Leading Case – STJ: adesão a programa de parcelamento não é suficiente para extinção de processo “com julgamento do mérito” se não houver expressa renúncia ao direito por parte do contribuinte

por Alexandre Soares Bastos
Pós-Graduado em Direito Fiscal pela PUC-RJ. Pós-Graduado em Direito Privado pela Universidade Gama Filho-RJ. Graduado pela Universidade Candido Mendes – UCAM. Servidor Público Federal concursado dos quadros da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS. Advogado.

Uma das funções jurisdicionais é a de pacificar e solucionar conflitos no âmbito da sociedade.

Sendo o Recurso Especial 1.124.420 -MG representativo paradigmático da controvérsia em torno da celeuma a respeito da possibilidade do Contribuinte ingressar judicialmente com uma lide, após confessar a fidedignidade do crédito e a consequente legitimidade da cobrança dos débitos, sem que a Administração Pública tenha solicitado a expressa renuncia ao direito de litígio por parte do administrado. A relevância do tema se faz em razão dos efeitos de uma decisão vinculativa como esta ocasionar uma verdadeira guerra fiscal, onde quem perde é a já combalida e vilipendiada sociedade.

A consequência desta decisão já pode ser sentida, tendo em vista o posicionamento da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN), a qual alertou que contribuintes correm o risco de exclusão dos programas de parcelamento se não abandonarem a discussão dos respectivos débitos, em razão de tal exigência constar das normas que instituem/regulam os programas de parcelamento.

Antes de se abordar a questão da renúncia ao direito do contribuinte, outro fato antecede esta análise: A imprudência em se conceder o parcelamento sem a devida observância à lei, tanto por parte da Fazenda Pública, quanto por parte do Contribuinte e, por fim, do Poder Judiciário.

Explico.

A Fazenda Pública ingressou com a devida ação executória de débito fiscal. Presume-se que foram respeitados, no contencioso administrativo, os princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, portanto, nesta via, não há mais a possibilidade de discussão do fato gerador da exação pleiteada em juízo, visto que se formou o título executivo extrajudicial.

No entanto, o contribuinte, através da ação de embargos à execução – que se desenvolve na dependência da ação de execução fiscal fazendária – pode questionar alguns elementos deste título executivo, como, por exemplo, a cobrança de honorários sucumbenciais, como foi o caso. Ocorre que além de embargar a execução fiscal, paralelamente, ingressou, na via administrativa tributária de cobrança, com pedido de parcelamento do débito, desconsiderando o previsto no art. 14, inciso VI, da Lei 10.552, de 2002[1].

Pode-se questionar que o Contribuinte agiu com imprudência ou sem boa fé objetiva, pois o ato de contestar um débito que não se concorda é incompatível com o ato de pagar este mesmo débito, mesmo que parcelado. Prefiro acreditar na imprudência, não só pela difícil comprovação do dolo, mais também porque determinada conduta não se coaduna com espírito público de solidariedade que subjaz o sentido último da tributação: Se paga tributo em benefício e melhorias para SOCIEDADE, em conseqüência, em prol dos sócios da Empresa legitimada passiva da tributação, seus filhos, suas famílias, seus empregados, as famílias de seus empregados, etc. A relação jurídico fisco-contribuinte não é inerentemente existente ou, em outras palavras, não existe apenas do seu próprio lado, pois há dependentes relacionados ao sistema de tributação com interesses legítimos nos benefícios da arrecadação, ou seja, todos nós individualmente considerados.

A Fazenda Pública, pelo mesmo motivo, errou ao conceder o parcelamento por não observar a lei vigente. Outra linha de raciocínio seria considerar que a Administração Pública o concedeu confiando na boa-fé do contribuinte.

Neste mesmo diapasão, o Judiciário também errou em não declarar, incidentalmente, a ilegalidade do parcelamento, em razão de expressa impossibilidade legal.

O fato é que a legislação que trata do tema não foi observada por nenhum dos atores mencionados (Fazenda Nacional, Contribuinte e Judiciário) não podendo nenhum deles alegar o desconhecimento da lei em voga, seja pelo disposto no art. 3º do Decreto-Lei 4.657, de 1942 (Lei de Introdução ao Código Civil)[2], seja em razão do que reza o inciso I, do art. 2º, da Lei 9784, de 1999[3].

A questão que se deveriam debruçar os tribunais superiores, quiçá o STF, neste caso concreto, era como conciliar o princípio da legalidade, no caso, vício de legalidade, com os princípios da eficiência e do interesse público (interesse da sociedade).

 Conforme legislação sobre o tema, a aprovação do parcelamento fica condicionada a inexistência de ação judicial do Contribuinte discutindo a exação objeto do pedido de parcelamento, mesmo tendo feito o depósito do valor discutido. Trata-se de óbice intransponível à sua concessão por expressa previsão legal. Contudo, na oportunidade, o Fisco não diligenciou a respeito da existência de ação judicial em que se discute o crédito tributário e/ou agiu com uma confiança demasiada no contribuinte que não encontra abrigo no ordenamento pátrio por expressa dicção normativa (art. 14, VI).

A pergunta que antecede a questão da renúncia é:

1 – O parcelamento deferido pela Fazenda Nacional dos débitos constituídos deverá ser anulado por vício de legalidade, tendo em vista a expressa previsão legal limitativa da concessão quando o contribuinte discute o crédito em demanda judicial?

2 – Esta seria a medida mais razoável ou a mais eficiente, considerando o interesse da coletividade que se beneficia – ou deveria se beneficiar – com a distribuição tanto das riquezas que se operam com a tributação, como a distribuição dos produtos e/ou serviços desta Empresa que está sendo onerada positivamente, sem falar na geração e manutenção dos empregos que, em último grau, se trata de uma responsabilidade coletiva (Estado, Sistema Capitalista, Cidadãos)?

 Fundamentação

Se considerarmos isoladamente o princípio da legalidade e a expressa previsão normativa limitativa da concessão do parcelamento nos casos em que se discute a exação em demanda judicial ajuizada pelo sujeito passivo respectivo (Embargos à Execução), o parcelamento deferido haveria de ser anulado por vício de legalidade.

Não obstante, a peculiaridade do caso concreto, assim como os valores e princípios que informam o direito administrativo, notadamente o da proteção da confiança legítima/boa-fé objetiva[4], corolários do princípio da moralidade, assim como o da eficiência[5] (art. 37 da Constituição da República Federativa do Brasil – CRFB c/c art. 2º, caput, da Lei 9.784/99), nos conduzem a uma análise sistêmica e ponderativa dos interesses em jogo.

            Antes, contudo, vale ressaltar que a análise a seguir realizada se preocupa com o equilíbrio e harmonização que deve existir entre os princípios e as regras jurídicas na interpretação a ser efetivada, para que o resultado da tarefa interpretativa seja legítimo. Para isso, não passou despercebida a lição de Humberto Ávila, verbis:

Não se pode dizer que a subsunção cede lugar à ponderação como método exclusivo ou prevalente de aplicação do ordenamento jurídico brasileiro. Como a Constituição de 1988 é composta basicamente de regras, e como ela própria atribui, em inúmeras situações, ao Poder Legislativo a competência para editar regras legais, sempre que esse poder exercer regularmente sua liberdade de configuração e de fixação de premissas dentro dos parâmetros constitucionais, não poderá o aplicador simplesmente desconsiderar as soluções legislativas. Ele deve, é claro, interpretar as regras legais gerais e abstratas, adaptando-as às particularidades do caso individual e concreto, eventualmente afastando a previsão geral diante de um caso efetivamente extraordinário; interpretar as hipóteses constantes das regras legais, cotejando-as com as finalidades que lhes são subjacentes, quer as ampliando, quer as restringindo, quando elas se revelarem muito restritas ou muito amplas relativamente à sua finalidade”. (ÁVILA, Humberto. “Neoconstitucionalismo”: Entre a “ciência do direito” e o “direito da ciência”. Revista Eletrônica de Direito do Estado -REDE, Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº 17, janeiro, fevereiro, março, 2009. Disponível na Internet: http://www.direitodoestado.com.br/rede.asp. Acesso em 26 de fevereiro de 2009).

 O princípio da eficiência está intimamente ligado ao conceito de Boa Administração/Administração de Resultado[6] como garantia de se respeitar os direitos das pessoas humanas. O princípio da eficiência traz essa aproximação da Administração de Resultado com os ditames constitucionais, principalmente no que se refere à garantia e efetivação dos Direitos Fundamentais. Visa ampliar o enfoque do controle, seja formal ou material, para efetivar um controle jurídico constitucional, subsumido no ato administrativo (Constitucionalização do Direito)[7]. Essa mudança de paradigma é exposta de forma muito clara pelo professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto na seguinte passagem:

Hoje, passadas mais de três décadas, o Direito Administrativo registra com clareza essas notáveis mudanças, muito embora aqueles antigos mitos, que caracterizaram seu passado autoritário, ainda hoje sobrevivam por inércia, comodismo ou ideologia, reclamando de nossos juristas, nossos juízes e nossos operadores do direito em geral, um vigoroso reconhecimento e afirmação dos novos paradigmas que o reconciliam com os valores do Estado Democrático de Direito”. (MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Ensaio sobre o resultado como novo paradigma do Direito Administrativo. Direito Administrativo em Debate. Rio de Janeiro, outubro, 2008. Disponível na internet: Acesso em: 27 de fevereiro de 2009).

Já o princípio da moralidade,  subsumi a conduta de todos os atores envolvidos a um padrão ético de comportamento.

            Neste diapasão, a Administração Pública poderia manter um ato ilegal com base nos princípios acima, conjugado com o princípio da eficiência.

O jurista Miguel Reale[8] foi um dos primeiros a vislumbrar esta possibilidade, desde que preencha três requisitos:

  1. Não haja dolo (comprovação de boa-fé);
  2. Não prejudicar terceiros nem os cofres públicos;
  3. Se o prejuízo da anulação para a Administração for maior do que a mantença do ato ilegal.

  Utilizando-se dos critérios acima aduzido, assim como realizando um juízo de razoabilidade sobre a mantença do ato eivado de ilegalidade, entendo ser possível torná-lo válido. Portanto, não basta só o alerta da Fazenda Pública. Cabe a ela rever o procedimento de cobrança adotado e convalidar todos os parcelamentos irregularmente operados.

Tanto o pagamento quanto o parcelamento não geram uma situação conflituosa, ao revés, o sujeito passivo reconhece, seja implicitamente (como no pagamento) ou expressamente (como no parcelamento, pela confissão irretratável da dívida), a sua vontade de não discutir o débito. Até porque, o ato de pagar ou parcelar, é nitidamente incompatível com a atividade de contestar, implicando em renúncia a este direito, não gerando qualquer ofensa ao direito de petição e/ou ao direito à apreciação do Poder Judiciário de qualquer lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXVI da CF/1988).

A lealdade na relação Fisco-Contribuinte tem caráter dúplice de vinculação, pois sujeita ambas as partes, seja na esfera administrativa ou judicial. Trata-se da consagração do princípio da boa-fé objetiva (art. 2º, inciso IV, da Lei 9.784/99), não sendo legítima atuação contraditória e desleal tanto por parte do ente público quanto por parte dos administrados.

Tal convalidação também não prejudica terceiros e nem os cofres públicos, pois o pagamento vem sendo realizado em parcelado. Se a anulação dos parcelamentos ocorresse, o prejuízo para sociedade (princípio do interesse público) seria muito maior, pois o Estado não só deixaria de arrecadar, como teria todo o custo de mover a maquina estatal numa situação onde inexiste litígio, conciliado com a concessão do parcelamento.

Por fim, consigno quea RENÚNCIA mais bela e importante já se efetuou: aquela que fazemos ao abrir mão de nossa riqueza material individual em prol de uma sociedade melhor, mais justa e igualitária.



[1]Art. 14. É vedada a concessão de parcelamento de débitos relativos a:

(…)

VI – crédito tributário ou outra exação objeto de ação judicial proposta pelo sujeito passivo com depósito do montante discutido; (Incluído pela Medida Provisória nº 449, de 2008)

[2] “Art. 3o  Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece.”

[3] Art2. (omissis); .I – atuação conforme a lei e o Direito;

[4] Que se aplica para ambos.

[5]Os princípios da moralidade e da eficiência estão em pé de igualdade com o princípio da legalidade. Há um paralelismo entre ambos, se enquadrando, igualmente, no art. 37 da CRFB com a EC 32, de 1998.

[6]Alteração da dinâmica do controle administrativo. Além do controle do ato, deve-se ter o CONTROLE DO RESULTADO, como consagração máxima do princípio da eficiência administrativa.

[7] Para um maior aprofundamento: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Quatro Paradigmas do Direito Administrativo Pós-Moderno. Rio de Janeiro: Editora Fórum, 2008.

[8] REALE, Miguel. Revogação e anulamento do ato administrativo. 1ª edição, São Paulo: Forense, 1968. 2ª edição revisada e acrescida, São Paulo: Forense, 1980.

Compartilhe