ICMS. A “competição fiscal” entre os Estados face ao novo entorno jurisprudencial
por Marcos André Vinhas Catão
Professor de Direito Financeiro e Tributário da FGV. Doutor em Direito Público pela Universidad San Pablo – CEU, Espanha, Mestre em Direito Tributário pela Universidade Candido Mendes. Diretor da ABDF e Membro do General Council da IFA. Advogado.
por Sara Regina Diogo
Pós-Graduanda em Direito Tributário pelo IBET. Advogada
A manifestação do STF na sessão de 01.06.11
O julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade relacionadas à concessão, sem prévia aprovação do CONFAZ[1], de benefícios fiscais no âmbito do ICMS devolveu ao cenário nacional o mais antigo – e polêmico – debate da organização econômica e social do País: a necessidade de reformas ou reformas do sistema tributário, seja por meio de emenda ao texto constitucional, como ocorre com a natimorta PEC nº 233/2008, seja pela harmonização (correção) legislativa que pode ser empreendida pelos tribunais superiores.
Independente da natureza da via a ser adotada para se implementar “reformas”, o STF, ao declarar a inconstitucionalidade de diversas legislações estaduais que unilateralmente concediam benefícios fiscais aos contribuintes estabelecidos em seus respectivos territórios, deflagrou novo status à competição dos estados na atração de investimentos, status quo popularizado pela expressão “guerra fiscal”[2].
De forma pragmática, a procedência das ADIN’s propostas pelos Estados que se sentiram prejudicados por benefícios fiscais concedidos por outros Entes Federativos fragilizou ainda mais o débil arquétipo constitucional e legal em que se assenta o regime jurídico brasileiro de incentivos, mais especialmente, e por sua relevância em uma federação, enquanto aos incentivos do ICMS [3].
De pronto, a incerteza e segurança – independentemente de um juízo de valor quanto à edição de medidas concessivas de incentivos outorgas pelos Estados – perpassavam desde apreensões e autuações, como pela “glosa” dos créditos do ICMS[4] por parte das Fazendas dos estados destinatários de mercadoria oriunda de empresa detentora de benefício. Se no âmbito da solução administrativa de conflitos, os órgão julgadores administrativos quase que unanimemente confirmavam lançamentos fiscais, por sua vez, na esfera judicial, salvo exceções, restara razoavelmente sólido o entendimento de que seria indevida a glosa de créditos decorrentes de benefícios fiscais outorgados por outros Estados da Federação.
Nessa hipótese, uma vez que os entes federados se sentissem prejudicados deveriam buscar a via adequada para reclamar os prejuízos que entenderam sofrer em decorrência da indevida concessão de benefícios. Nesses termos, não caberia ao Estado no qual se encontra o destinatário da mercadoria que recebeu o benefício de natureza fiscal atribuir a este, adquirente, o atributo de identificar ofensas legislativas. Outrossim, até então, tanto o contribuinte quanto os entes político concedentes de incentivos, encontravam-se amparados pela presunção de constitucionalidade de leis ou atos normativos devidamente editados pelas Unidades da Federação, em virtude de toda a construção doutrinária e jurisprudencial que se amparava no princípio de confiança legítima[5].
Contudo, com o julgamento da AC 2611 a Ministra Ellen Gracie, prefaciou a situação que ora se apresenta: de acordo com o entendimento proferido pela Relatora, seria admissível a glosa dos créditos de ICMS provenientes de mercadorias agraciadas por benefícios fiscais, cuja inconstitucionalidade das respectivas leis isentivas já tivessem sido declaradas, desde que tão e quão a legislação concessiva viesse a ser suprimida do ordenamento por meio de uma ação em sede concentrada. A partir daí, assentou-se uma doutrina de que para fins de exigibilidade do ICMS do sujeito passivo, e também para a glosa do crédito do adquirente ex vi do art. 8º da LC 24/75, far-se-ia necessária a decretação prévia de inconstitucionalidade por parte do STF.
Em consequência, as decisões proferidas em massa pelo Supremo Tribunal em ADIN´s de inconstitucionalidades de benefícios fiscais, expõe os entes políticos (Estados) e contribuintes a um novo cenário que se procura desvendar, notadamente para aqueles incentivos que não foram objeto de suspensão ou eliminação de eficácia por parte do STF.
Possíveis cenários
De imediato, não há como negar que qualquer que seja a leitura das decisões mais recentes do STF, lacunas continuarão a ocorrer em um futuro próximo, salvo se alterado por completo o regime brasileiro de controle de incentivos fiscais, o que não nos parece nada provável.
A começar por se reconhecer que até ulterior modulação dos efeitos dos julgados proferidos pelo STF, a mera declaração de inconstitucionalidade das leis estaduais que concederam um ou outro incentivo não alteram imperativamente a realidade dos verdadeiros destinatários da norma. Apenas consuma a perspectiva de que poderão arcar com um ônus na qualidade de sujeito passivo. Como antes aduzido, menos ainda são afetados de imediato os contribuintes que não se encontrem em situação de fato albergada por incentivo não declarado em sede de controle concentrado pelo STF.
Mas, há que se reconhecer que ante a doutrina afirmada pela Min. Ellen Gracie e o posicionamento do STF em junho passado, ser possível que se siga um cenário de que as pendentes ADIN´s de incentivos fiscais estaduais sejam examinadas sob um regime de fasttrack. Configura-se então uma perspectiva a qual abaixo cogitamos analisar, sob os enfoques que nos parecem mais relevantes.
1ª. perspectiva: Ao acelerar os processos de ações diretas de inconstitucionalidade, o STF, além de afirmar ser contrário a maioria dos incentivos financeiros ou fiscais concedidos fora do Confaz, vai impedir a prática de alguns estados de reeditar uma nova lei, como forma de fraudar uma possível decisão do STF que julgue um incentivo como inconstitucional.
Primeiro, há uma tendência no STF que caminha no mesmo sentido do projeto de Resolução do Senado[6]: reprimir de forma mais enfática os incentivos tipicamente fiscais (não financeiros) concedidos fora do CONFAZ, em especial os que desoneram a importação, sem contrapartida de novos investimentos pelo incentivado. Assim, o primeiro aspecto é de que o STF sinalizou que vai julgar prioritariamente os casos por meio de ações diretas de inconstitucionalidade (ADIN´s) o que eliminaria e necessidade de julgar os casos concretos, os quais teriam uma solução vinculada a respectiva ADIN, sem eventualmente a necessidade de que esses chegassem ao STF, aproveitando-se de imediato autuações e execuções já em curso. Com isso, outorgar-se-ia maior controle ao novos incentivos os quais demoram anos e anos a serem examinados pelo STF, e permitem a frustração de decisões pela perda de objeto, conquanto novos incentivos substituem outros por meio de uma nova legislação.
2ª. perspectiva: Paradoxalmente, a situação expõe mais o adquirente da mercadoria (glosa de crédito) do que a própria empresa que obteve o incentivo já que o estado que concedeu o incentivo exige tributo do beneficiado em caso de declaração de inconstitucionalidade (venire contra factum próprio).
Um segundo aspecto que nos parece relevante é de que o STF, ao apressar as ADIN´s está querendo legitimar a sanção indireta vasada na glosa de créditos (artigo 8 da LC 24/75). Legitima assim que seja controlado o incentivo mais pela ótica da concorrência do que pela sanção tradicional de índole pecuniária. Nesse contexto, uma vez que empresas passam a exigir de seus fornecedores e prestadores o compromisso de não se inserir em regimes de incentivo, ou até mesmo o reembolso de pagamento de autuações pelo fato de se ter adquirido mercadoria incentivada, o controle se transporta para as relações privadas.
Ademais é pouco provável que o próprio Estado que concedeu o benefício venha a punir o beneficiário da norma que ele mesmo sancionou. Tampouco poderia fazê-lo, indiscriminadamente, pois tal exigência acabaria por esbarrar em situações jurídicas construídas onde o beneficiário da norma isentiva e a Unidade da Federação firmaram acordos (de natureza contratual) ao abrigo da lei, muito desses, diga-se de passagem, de natureza não fiscal (vg doação de terreno).
3ª. perspectiva: os incentivos que tenham sido outorgados sob a condição da realização de investimentos efetivos (ativos de produção) pelo incentivado, mediante termos de acordo (natureza contratual), tendem a ser protegidos, especialmente em relação a se exigir o pagamento do ICMS retroativamente.
Malgrado os efeitos retroativos[7] e não somente prospectivos que vige em nosso Direito, resta saber se em qualquer hipótese haveria ou não efeito retroação das decisões, e, em que extensão dos efeitos punitivos[8]. Ou seja, se o Estado poderia exigir da empresa e/ou do adquirente o imposto ou estorno de crédito 5 anos para trás.
Aqui, a nosso ver, há uma diferença de conseqüências a partir do tipo de incentivo. Os benefícios outorgados sob a forma de contrapartida de investimento tais como construção de novas unidades comerciais e industriais realizadas pela empresa, terão a proteção de uma tradicional jurisprudência do STF, pelo qual incentivos concedidos sob condição (contrapartida de ativos/investimentos), não podem ser anulados e devem ter seus efeitos preservados ao menos até o prazo de fruição. (Sumula 544 do STF[9] e princípio de confiança legítima).
4ª. perspectiva. Os estados restringirão os incentivos até que se tenha um cenário mais sólido quanto à modulação judicial e possíveis propostas normativas de transição.
Ainda que de lege ferenda, a outorga de incentivos tendem a ser reduzidas assim como seguramente menos candidatos optarão por novos benefícios. Há quem sustente que do ponto de vista normativo, a decisão do STF de per se pacificaria a questão, ainda que possa ocasionar uma situação não isonômica entre novos agentes e aqueles já beneficiados por normas de incentivos cuja suspensão não vá afetar direitos adquiridos. De fato existem incentivos, especialmente os industriais e baseados em variáveis e condições de investimento, como no caso da ampliação ou construção de plantas industriais, que deverão ser de alguma forma preservados tanto pelo STF quanto – especialmente – por uma solução legislativa (convalidadora de incentivos fiscais anteriormente concedidos; de forma geral ou seletiva)
Finalizando, quer nos parecer que de alguma forma, a decisão do STF caminhou em um sentido mais concreto de se eliminar a excessiva permissividade na concessão de incentivos, a qual, do ponto de vista econômico, se por um lado criava oportunidades, ao final, restavam invariavelmente em uma violação do princípio de neutralidade econômica.
Todavia, essa é apenas mais uma etapa em busca da consolidação de um regime jurídico-normativo de controle de incentivos que urge ser alterado e corrigido, não somente no plano judicial.
Como pode ser comprovado pelo altíssimo grau de conflitividade judicial, a ineficiência do atual regime, o qual estranhamente se acomoda entre duas opções distintas (liberalismo ou harmonização fiscal) acaba por ser prejudicial a todos indistintamente, sem prejuízo de outros valores tutelados constitucionalmente.
[1] LC 24/75, art. 1º.
[2]O plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), afirmando sua doutrina anteriormente assentada quanto à inconstitucionalidade de incentivos fiscais ou financeiros concedidos por legislações estaduais sem o iter previsto na Lei Complementar 24/75, julgou no dia 01.06.2.011 catorze ações (ADIn´s) contra leis estaduais que concediam reduções e isenções fiscais a empresas e setores econômicos sem que houvesse Convênios ICMS para esse fim.
Durante o julgamento (disponível em http://www.youtube.com/watch?v=2n6nS6Sa5Oc) os ministros reafirmaram a doutrina do Tribunal, no sentido de declarar inconstitucionais leis e regras que permitem a concessão de benefícios sem acordo interestadual. O presidente do STF, ministro Cezar Peluso, explicou que os processos foram julgados em conjunto para que não houvesse benefício a algum estado em detrimento de outro. De fato, restou evidente que ao julgar leis de vários estados, e das diferentes regiões do País, se procurou dar uma conotação de assistemia, onde um mesmo Estados atuava ora como réu, ora como demandante. Demonstrava-se então que a proliferação de incentivos mesmo por Estados mais reticentes como São Paulo e Rio de Janeiro em subtrair o regime do CONFAZ, já encontrava-se conflagrada de há muito.
[3]CF art. 150, § 7º e 155, § 2º, X, “g” e Leis Complementares 24/75 e 101/00.
[4] Com base no art. 8º da LC 24/75 e atos normativos estaduais.
[5] Na Europa, situação similar se produzia em relação a incentivos fiscais que eram e ainda são produzidos unilateralmente pelos Estados sem a anuência da Comissão Européia, em potencial violação ao regime jurídico engendrado pelo atual artigo 97 do Tratado de Lisboa (Tratado da União Européia). Todavia, ali, em especial a partir da década de 90, se afastou a invocação do princípio de “confiança legítima” sob o argumento de que a “confiança legítima” deriva não apenas de uma norma, mas sim do sistema como um todo. Se a norma é incompatível com o Tratado (no caso por exemplo uma lei x de um país europeu) não se poderia invocar tal princípio pois cabe ao destinatário da norma conhecer não apenas esta mas sim o regime jurídico perpetrado pelo Sistema Comunitário Europeu. Cf. Marta VILLAR EZCURRA, SSTJCE SSTJCE, “Demesa y Ramondin”, Asuntos acumulados C-183/02 y C-187/02 P y Asuntos acumulados C-186/02 P y C-188/02 P: ayudas de Estado. Medidas fiscales. Motivos nuevos. Confianza legítima. Desviación de poder. Falta de motivación. Revista Crónica Tributaria 124, 2007
[6] Entre as propostas que se inserem como medidas de reforma, a mais possível se refere à alteração dos percentuais de alíquotas interestaduais e de importação. Além de suscitar o debate sobre um regime mais ou menos de origem ou de destino, espacialmente a raiz da problemática do comércio eletrônico (quase que integralmente na origem), visa a eliminar os benefícios que acabam por beneficiar a importacao pela possibilidade de translação do imposto não pago ao adquirente sob a forma de crédito escritural.
[7]Art. 27 da Lei 9868/99
[8] Entre multa, principal e juros, até mesmo em virtude do que prescreve o art. 100 do CTN.
[9] Isenções tributárias concedidas, sob condição onerosa, não podem ser livremente suprimidas.