Inconstitucionalidade do Protocolo ICMS nº 21/2011. O Posicionamento do STF e o Futuro da Tributação do E-Commerce.

por Anna Rafhaela Villar Torino Bonifácio
Graduada pela Universidade Federal do Espírito Santo
Advogada no Trouw e Fraga Advogados

 

1. A expansão do comércio eletrônico e o Protocolo ICMS nº21/2011

O contexto econômico que suscitou a promulgação do Protocolo ICMS nº21/2011[1] engloba, necessariamente, a expansão do comércio eletrônico. Graças àtecnologia digital, o anúncio de um produto pode ser reproduzido por um número infinito de vezes, para consumidores de todo o mundo, sem custo adicional.

É certo que a internet fez eclodir uma nova modalidade de transação comercial, marcada, principalmente, pela ausência de fronteiras geográficas. Enquanto em 2001 o mercado de e-commerce brasileiro movimentava pouco mais de 0,5 bilhão de reais, esse mesmo setor, em 2013, já chegava ao faturamento de cerca de 28 bilhões de reais.[2] 

Isso quer dizer que, muito embora o comércio eletrônico seja uma valiosa fonte de riqueza tributável, capaz de repercutir, sobremaneira, na arrecadação das Unidades da Federação,  háduas décadas atrás essa projeção não era tão clara.

Ou seja, quando da elaboração da Carta Magna brasileira, promulgada em 1988, o impacto da internet na geração de renda e transferência de mercadorias era inimaginável. Exatamente por isso o art. 155, §2º, VII, “b”, da Constituição Federal previu que as vendas interestaduais destinadas a consumidor final não contribuinte sujeitam-se ao recolhimento do ICMS apenas no Estado de origem pela alíquota interna.

Naquele dado momento histórico, as transações comerciais justificavam essa sistemática de divisão de arrecadação do ICMS, pois, nas vendas realizadas entre contribuintes do imposto, business-to-business[3], a receita tributária não fica concentrada apenas nos Estados de origem, pois àunidade da localização do destinatário, caberia o correspondente àdiferença entre a alíquota interna e a interestadual.

Todavia, o perfil das transações tributadas foi alterado. Hoje, além dos computadores pessoais, o consumidor tem acesso ao mercado eletrônico por meio de smarthphones, tablets e outros dispositivos portáteis. Isso potencializa, e muito, as vendas entre empresas situadas em um Estado – de origem – e consumidores finais não contribuintes de ICMS residentes em outros Estados – de destino. 

Foi nesse contexto que, em 2011, 17 Estados[4] e o Distrito Federal celebraram o Protocolo ICMS nº21/2011, para autorizar o Estado de destino a efetuar a cobrança de ICMS, nos casos em que a mercadoria éadquirida de forma não presencial em outra unidade federativa por consumidor final não contribuinte do imposto. 

Ressalte-se que a exigência do imposto pela unidade federada destinatária da mercadoria aplicava-se, inclusive, nas operações procedentes de unidades da Federação não signatárias do protocolo.

Fato éque, os Estados, principalmente os localizadas nas Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, àmargem dessa sistemática de partilha, encontraram no Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ) a saída para equalizar o desequilíbrio na repartição da receita do ICMS nas operações interestaduais.

2. Leading case: RE 680.089 e ADIs 4628 e 4713. O STF declara a inconstitucionalidade do Protocolo ICMS nº21/2011.

Como não poderia deixar de ser, a constitucionalidade desse ato normativo chegou ao Supremo Tribunal Federal, jáque se tratava de verdadeira reforma tributária realizada pelos Estados signatários do protocolo. 

Em setembro deste ano, houve o desfecho dessa “guerra fiscal”do e-commerce. Por unanimidade de votos, o STF julgou em conjunto as ADIs 4628 e 4713 e o RE 680.089[5], para declarar a inconstitucionalidade do Protocolo CONFAZ nº 21/2011.[6]

Antes de mais nada, podemos identificar que esse éum dos casos em que a Suprema Corte primou por um dos princípios mais nobres do Estado Democrático de Direito: a segurança jurídica, por meio do respeito àrepartição rígida da competência tributária instituída pelo legislador constitucional.

Isso porque, muitas vezes, o Poder Judiciário chancela atos manifestamente inválidos a pretexto de corrigir distorções no quadro fático e econômico que impulsionaram a atividade legislativa.

Como acertadamente ponderou o Ministro Luiz Fux, relator das 2 ADIs sobre o tema:

“Em que pese a alegação da existência de um cenário de desigualdades inter-regionais, em virtude da aplicação do art. 155 §2o, VII, da Constituição, a correção destas distorções somente poderáemergir pela promulgação de emenda constitucional, operando uma reforma tributária, e não mediante a edição de qualquer outra espécie normativa.”

Essa também foi a opinião do Ministro Gilmar Mendes, relator do RE 680.089, julgado sob a sistemática da repercussão geral:

“A necessidade de adequação da sistemática de cobrança do ICMS ao significativo crescimento do comércio eletrônico não ésuficiente para se reconhecer ao CONFAZ e a uma parcela dos Estados-membros a competência para alterar – revogar, diria, -, por meio de instrumento infralegal, a disciplina constitucional de cobrança de partilha do ICMS.”

De fato, se as compras por meio da internet fomentaram operações comerciais com consumidor final, não contribuinte de ICMS, afastando-se da realidade que predominava quando da promulgação da Constituição Federal de 1988, e que justificou a sistemática de arrecadação ali estabelecida, não podem os Estados que se sentirem prejudicados alterar regra constitucional por meio de instrumento normativo inadequado.

No caso, entendeu o STF que o constituinte originário fez uma opção política legítima que não pode ser alterada, seja pelo Executivo, seja pelo Judiciário. Muito pelo contrário, instituir uma nova incidência tributária requer a alteração do próprio texto constitucional.[7]

Outra premissa adotada pela Suprema Corte para declarar a inconstitucionalidade do Protocolo nº21/2014 foi o possível aumento de carga tributária para o consumidor final, uma vez que, caso a mercadoria fosse proveniente de um Estado de origem não signatário –  caso de São Paulo e Rio de Janeiro – e fosse destinada a um Estado de destino signatário, haveria a cobrança de ICMS mediante incidência da alíquota interna, bem como a aplicação de diferença de alíquota.

3. O Futuro da tributação do e-commerce  sob uma perspectiva internacional. Açãonº1 dos BEPS.

Embora a decisão do STF tenha equacionado uma das questões relacionadas àtributação do e-commerce, os desafiosdesse tipo de transação ainda são muitos. Principalmente porque as incertezas no ambiente eletrônico não comportam fronteiras.

A importância do tema étanta que, não por coincidência, a primeira Ação da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE – para o combate àerosão fiscal e ao desvio de resultados para jurisdições de baixa tributação – BEPS (Base Erosion and Profit Shifting) – consiste em fixar os principais desafios fiscais da economia digital.[8]

Apesar de o Brasil ainda não ser membro da OCDE, o encontro de soluções para a insegurança jurídica do setor exige uma sinergia global, atémesmo pela característica de imaterialidade do mercado eletrônico. 

Em termos gerais, três desafios quanto àtributação na economia digital abordados no relatório da OCDE se aplicam àrealidade brasileira. O primeiro refere-se àpresença da empresa no país onde ela exerce atividade para fins de sujeição passiva tributária. Isso porque, embora o núcleo do negócio possa permanecer hígido, atualmente, com a tecnologia digital, serviços como marketing e assistência ao consumidor podem ser alocados remotamente. Nesse ponto, faltam critérios para definir, por meio de uma construção técnico-jurídica,  onde se encontra a unidade de negócios.

Essa questão tem especial relação com o conceito de estabelecimento permanente. Na realidade, jáexiste o entendimento de que o estabelecimento permanente não se refere somente àpresença física de uma empresa no Estado em questão, mas também nas situações em que o negócio éexecutado via uma agente dependente.

O segundo desafio engloba a transferência de dados entre os países, mais precisamente, em alocar o lucro proveniente dessa informação. A obtenção de dados, em troca do acesso a produtos e serviços, éuma estratégia das empresas para utilizar essa informação com outros grupos de consumidores. No entanto, a expropriação de dados de um país para outro, com a geração de valor para o negócio, ainda não ébem definida para fins de tributação.

O terceiro relata a dificuldade de identificar o que érenda nesse novo contexto de negócios, especialmente quando se trata de pagamento para uso de nuvem, não háconsenso quanto ànatureza dessa remuneração, se considerado como royalties, taxas de serviços técnicos ou lucro do negócio. Ainda, se seria considerado como serviço ou infraestrutura para a prestação de outros serviços. 

Enfim, de tudo o que foi exposto, fica claro que as transações realizadas por meio de e-commerce suscitam uma cooperação global de intercâmbio de informações e fiscalização, sobretudo para evitar situações de dupla tributação ou da ausência dela. A justa medida entre o poder arrecadatório dos Estados e a segurança jurídica dos contribuintes éo grande desafio do futuro da tributação do e-commerce. 

 



[1] Publicado no D.O.U. em 07.04.2011.

[2] Disponível em <http://www.e-commerce.org.br/stats.php>. Acesso em 10/12/2014.

[3] Business-to-business, expressão identificada pela sigla B2B, é a denominação do comércio estabelecido entre empresas  – “de empresa para empresa”.

[4] Acre, Alagoas, Amapá, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Roraima, Rondônia e Sergipe.

[5] Repercussão geral reconhecida pela Corte – Tema 615.

[6] Apesar de o julgamento dos 3 processos ter ocorrido em 17/09/2014, a decisão das ADIs foi publicada no DJe de 24/11/2014 e a do RE foi publicada no DJe em 03/12/2014 .

[7] Tramitam na Câmara dos Deputados as PECs 31/2007 e 227/2008, e, no Senado Federal, a PEC 103/2011, cujo escopo é modificar a sistemática de cobrança do ICMS nas operações interestaduais realizadas de forma não presencial.

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