Novos Apontamentos sobre a Prestação de Serviços Técnicos Puros e a Aplicação das Convenções para Evitar a Dupla Tributação

 por Luciana Rosanova Galhardo
Mestre em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo
Sócia da Área Tributária de Pinheiro Neto Advogados
 por Pedro Augusto A. Abujamra Asseis
Mestrando em Direito Tributário na Universidade de São Paulo
Advogado da Área Tributária de Pinheiro Neto Advogados

 

O debate a respeito da qualificação dos rendimentos auferidos por não-residentes no País a título de prestação de serviços técnicos sem transferência de tecnologia como “Lucros das Empresas”, para fins de aplicação das Convenções para Evitar a Dupla Tributação em Matéria de Imposto de Renda (“CDT”), não é novo e já se estende há anos na jurisprudência, a despeito de a doutrina jurídica, por outro lado, ser quase unânime em reconhecer a aplicação do artigo 7º das CDTs nesses casos e a consequente restrição da competência do Estado da Fonte para tributar tais receitas[1].

Para contextualizar o debate que será tratado ao longo deste artigo, o cerne da questão envolve a qualificação dos rendimentos auferidos no Brasil por empresas residentes no exterior em decorrência da prestação de serviços sem transferência de tecnologia (ditos “serviços técnicos puros”, por não serem remunerados via royalties). De acordo com as regras convencionais (art. 7º), se tais rendimentos forem qualificados como lucros dessas empresas (“Business Profits”), eles seriam tributáveis apenas no Estado de Residência do beneficiário, a não se que o rendimento seja atribuível a um estabelecimento permanente no Estado da Fonte. Em termos práticos, essa interpretação leva à conclusão de que as remessas efetuadas ao exterior para pagamento de serviços técnicos prestados por empresas residentes em jurisdições com as quais o Brasil celebrou CDT não poderiam estar sujeitas à incidência do Imposto de Renda na Fonte (“IRF”).

Ocorre que autoridades fiscais e parte da jurisprudência têm relutado em admitir a aplicação do artigo 7º das CDTs face as disposições da legislação tributária doméstica brasileira, a qual determina que o IRF deverá incidir à alíquota de 25% sobre o pagamento, crédito, entrega, emprego ou remessa de valores a não-residentes no País pela prestação de serviços (art. 685, inciso II, alínea “a” do Regulamento do Imposto de Renda – “RIR/99”).

O início da discussão em torno desse assunto foi descrito de forma pioneira no Brasil pela co-autora desse texto no ano de 1998, quando publicou artigo no qual não apenas elucidou a mecânica de aplicação das disposições convencionais relativamente às prestações de serviços técnicos puros por não-residentes, mas também descreveu seu trabalho de convencimento junto às autoridades fiscais brasileiras quanto à correta interpretação da CDT celebrada entre Brasil e França nesse ponto[2]. Fruto desse trabalho foi a publicação da então inédita Solução de Consulta nº 9E97F007 pela Divisão de Tributação de Curitiba, na qual a Receita Federal (“RFB”) concluiu que “não incide o imposto de renda na fonte sobre pagamentos a empresa francesa que não possua estabelecimento permanente no Brasil, em decorrência da prestação de serviços técnicos que não se enquadram no conceito de know-how”.

Embora a essa Solução de Consulta tenham seguido ainda no mesmo sentido as Soluções nº 274, de 29.9.1998 (Canadá), 369, de 29.12.1998 (Espanha) e 11, de 10.2.1999 (França), a partir de 1999 o entendimento das autoridades fiscais começou a mudar, culminando, em 5.1.2000, com a publicação do Ato Declaratório Normativo COSIT nº 1 (“ADN 1/2000”), por meio do qual a RFB se manifestou no sentido de que as remessas decorrentes de contratos de prestação de assistência técnica e de serviços técnicos sem transferência de tecnologia estariam sujeitas à tributação nos termos da legislação doméstica e no caso das jurisdições com as quais o Brasil mantivesse CDTs, esses rendimentos seriam enquadrados no artigo “Rendimentos não Expressamente Mencionados” (artigo 21), mesmo nos casos em que a convenção não contemplasse esse artigo.

A insegurança jurídica que se seguiu à mudança de entendimento das autoridades fiscais a respeito desse assunto foi enorme, sendo o recurso ao Poder Judiciário a alternativa encontrada por diversos contribuintes para que tivessem reconhecida a aplicação do artigo 7º das CDTs nesses casos. O efeito dessa medida, contudo, abriu ainda mais espaço para a insegurança, já que a fundamentação das decisões judiciais eram as mais diversas, ora reconhecendo-se a qualificação dos rendimentos decorrentes de serviços puros como “Lucros das Empresas” (art. 7º)[3], ora como “Rendimentos não Expressamente Mencionados” (art. 21)[4], ou mesmo “Royalties” (art. 12)[5].

Paralelamente às discussões doutrinárias sobre o tema e às decisões judiciais proferidas a esse respeito, em 2011, a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (“PGFN”) reafirmou o entendimento consubstanciado no ADN 1/2000 por meio da publicação do Parecer PGFN/CAT/Nº 776/2011, muito embora desde 2006 a antiga Assessoria de Assuntos Internacionais já viesse solicitando a revisão do posicionamento das autoridades fiscais brasileiras sobre a qualificação dos rendimentos decorrentes da prestação de serviços puros, que “desgastava a imagem da RFB, por se tratar de interpretação isolada nos fóruns internacionais”[6].

Foi apenas em 17.5.2012, (mais de doze anos após a publicação do ADN 1/2000), com o julgamento do Recurso Especial nº 1.161.467/RS pelo Superior Tribunal de Justiça (“STJ”)[7] e a conclusão – por unanimidade de votos – de que a tese defendida pelas autoridades fiscais brasileiras para afastar a aplicação do artigo 7º das CDTs não encontrava fundamento no ordenamento jurídico brasileiro, é que as autoridades fiscais passaram a dar os primeiros sinais de que poderiam estar dispostas a rever seu entendimento sobre a matéria, ao não apresentarem recursos contra essa decisão, que transitou em julgado em 8.8.2012. Na ocasião, a Coordenação-Geral da Representação Judicial da PGFN apresentou ainda Nota-Justificativa indicando as razões pelas quais entendia como corretos o afastamento do ADN 1/2000 pelo STJ e a aplicação do artigo 7º das CDTs celebradas com Alemanha e Canadá no caso, destacando-se o fato de que as normas internacionais possuem natureza especial sobre as regras domésticas de tributação.

Contudo, tal desfecho ainda não teria sido suficiente para a RFB ou a própria PGFN proporem a revogação do ADN 1/2000 ou uma formalização da mudança de entendimento em relação à matéria, já que não apenas esse ato permanece vigente, como ainda há Tribunais aplicando entendimento baseado nessa equivocada interpretação a respeito do alcance e extensão das CDTs[8], mesmo após o STJ se manifestar contrariamente a esse entendimento por unanimidade de votos.

O que parece ter ensejado a revisão do posicionamento da RFB e da PGFN foi um ofício emitido em 27.2.2013 pelo Governo da Finlândia. Por meio desse documento, as autoridades finlandesas manifestaram clara intenção de apresentar denúncia à CDT firmada em 2.4.1996 com o Brasil em razão da inobservância das disposições previstas pelo artigo 7º (Lucros das Empresas) pelas autoridades fiscais locais, relativamente a valores recebidos por empresas finlandesas como contraprestação por serviços técnicos puros prestados no País.

Considerando essa possível denúncia da CDT pela Finlândia, em 19.4.2013, a Coordenação de Relações Internacionais do Governo Federal elaborou o Memorando nº 54, solicitando novamente a revisão do ADN 1/2000, tendo em vista “a evolução, no âmbito da administração tributária e do judiciário brasileiro, do tema da tributação na fonte dos serviços técnicos e da assistência técnica prestados por não residentes no contexto das convenções de dupla tributação”.

Submetida à análise da Coordenação-Geral de Tributação da Receita Federal do Brasil (“COSIT”), foi proferida a Nota COSIT nº 23, em 30.8.2013, na qual o mesmo órgão que publicou o ADN 1/2000 reconheceu expressamente que “a posição adotada pelo Ato Declaratório (Normativo) Cosit nº 1, de 2000, traduz interpretação equivocada das disposições dos acordos para evitar a dupla tributação e está em desacordo com o entendimento da doutrina internacional”, e sugere a “elaboração de Ato Declaratório Interpretativo, com o objetivo de estabelecer novo entendimento da RFB sobre a questão, de forma consistente com os acordos internacionais”[9].

Solicitada a rever sua opinião sobre a qualificação dos rendimentos recebidos por não-residentes a título de serviços técnicos puros à luz das CDTs firmadas pelo Brasil, a PGFN publicou a Nota PGFN/CRJ/Nº 1249/2013, o Parecer PGFN/CAT/Nº 2000/2013, a Nota PGFN/COCAT Nº 1291/2013, aceitando a revisão de seu entendimento sobre a aplicação do artigo 7º das CDTs nesses casos. E, consolidando seu novo entendimento sobre a questão, o publicou o Parecer PGFN/CAT/Nº 2363/2013, de 6.12.2013, do qual merecem destaque os seguintes pontos:

(i)        o entendimento dominante do Poder Judiciário tem sido justamente na direção oposta àquela defendida pelo ADN 1/2000 e pelo Parecer PGFN/CAT/Nº 776/2011;

(ii)       a PGFN concorda com o posicionamento do STJ no julgamento relativo ao Recurso Especial nº 1.161.467/RS, de modo que sequer interpôs recurso contra tal decisão;

(iii)      a interpretação de que o lucro referido pelo artigo 7º das CDTs se refere a “lucro operacional” e não a “lucro real, presumido ou arbitrado”, conforme julgado pelo STJ, e, nessa condição, deve ser interpretado de forma ampla, se mostra adequada e alinhada ao posicionamento da doutrina internacional, assim como às próprias diretivas expedidas no âmbito da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (“OCDE”); e

(iv)      não se poderia chegar a outra conclusão senão a de que as remessas ao exterior decorrentes da prestação de serviços técnicos puros por empresas domiciliadas em jurisdições celebrou CDTs com o Brasil devem ser qualificadas no artigo 7º (Business Profits) e não como Rendimentos Não Expressamente Mencionados – art. 21 ou 22).

Muito embora a PGFN não tenha examinado com maior rigor questões também fundamentais para pacificar definitivamente todo o assunto, tais como a conceituação dos termos “serviços técnicos” e “assistência técnica” para fins de qualificação, ou mesmo os possíveis conflitos de qualificação desses rendimentos entre “Lucros” (art. 7º), “Royalties” (art. 12) ou “Rendimentos de Profissões Independentes” (art. 14), entendemos que o Parecer PGFN/CAT/Nº 2363/2013 deve ser visto como um importante passo para a resolução dos conflitos jurídicos que se estendem há mais de 14 anos.

A despeito de o Parecer PGFN/CAT/Nº 2363/2013 não ter dado expressa orientação aos Procuradores da Fazenda Nacional para desistirem de ações atualmente em andamento ou deixarem de apresentar recursos contra decisões desfavoráveis à tese em referência, esse documento não apenas reconheceu o equívoco das autoridades fiscais em relação à qualificação desses itens de receita após 14 anos de intensas discussões, mas representa de certa forma uma orientação que daria maior conforto para os contribuintes deixarem de efetuar retenções na fonte quando da remessa de valores ao exterior como contraprestação por serviços técnicos puros nos casos em que os beneficiários estejam em jurisdições com as quais o Brasil tenha celebrado CDTs (atualmente, existem 29 CDTs em vigor[10] e outras 4 aguardam ratificação interna[11]).

Nos casos em que o pagamento do IRF já tenha ocorrido, os contribuintes poderiam ainda avaliar alternativas processuais, com base nas conclusões contidas no Parecer PGFN/CAT/Nº 2363/2013, para restituírem ou compensarem esses valores, que agora passaram a ser reconhecidos pela PGFN como indevidos à luz do Direito Tributário Internacional do Brasil.



[1]NEVES, Márcio Calvet. O imposto de renda na fonte nos pagamentos por prestações de serviços técnicos por residentes no exterior, o Ato Declaratório CST nº 1/00 e as Convenções celebradas pelo Brasil para evitar a dupla tributação da renda. Revista Dialética de Direito Tributário nº 58. São Paulo: Dialética, jul/2000. ROCHA, Sergio André. O Ato Declaratório nº 1/2000 e a ilegalidade da obrigação de retenção do imposto de renda na fonte. Revista Dialética de Direito Tributário nº 58. São Paulo: Dialética, jul/2000. ROTHMANN, Gerd Willi. Problemas de qualificação na aplicação das Convenções contra a bitributação internacional. Revista Dialética de Direito Tributário nº 76. São Paulo: Dialética, jan/2002. XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010.

[2] GALHARDO, Luciana Rosanova. Serviços Técnicos Prestados por Empresa Francesa e Imposto de Renda na Fonte. Revista Dialética de Direito Tributário nº 31. São Paulo: Dialética, abr-1998.

[3] Apelação / Reexame Necessário nº 00244617420054036100, julgados em 26.1.2012; Apelação Cível nº 00244421020014036100, julgada em 8.11.2012; Apelação / Reexame Necessário nº 00244617420054036100, julgados em 12.3.2009; Apelação Cível nº 00015308220024036100, julgada em 18.11.2010; e Apelação Cível nº 00068033420114036130, julgada em 16.5.2013.

[4] Apelação Cível nº 00238696920014036100, julgada em 17.5.2012; Apelação Cível nº 00073495820064036100, julgada em 16.8.2012; Apelação Cível nº 00178628020004036105, julgada em 7.3.2013; Apelação Cível nº 200451030009770, julgada em 11.5.2010; Apelação Cível nº 200451010057952, julgada em 22.2.2011; Apelação Cível nº 200451010038520, julgada em 27.10.2009; Apelação Cível nº 200202010191372, julgada em 27.10.2009; e Apelação Cível nº 00033544220034036100, julgada em 26.11.2010.

[5] Apelação Cível nº 200202010336052, julgada em 14.7.2009.

[6] Trecho da Nota GAB/Asain nº 14, de 16.5.2006.

[7]Conhecido como “Caso COPESUL”. Para maiores detalhes a respeito do caso e do desenvolvimento processual até o julgamento da questão pelo STJ, confira-se, por exemplo, os seguintes textos: MATARAZZO, Giancarlo Chamma; ARAÚJO, Joana Franklin de. Caso Copesul: A Tributação de Serviços pelo Imposto de Renda e os Tratados para Evitar a Dupla Tributação. in CASTRO, Leonardo F. de Moraes e (Org.). Tributação Internacional: Análise de casos. São Paulo: MP Editora, 2010. GARCIA, Ana Carolina Moreira; FONSECA, Frederico de Almeida. Não-incidência de IRRF sobre Remessas ao Exterior – Serviços Técnicos sem Transferência de Tecnologia – Análise de Jurisprudência. Revista Dialética de Direito Tributário nº 172, São Paulo: Dialética, jan. 2010. LAVEZ, Rafael Assef. A Retenção na Fonte na Importação de Serviços Técnicos: Questões não Resolvidas no Caso Copesul. Revista Direito Tributário Atual n° 28. Instituto Brasileiro de Direito Tributário. São Paulo: Dialética, 2012.

[8]Por exemplo, Apelação Cível nº 00073495820064036100, julgada em 16.8.2012 e Apelação Cível nº 00178628020004036105, julgada em 7.3.2013, referidas na nota 4, acima.

[9] Note-se que a COSIT já havia concluído em oportunidade anterior à Nota nº 23 que o artigo 7º das CDTs se sobrepõe às disposições contidas na legislação interna. Nesse sentido, por exemplo, destaca-se a Solução de Consulta Interna nº 18, de 8.8.2013. Disponível em http://www.receita.fazenda.gov.br/publico/Legislacao/ SolucoesConsulta/2013/Cosit/SCICosit182013.pdf. Acesso em 19.2.2014.

[10] Japão, França, Bélgica, Dinamarca, Espanha, Suécia, Áustria, Itália, Luxemburgo, Argentina, Noruega, Equador, Filipinas, Canadá, Hungria, República Tcheca e República Eslovaca, Índia, Coréia do Sul, Países Baixos, China, Finlândia, Portugal, Chile, Ucrânia, Israel, México, África do Sul, Peru e Turquia.

[11] Paraguai, Rússia, Venezuela, Trinidad e Tobago.

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