessoas jurídicas a outras pessoas jurídicas, civis, ou mercantis, pela prestação de serviços de natureza profissional, estarão sujeitas à incidência do IRRF.
O dispositivo aponta dois elementos temporais que ativam o gatilho de incidência do IRRF, o pagamento e o crédito.
No que tange à hipótese do crédito, o ADI n. 8/2014 manifesta o entendimento de que se considera ocorrido o fato gerador do IRRF no crédito contábil pela pessoa jurídica contratante à vista da nota fiscal ou fatura emitida pela contratada e por ela aceita, sendo que, da data do lançamento contábil será devido o recolhimento do referido imposto.
Cumpre ressaltar que o próprio Fisco já havia se posicionado assim em outras oportunidades. Com efeito, o ADI n. 8/2014 apenas consolidou entendimento exposto pela Coordenação-Geral de Tributação (COSIT), por meio da Solução de Divergência n. 26, de 31.10.2013, a qual dirimiu controvérsia entre as Soluções de Consulta n. 60/2011, da 1ª Região Fiscal e n. 338/2002, da 8ª Região Fiscal, afirmando que “é mediante o lançamento contábil, em contas a pagar, nominal ao fornecedor do serviço, à vista da nota fiscal ou fatura emitida pelo contratado e aceita pelo contratante, que se configura o crédito a que se refere o art. 647 do RIR/1999”.
A nosso ver, o ADI n. 8/2014 peca por uma interpretação abrangente, que não observa os princípios da disponibilidade e realização da renda.
Ora, para que seja legítima a incidência do Imposto de Renda, o contribuinte deve ter controle sobre renda, mesmo que ainda não tenha a recebido efetivamente. In casu, o contribuinte deve ter o direito de exigir o crédito, o que não o ocorre enquanto não vencida a fatura.
Assim, o crédito a que se refere o art. 647 do RIR/99 não poderia ser outro se não o crédito na sua acepção civilista, sendo o direito de exigir o cumprimento de uma obrigação pré-estabelecida, e não o simples crédito contábil escritural.
Portanto, somente quando a obrigação não esteja condicionada a termo, poderá a emissão de nota fiscal, ou fatura, indicar a disponibilidade e realização da renda, habilitando a incidência do IRRF sobre o crédito constituído.
Aliás, muito antes dessas manifestações, o Parecer Normativo CST n. 121/73, já havia se posicionado dessa forma, conforme se verifica do trecho abaixo:
Dispõe o art. 118 do RIR, aprovado pelo Decreto nº 58.400, de 10 de maio de 1966, que o imposto sobre os rendimentos do trabalho assalariado deverá ser recolhido pela fonte pagadora dentro do mês seguinte àquele em que houver sido efetuado o pagamento ou o crédito aos beneficiários.
Claro está que o regulamento aí se refere aos créditos incondicionais, não sujeitos a termo, e, portanto, inteiramente à disposição do beneficiário, e não aos condicionados ou com vencimento previamente ajustado, porque estes não estão, ainda, juridicamente, à disposição do contribuinte.
Conforme visto acima, ao determinar que o fato gerador do IRRF sobre pagamento à pessoa jurídica pela prestação de serviços de natureza profissional ocorra quando da simples emissão da nota fiscal com o aceite pelo contratante, o ADI n. 8/2014 extrapola a hipótese de incidência do imposto, por não condicionar a incidência ao vencimento do crédito, permitindo, pelo seu silêncio, entender-se que seria possível a incidência do IRRF sobre créditos ainda sujeitos a termo.
2 – A Jurisprudência
A despeito do entendimento de autoridades fiscais no sentido de que o mero crédito contábil representa o fato gerador do IRRF, no decorrer do tempo a jurisprudência administrativa amadureceu a análise do tema, consolidando posicionamento diferente.
Assim se vê, por exemplo, no acórdão n. 103-07602, de 13.10.1986, cuja ementa consignou que:
Não há fato gerador do imposto de renda incidente na fonte quando os juros são contabilmente creditados ao beneficiário do rendimento em data anterior ao vencimento da obrigação, consoante os prazos ajustados em contrato de empréstimo, que se mantenha inalterado. O simples crédito contábil, antes da data aprazada para seu pagamento, não extingue a obrigação nem antecipa a sua exigibilidade pelo credor. O fato gerador do imposto na fonte, pelo crédito dos rendimentos, relaciona-se, necessariamente, com a aquisição da respectiva disponibilidade econômica ou jurídica.
O voto condutor da decisão constatou que o crédito contábil não altera o vencimento da obrigação de pagamento dos juros decorrentes do contrato, de forma que o credor da obrigação não adquire a disponibilidade jurídica, tampouco econômica, do rendimento no momento do crédito contábil, pois a aquisição ocorre apenas quando do vencimento da obrigação, momento no qual ela se torna incondicional e exigível pelo credor. Destacou, ainda, que o registro da despesa de juros segue o princípio da competência, o que não altera o fato gerador do imposto de renda.
Da mesma forma, no acórdão n. 106-16071, de 24.1.2007, o 1° Conselho de Contribuintes, asseverou que:
(…) o crédito contábil, como simples provisionamento dos juros para pagamento de obrigação a vencer, em respeito ao regime de competência, sem que o aplicador possa juridicamente reclamar tal valor, pelo não vencimento da obrigação, não é fato gerador do imposto, ocorrendo tão logo esta condição seja implementada. (g.n.)
Novamente, verifica-se posicionamento no sentido de que o fato gerador ocorre quando da aquisição definitiva da disponibilidade jurídica do rendimento pelo beneficiário, o que não ocorre com o simples crédito contábil, devendo-se analisar o negócio jurídico que acarretou o rendimento e verificar se houve efetivamente a aquisição da disponibilidade decorrente do vencimento da obrigação.
Igualmente, o acórdão n. 2202002535, de 20.11.2013, consignou em sua ementa que:
(…) no caso de IRRF incidente sobre juros remetidos a residentes ou domiciliados no exterior, em que a tributação é exclusiva na fonte, o fato gerador, termo inicial da contagem do prazo decadencial, ocorre na data da efetiva disponibilidade econômica ou jurídica pelo seu beneficiário. O simples crédito jurídico/contábil, antes da data aprazada para seu pagamento, não extingue a obrigação nem antecipa sua exigibilidade pelo beneficiário, não representando, portanto, aquisição, por este, da disponibilidade econômica ou jurídica. (g.n.)
No caso, o contribuinte sofreu autuação de IRRF que deixara de recolher sobre juros remetidos ao exterior, sendo que alegou em sua defesa que o fato gerador teria ocorrido no momento do crédito contábil da despesa, o que acarretava na decadência de parte do lançamento. O acórdão, baseando-se justamente no entendimento pacificado de que o fato gerador do IRRF ocorre apenas quando a obrigação é definitiva, rechaçou o argumento do contribuinte, não reconhecendo a decadência.
3 – Conclusão
Diante do exposto, tem-se que o ADI n. 8/2014, ao dispor que o fato gerador do IRRF, na hipótese de rendimentos devidos à pessoa jurídica em decorrência da prestação de serviços de natureza profissional, ocorra quando da emissão da nota fiscal com o aceite pelo contratante, conferiu uma abrangência à incidência do imposto que não está de acordo com os princípios da disponibilidade e realização da renda.
Isso porque, considerando que o IRRF não é conceitualmente tributo diverso do Imposto de Renda previsto no art. 43 do CTN, mas, ao contrário, o mesmo imposto revestido de uma técnica diferenciada de arrecadação, nos termos do parágrafo único do art. 45 do mesmo código, o fato gerador do IRRF deve respeitar integralmente o que dispõe o art. 43, o que impõe sua ocorrência somente no momento da aquisição de renda disponível e realizada.
Portanto, a retenção deve ser efetuada somente quando a renda for disponibilizada para o credor, o que pode se dar pelo pagamento ou pelo crédito, sendo que, neste último caso, apenas quando for definitivo, e não sujeito a termo.
Consequentemente, o ADI n. 8/2014 não evolui o entendimento do Fisco e insiste no desacordo com a remansosa jurisprudência administrativa no sentido de que o fato gerador do IRRF só ocorre quando o beneficiário do rendimento adquire a disponibilidade da renda, o que não ocorre na hipótese em que o crédito está sujeito a termo. Assim, não se deve admitir a exigência do IRRF pelo simples crédito contábil decorrente da emissão de nota fiscal ou fatura, mas apenas pelo crédito correspondente a uma obrigação já existente e já vencida, portanto exigível e disponível para o credor.
Bibliografia
OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Os importantes conceitos de pagamento, crédito, remessa, entrega e emprego da renda (a propósito do Imposto de Renda na fonte e de lucros de controladas no exterior). Revista Fórum de Direito Tributário nº 22. Belo Horizonte: Fórum, 2006.