O aproveitamento fiscal do ágio

por Valter de Souza Lobato
Sócio de Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados. Mestre e Doutorando em Direito Tributário na UFMG. Professor Universitário.

por Fernando D. de Moura Fonseca
Sócio de Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados. Mestrando em Direito Econômico e Financeiro na USP. Contador.

 1. Introdução

A temática do aproveitamento fiscal do ágio está intrinsecamente relacionada às recentes mudanças trazidas pelas Leis nº 11.638/07 e 11.941/09, que modificaram profundamente a Contabilidade brasileira. Como bem destaca Elidie Bifano, a alteração mais relevante foi a adoção dos padrões internacionais de contabilidade, que tendem a facilitar o acesso de sociedades brasileiras ao mercado de capitais internacional, bem como das sociedades estrangeiras ao mercado brasileiro[3].

Nesse contexto, foi observada uma importante mudança de paradigma em matéria de Contabilidade: a adoção do que se convencionou chamar de essência sobre a forma, que implica em abandono de normas rígidas de contabilização, para estabelecer a possibilidade de julgamento dos eventos contábeis com base na essência econômica da operação. Esta representaria de forma mais fiel a realidade. Contudo, o que a Contabilidade, com base em seus princípios, considera evolução, pode não encontrar ressonância no âmbito jurídico.

Portanto, as mudanças nas definições de institutos contábeis[4], principalmente aqueles utilizados pelo Direito, devem ter seus efeitos minuciosamente estudados. Não há dúvida de que, sendo relevante a interação entre Direito e Contabilidade[5], as alterações legislativas promovidas pelas Leis nº 11.638/07 e 11.941/09, no âmbito societário e da contabilidade, certamente geram incertezas quanto aos possíveis impactos tributários, vis-à-vis os princípios e regras do sistema tributário brasileiro. É, então, o caso de se investigar em que medida essa interação é juridicamente aceitável[6].

E, com base nas considerações acima, como deve ser interpretada a questão do ágio gerado em operações de fusão e aquisição, já que o seu regime contábil/societário foi recentemente alterado? É o que tentaremos responder.

 2. A questão do ágio

O Decreto-Lei nº 1.598/77 definiu ágio como sendo: a diferença entre o custo de aquisição de investimento – sendo que este deverá ter sido realizado em sociedade coligada ou controlada e avaliado pelo método da equivalência patrimonial (MEP) – e o valor do patrimônio líquido contábil da investida na época da aquisição[7]. Essa definição estava em consonância com as práticas contábeis da época, de modo que o regramento jurídico do ágio guardava correspondência com a definição contábil desse mesmo instituto.

Apesar da definição de ágio para fins fiscais remontar ao Decreto-Lei nº 1.598/77, não existia na legislação tributária qualquer regulamentação relativa ao tratamento que deveria ser conferido ao ágio em hipóteses de incorporação envolvendo a pessoa jurídica que o pagou e a pessoa jurídica que motivou a despesa, o que surgiu apenas com a Lei nº 9.532/97, ainda em vigor[8].

De acordo com a referida lei, os efeitos fiscais do ágio pressupõem a absorção do patrimônio da investida pela investidora e irão variar de acordo com o fundamento econômico, que deverá ser indicado pelo investidor, dentre os critérios previstos no Decreto-Lei nº 1.598/77.

O ágio fundado em mais valia dos ativos deverá ser incorporado aos bens que lhe deram causa, passando a integrar o custo de aquisição, e seguirá o regime de depreciação do bem a ele relacionado. O ágio fundado em expectativa de rentabilidade futura poderá ser amortizado, à razão de 1/60 avos, no mínimo, para cada mês do período de apuração. Finalmente, o ágio fundado em intangíveis, ou outras razões econômicas, não poderá ser amortizado. Este é o regime da Lei nº 9.532/97.

Note-se que a lei faz referência ao ágio apurado na forma do Decreto-Lei nº 1.598/77, que, por sua vez, incorporou o conceito contábil de ágio em vigor no momento de sua edição e alterado apenas recentemente por força do CPC 15. Portanto, nas hipóteses em que possível a amortização fiscal, o ágio deverá representar a parcela do custo de aquisição de investimento em coligada ou controlada, avaliado pelo MEP, que exceda o valor do patrimônio líquido contábil da investida e não o valor justo desse patrimônio. Eventual alteração contábil/societária posterior, se não refletida no Direito Tributário, não pode gerar efeitos nesse campo.

No momento em que houve a definição do conceito de ágio pelo legislador tributário, este deixou de ser um instituto contábil e passou a ser um instituto jurídico, e que assim deve ser interpretado. Um instituto definido – e não simplesmente incorporado pelo Direito Tributário – deve ser mantido imutável até que sobrevenha veículo normativo competente para realizar a correspondente alteração, o que ainda não ocorreu.

3. Conclusão

Atualmente, a diferença principal entre os regimes contábil e tributário de apuração do ágio consiste na prévia atribuição de valor justo aos ativos e passivos incorporados. Apenas a eventual diferença entre o valor pago e o valor justo poderá, do ponto de vista contábil, ser justificada como sendo ágio baseado em expectativa de rentabilidade futura da investida. Do ponto de vista tributário, permanece a metodologia anterior para cálculo do ágio rentabilidade futura (valor do PL na data da aquisição x valor pago).

Isso não significa dizer, contudo, que não possam coexistir valores e fundamentos diversos para um mesmo ágio. Embora o fato econômico seja um só, ele é regulado de forma diversa pela Contabilidade e pelo Direito. De um lado o CPC 15, de outro o Decreto-Lei nº 1.598/77. Como visto, permanece em vigor um conceito tributário de ágio, definido pelo citado decreto e ainda não revogado, expressa ou tacitamente. Esse conceito foi incorporado formalmente pela Lei nº 9.532/97, que cuida da amortização fiscal do ágio e que também permanece em vigor.

Assim, para fins tributários, a justificativa econômica do ágio, sua forma de cálculo, bem como as possibilidades de amortização permanecem inalteradas. Compete ao investidor a indicação do fundamento econômico, dentre as hipóteses previstas de forma não hierarquizada na legislação, desde que a opção possa ser suportada por documentação comprobatória.

Por fim, deve-se reconhecer que a razão de existir da Lei nº 11.638/07 é a melhoria da qualidade da informação contábil, focada na convergência com as normas internacionais de contabilidade (IFRS). O objetivo está na qualidade da informação, sempre tendo como referência a essência econômica da operação e não um arcabouço normativo previamente estabelecido. A divergência entre o regime anterior (contabilidade com base em normas) e o internacional (julgamento com base na essência econômica da operação) não é de regras, mas de princípios. A análise do antecedente histórico (veiculado na exposição de motivos) não permite qualquer conclusão acerca da existência de preocupação com os aspectos tributários, que devem ser absolutamente neutros.

Do exposto, somos da opinião de que o regime jurídico do ágio continua plenamente em vigor, de modo que as alterações decorrentes das Leis nº 11.638/07 e 11.941/09 têm sua aplicação restrita a questões contábeis e societárias.



 

[3] BIFANO, Elidie Palma. O Direito Contábil: Da Lei nº 11.638/07 à Lei nº 11.941/09. In: ROCHA, Sérgio André. Direito Tributário, Societário e a Reforma da Lei das S/A. Vol. II. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 172

[4] A esse respeito ver, POLIZELLI, Victor Borges. O princípio da realização da renda e sua aplicação no imposto de renda de pessoas jurídicas. Dissertação de Mestrado apresentada ao programa de Pós-Graduação em Direito da USP, São Paulo, 2009.

[5] Ver MARTINEZ, Antonio Lopo. A linguagem Contábil no Direito Tributário. 2002. Dissertação de Mestrado apresentada ao programa de Pós-Graduação em Direito do Estado da PUC de São Paulo, São Paulo, 2002. RENCK, Renato Romeu. Imposto de Renda da pessoa jurídica – Critérios constitucionais de apuração da base de cálculo: uma proposta de interpretação sistemática do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

[6] A RFB tem confundido esse assunto com certa freqüência, haja vista o grande número de autos de infração envolvendo a questão do ágio. Um bom exemplo é a reiterada negativa da autoridade administrativa em reconhecer o ágio interno que, embora inexistente na Contabilidade, não possui qualquer restrição no âmbito tributário. Felizmente a questão vem sendo objeto de importantes decisões no âmbito do CARF, como por exemplo, o acórdão nº 1101.00.708, recentemente formalizado e que admitiu a existência do chamado ágio interno.

[7] Segundo Luís Eduardo Schoueri, “tivesse o legislador silenciado a esse respeito (definição jurídica de ágio), então caberia à ciência contábil o desenvolvimento de metodologia para a avaliação de investimentos e o tratamento do ágio.” SCHOUERI, Luís Eduardo. Ágio em reorganizações societárias (Aspectos Tributários). São Paulo: Dialética, 2012, p. 11.

[8] SCHOUERI, Luís Eduardo. Ágio em reorganizações societárias (Aspectos Tributários). São Paulo: Dialética, 2012, p. 66.

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