O aproveitamento fiscal de ágio e o ofício CVM 1/2007

por Jorge N. F. Lopes Jr.
Mestre (LL.M.) em “International Taxation” pela New York University
Especialista em Direito Tributário pela PUC/SP
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
Advogado Associado da Área Tributária de Pinheiro Neto Advogados.

por Pedro Augusto A. Abujamra Asseis
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
Advogado Associado da Área Tributária de Pinheiro Neto Advogados.

 

Um tema que gera relevantes conflitos entre Fisco e contribuintes é o da amortização fiscal de valores de ágio resultantes de reorganizações societárias envolvendo empresas societariamente relacionadas. À luz da disciplina dada pelos artigos 7º e 8º da Lei nº 9.532, de 10.12.1997 (“Lei 9.532/97”), conforme consolidados nos artigos 385 e 386 do Regulamento do Imposto de Renda (“RIR/99”), tais operações muitas vezes preenchem os requisitos legais para permitir a apuração e a posterior amortização fiscal do ágio fundamentado na expectativa de rentabilidade futura de sociedades. Por outro lado, as Autoridades Fiscais têm questionado os efeitos tributários decorrentes de tais situações, sob a generalizada premissa de que o relacionamento societário prévio entre as empresas necessariamente viciaria sua capacidade de negociar em condições justas de mercado, ficando, com isso, impedidas de se beneficiar da amortização fiscal de ágio, independentemente dos termos estabelecidos na legislação tributária. 

Nesse contexto, chamam atenção os contornos dados à questão pelas Autoridades Fiscais em recentes questionamentos feitos contra algumas dessas estruturas, buscando invalidar a amortização fiscal de valores de ágio com base em conceitos extraídos não somente da legislação tributária, mas também, principalmente, de normativos contábeis. Essa tendência tem se mostrado especialmente acentuada após a publicação da Lei nº 11.638, de 28.12.2007 (“Lei 11.638/07”), que iniciou no País o processo de convergência contábil às normas internacionais (International Financial Reporting Standards – IFRS), juntamente com os Pronunciamentos Técnicos do Comitê de Pronunciamentos Contábeis, que, em linhas gerais, introduziram novos critérios de reconhecimento, mensuração e tratamento contábil de ativos e passivos das empresas.

Os valores de ágio fundamentados na expectativa de rentabilidade futura de sociedades empresas controladas ou coligadas, por exemplo, tiveram seu tratamento contábil substancialmente modificado pelas regras trazidas no Pronunciamento Técnico nº 15 do Comitê de Pronunciamentos Contábeis (“CPC 15”), que passou a determinar que tais valores somente podem ser reconhecidos em caso de efetiva transferência de controle societário, além de estarem sujeitos a critérios distintos de mensuração e de não mais se sujeitarem à amortização contábil, devendo apenas ser objeto de testes periódicos de recuperabilidade (impairment).

A nosso ver, contudo, em que pesem às diferenças entre a metodologia adotada nos novos regramentos contábeis para o reconhecimento e mensuração de ágio, em comparação à disciplina legal prevista nos artigos 385 e 386 do RIR/99, é certo que, para fins estritamente fiscais, o ágio continua a ter o tratamento previsto na legislação tributária, que nem poderia ser modificada ou restringida com base apenas nas novas disposições contábeis[1]. Além disso, o Regime Tributário de Transição (“RTT”), instituído pela Lei 11.941/09, de 27.5.2009 (“Lei 11.941/09”), garantiu a neutralidade tributária relativamente às alterações contábeis introduzidas pela Lei 11.638/07, e pelos artigos 37 e 38 da própria Lei 11.941/09, que “modifiquem o critério de reconhecimento de receitas, custos e despesas computadas na apuração do lucro líquido do exercício”, devendo, em tais casos, serem aplicados os métodos e critérios contábeis vigentes em 31.12.2007. Logo, fica claro que o ágio fundamentado na expectativa de rentabilidade futura de sociedades permanece sujeito às regras estabelecidas pela legislação tributária a despeito do novo tratamento contábil a ele também aplicado.

Ainda assim, tem-se observado cada vez mais tentativas do Fisco de questionar amortizações fiscais de valores de ágio fundamentando-se em normas puramente contábeis, como tem ocorrido, por exemplo, com o Ofício-Circular/CVM/SNC/SEP nº 1, de 14.2.2007 (“Ofício 1/2007”), da Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”).  Esta orientação da CVM, que é puramente contábil e não fiscal, foi editada antes ainda da Lei 11.638/07, no contexto que precedia a introdução da convergência contábil no País e, dentre outros objetivos, visava esclarecer os procedimentos contábeis que deveriam ser adotados pelas companhias abertas em determinadas situações, dentre as quais, a de reconhecimento de ágio em reorganizações societárias.  As Autoridades Fiscais têm citado especialmente o seu item 20.1.7, intitulado “Ágio gerado em operações internas”, para buscar embasar suas alegações de que operações de reorganização societária não poderiam gerar valores de ágio amortizáveis para fins fiscais, uma vez que tais aquisições não teriam sido feitas de terceiros e, portanto, os valores de ágio assim apurados seriam necessariamente vistos como artificiais. 

Ocorre que, em primeiro lugar, este normativo tem um objetivo especificamente definido, como se nota no preâmbulo do próprio Ofício 1/2007, que assim menciona: “os Ofícios-Circulares emitidos pela área técnica da CVM têm como objetivo principal divulgar os problemas centrais e esclarecer dúvidas sobre a aplicação das Normas de Contabilidade pelas Companhias Abertas e das normas relativas aos Auditores Independentes. Esse ofício-circular também procura incentivar a adoção de novos procedimentos e divulgações, bem como antecipar a futura regulamentação por parte da CVM e, em alguns casos, esclarecer questões relacionadas às normas internacionais emitidas pelo IASB.” Nota-se, também, que a regulamentação em questão dirige-se unicamente a companhias abertas e tem o declarado objetivo de orientá-las quanto a seus procedimentos contábeis, não podendo ser invocadas para finalidades tributárias.

O Ofício 1/2007, aliás, chega a determinar tratamentos contábeis que são frontalmente contrários às regras tributárias, como, por exemplo, quando trata do ágio sem fundamento econômico definido. Segundo seu item 30.20.1, “o ágio não justificado, ou seja, que não possua fundamento econômico, deve ser reconhecido imediatamente como perda, no resultado do exercício”, ou seja, prescrevendo um tratamento contábil – de baixa integral do ágio sem fundamento econômico no mesmo ano-calendário –  que se apresenta em clara oposição ao disposto nos artigos 385 e 386 do RIR/99, que impediriam tais valores de ágio de serem deduzidos para fins fiscais. Logo, a se admitir que os procedimentos contábeis previstos no Ofício 1/2007 teriam sua aplicação autorizada também para fins tributários, a conclusão levaria a contradições como a acima apontada, o que demonstra que, ao contrário, este Ofício deve ter sua aplicação limitada unicamente ao ambiente contábil. As normas contábeis têm objetivos e públicos distintos daqueles que embasam a edição de leis tributárias, e não há nada de errado no fato de uma mesma situação ser tratada de modo diferente nessas duas esferas[2].

Ademais, ainda que assim não fosse, deve-se notar que, embora o Ofício 1/2007 mencione situações nas quais a CVM entende que a geração de ágio seria “artificial”, por outro lado, as situações ali tratadas são muito pontuais e específicas, destacando-se, principalmente, aquelas relativas às operações praticadas à luz do hoje revogado artigo 36 da Lei nº 10.637, de 30.12.2002 (“Lei 10.637/02”).  Com efeito, conforme descrito no Ofício 1/2007, a CVM descreve textualmente as situações que lhe causam preocupação: “Uma das formas que essas operações vêm sendo realizadas, inicia-se com a avaliação econômica dos investimentos em controladas ou coligadas e, ato contínuo, utilizar-se do resultado constante do laudo oriundo desse processo como referência para subscrever o capital numa nova empresa. Essas operações podem, ainda, serem seguidas de uma incorporação.”

Por outro lado, as Autoridades Fiscais têm utilizado o teor do Ofício 1/2007 para buscar invalidar também valores de ágio gerados em operações de reorganização societária distintas daquelas tratadas no artigo 36 da Lei 10.637/02 e que podem ainda ter sido motivadas por razões empresariais e econômicas verdadeiras.  Muitas vezes, por exemplo, empresas que, na forma, poderiam ser consideradas pertencentes a um mesmo grupo econômico, são levadas por razões corporativas e não tributárias a negociarem nas chamadas condições “arm’s length”, ou seja, a valores justos de mercado, como se fossem partes independentes.  Nesses casos, abstraídas as particularidades de cada operação, os valores de ágio assim gerados não necessariamente seriam considerados artificiais para fins tributários.

Ao contrário, conforme a linha que vem sendo cada vez mais aplicada pela doutrina e jurisprudência administrativa, a análise da validade de determinadas estruturas de reorganização societária e os efeitos fiscais delas decorrentes deve, primeiramente, considerar as efetivas razões que possam ter levado à apuração de ágio na operação. Havendo razões empresariais legítimas e não exclusivamente fiscais, deveriam prevalecer as condições “arm’s length” e a boa fé das partes nela envolvidas, ficando afastadas as alegações de artificialismo.

Com base no acima exposto, entendemos que o Ofício 1/2007 não pode ser aplicado para questionar a validade do reconhecimento de valores de ágio resultantes de reorganizações societárias; primeiramente, porque o regramento contábil brasileiro tem aplicação limitada e não pode ser utilizado para determinar efeitos fiscais e, em segundo lugar, porque, o próprio Ofício 1/2007, em seu item 20.1.7, não alcança todas as situações de partes societariamente relacionadas, como tem sido apregoado pelas Autoridades Fiscais. Ao contrário, é relevante destacar que há casos em que as empresas podem ser consideradas relacionadas do ponto de vista formal, mas, em essência, circunstâncias de negócio as tenham levado a negociar em condições de mercado, não sendo possível tratar tais situações como artificiais. Essa é ainda uma das muitas questões no campo do Direito Tributário que não se encontram definitivamente pacificadas, cabendo à doutrina e à jurisprudência propor possíveis abordagens a partir de um processo dialético, pautado na razoabilidade e também sem perder de vista a legalidade, que deve sempre orientar a ação do intérprete.


[1] A esse respeito, confira-se a seguinte conclusão a que chega Luís Eduardo Schoueri, em recente estudo sobre o tema: “(…) É comum encontrarem-se artigos jurídicos – e mesmo decisões – onde a temática do ágio aparece a partir de uma perspectiva contábil. Estuda-se a natureza contábil do ágio para, em seguida, confrontá-la com dispositivos da lei tributária. Quando se verifica que a lei tributária contém dispositivos incompatíveis com a Contabilidade, chega-se a afirmar que haveria um ‘erro’ do legislador, ignorando, em nome da boa ciência, mandamentos expressos da lei tributária. Não é essa a perspectiva que aqui se adota. O ágio, como visto acima, é instituto jurídico. Tem disciplina legal exaustiva. O fato de haver figura homônima na Contabilidade – ou melhor ainda, o fato de a figura tributária ter se inspirado naquela – não afasta a conclusão de que uma vez regulado pelo Direito, é neste campo que se deve investigar sua natureza.” in: SCHOUERI, Luís Eduardo. Ágio em Reorganizações Societárias (Aspectos Tributários). São Paulo: Dialética, 2012. p. 13.

[2]Veja-se Luciana Rosanova Galhardo e Jorge N. de F. Lopes Jr.: “(…) O objetivo, declaradamente, não é a apuração de tributos. É a informação o mais transparente possível. Os destinatários dessas regras, como vem sendo destacado, não são as autoridades governamentais, fiscais ou regulatórias. São acionistas, investidores, provedores de crédito, diretores e outros agentes do mercado, que irão analisar a informação disponível para tomar decisões econômicas.

Essa última, aliás, talvez seja, a nosso ver, a principal premissa que se deve ter em mente quando se pretenda examinar o alcance dessas mudanças. A de que esse novo padrão contábil tem como objetivo primordial servir de ferramental útil para o bom funcionamento do mercado. (…)” in Controvérsias Jurídico-Contábeis (Aproximações e Distanciamentos). Coordenadores Roberto Quiroga Mosquera, Alexandro Broedel Lopes. São Paulo: Dialética, 2010. p. 216/217.

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