Da penhora de recebíveis de cartões de crédito nos executivos fiscais

Por Marcos A. F. Lemos
Advogado, inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil em 2006, graduado pela Faculdade Nacional de Direito/UFRJ e pós-graduando em Direito Fiscal pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Introdução

Da Possibilidade de Penhora dos Créditos Futuros Recebíveis das Administradoras de Cartão de Cartão de Crédito nos Executivos Fiscais. Das Modificações Trazidas pela Lei 11.382/2006 e suas Implicações Tributárias. Da Ofensa a Ordem do Art. 11 da Lei de Execução Fiscal: Da Busca da Real Natureza Jurídica dos Recebíveis oriundos das Administradoras de Cartão de Crédito. Conclusão.

I – Introdução: Da Possibilidade de Penhora dos Créditos Futuros Recebíveis das Administradoras de Cartão de Crédito nos Executivos Fiscais.

Este artigo objetiva analisar a possibilidade de penhora de créditos futuros existentes junto às operadoras de cartões de créditos devidos por pessoas jurídicas no âmbito de execuções fiscais, ante a não localização de valores em contas bancárias pelo Bacen-Jud[2], analisando a jurisprudência pertinente, com especial foco nas suas nuances tributárias- constitucionais.

Em apertada síntese, a possibilidade de se penhorar tais créditos futuros baseia-se no entendimento de que os valores repassados pelas operadoras de cartão de crédito podem ser classificados de acordo com o art. 655, I do Código de Processo Civil – dinheiro, em espécie ou em depósito ou aplicação em instituição financeira, por supostamente corresponderem a créditos certos que decorrem de operações já realizadas, efetivando-se, assim, na forma do artigo 655-A do Código de Processo Civil, do artigo 11 da Lei de Execuções Fiscais, que pela sua ordem de preferência elenca o dinheiro em primeiro lugar, bem como pelo artigo 185-A do Código Tributário Nacional.

Partindo-se do pressuposto que, tais créditos poderiam ser classificados na forma da legislação processual civil pelo artigo 655, I, poderiam as Fazendas Públicas, em sendo devidamente citado o executado e não tendo nomeado bens à penhora, requisitar a expedição de ofício para administradoras de cartão de crédito para a efetivação da dita medida, podendo esta, na prática, ser comparada à penhora online disciplinada pelo Art. 185-A do Código Tributário Nacional,  dando asno assim a uma série de ilegitimidades com a eventual possibilidade de penhora de toda a sorte de recebíveis existentes, em total rota de colisão com consagrados princípios do processo judicial tributário.

 II – Das Modificações Trazidas pela Lei 11.382/06 e suas Implicações Tributárias: Breve Análise Histórica[3]

Não há dúvidas que, em sendo aceito como dinheiro, ou a ele equiparado, a penhora de tais créditos se submeteriam a prática e célere sistemática do art. 655-A do CPC, com redação dada pela Lei 11.382/06.

Nesta toada, imprescindível, a realização de trabalho hermenêutico árduo para se verificar se a norma contida no artigo 185-A do Código Tributário Nacional foi afetada pelas modificações da legislação processual civil introduzidas por esta lei.

Com efeito, antes da vigência da Lei 11.382/06, firme era o entendimento de que o bloqueio eletrônico de depósitos ou aplicações financeiras, através de expedições de ofícios à Receita Federal e ao BACEN pressupunham o esgotamento, pelo exeqüente, de todos os meios de obtenção de informações do executado e seus bens e que as diligências restassem infrutíferas, relativizando-se, assim, a aplicação do art. 11 da Lei 6.830/80 (Lei de Execução Fiscal) e o art. 655 do CPC.

De fato, com o advento do artigo 185-A do Código Tributário Nacional, introduzido pela Lei Complementar 118 de 2005, corroborou-se a tese de necessidade de exaurimento das diligências possíveis para a localização de bens passíveis de penhora antes da decretação da indisponibilidade de bens e direitos do devedor executado[4]. Porém, a partir da vigência da Lei 11.382/06, a aparente dicotomia entre o art. 185-A do CTN e os artigos 655 e 655-A do CPC deu lugar a tese de que o crédito privado não poderia ser mais cotejado que o crédito público, principalmente no que tange à cobrança do crédito tributário, dado que a própria Constituição da República elenca como regra geral o dever fundamental de pagar tributos, conforme seu artigo 145 e seguintes.

Assim, ao que tudo indica, aproveitam-se as Fazendas Públicas desse entendimento para ver efetivar a sua tese de possibilidade de penhora desses recebíveis, dando a estes a pecha de dinheiro, na forma do artigo 655, I do CPC, ignorando o fato de que tais valores representam, de fato, o faturamento dos executados, devendo ser revestidos, quando da decretação da penhora, de formalidades próprias, sob pena de total nulidade, eis que esta apenas poderá ser deferida quando cumulativamente restarem infrutíferas tentativas de constrição de outros bens suficientes a garantir a execução, ou caso encontrados, sejam tais bens de difícil alienação, necessidade de nomeação de administrador, nos moldes dos artigos 678 e 719 do CPC, levando-se sempre em consideração a manutenção da viabilidade do próprio funcionamento da empresa.

Cabe ainda destacar que a penhora sobre esses recebíveis não ostentam caráter absoluto e deve ser interpretada em consonância com os princípios constitucionais do devido processo legal, da proporcionalidade, razoabilidade[5], proibição de confisco e do retrocesso, e obviamente, pelo princípio da menor onerosidade possível da execução para o executado, sob pena de se tornar inviável o exercício da atividade empresarial, visto que ao se considerar que outros ativos ou bens não foram localizados, os valores recebíveis de administradoras de cartões de crédito, em verdade, poderiam corresponder à totalidade do patrimônio do devedor.

 III – Da Ofensa a Ordem do Art. 11 da Lei de Execução Fiscal. Da Busca da Real Natureza Jurídica dos Recebíveis oriundos das Administradoras de Cartão de Crédito.

Analisadas sob o enfoque jurídico-econômico, as operações com cartões de crédito são operações complexas, que revelam, na verdade, uma simples expectativa de direito para o fornecedor da mercadoria ou serviço, que recebe os valores das administradoras, mediante o desconto de certa comissão, definida contratualmente.

De maneira bem rasa, são tais recebíveis equiparáveis aos “direitos e ações” – um dos últimos itens listados no art.11, VIII da Lei de Execução Fiscal – guardando intrínseca relação com os precatórios, que também são classificados na mesma forma e que quando oferecidos em sede de execução fiscal como garantia são peremptoriamente recusados pelas Fazendas sob a alegação de malferimento a ordem do retromencionado artigo, tendo a chancela do Judiciário para tal.

Aceitar a classificação dos recebíveis de cartões de crédito como dinheiro representa, em última análise, uma total assimetria ao entendimento já firmado no Superior Tribunal de Justiça para a sistemática de oferecimento de precatórios em sede de execução fiscal[6], visto que os precatórios, espécie de recebíveis que são na sua acepção lato sensu, guardam consigo indiscutível caráter de solvência, eis que garantidos por força de decisão judicial – o que não se pode afirmar, com igual proficiência, para os valores administrados pelas operadoras de cartão de crédito.

 III – CONCLUSÃO

Essa aparente inversão de interpretativa dos ditames legais impulsionada pelo Fisco de tentar fazer prevalecer a sua tese de que os recebíveis de cartões de crédito podem ser equiparados a dinheiro encontra reflexo na inexistência, em nosso ordenamento jurídico, de uma tradição hermenêutica constitucional para esse ramo do direito.

Apesar de representar solar violação aos princípios de razoabilidade, capacidade contributiva e por que não dizer, vedação ao confisco – a discussão aqui apresentada ainda não foi analisada sobre esse viés em nossos tribunais. E tal fato se justifica, pois, os princípios constitucionais relacionados à justiça da tributação sucumbem a uma visão estritamente formalista do sistema tributário brasileiro.

Na redação do Código Tributário Nacional, havia uma clara tendência à limitação do âmbito de aplicação do direito tributário numa tentativa de se eliminar subjetivismos e dar mais certeza ao direito. No plano teórico o tema referente aos princípios e a força jurídica atribuída a eles está intimamente ligado ao questionamento surgido no pós-positivismo, contrário as idéias positivistas, concebendo o sistema jurídico como um conjunto de regras e princípios e não somente como um sistema de regras como ocorria no positivismo clássico[7].

A questão discutida ao longo deste trabalho se coaduna perfeitamente com o problema referente a materialização dos direitos fundamentais[8] em matéria fiscal-tributária, que encontra óbice na tendente implementação de políticas arrecadatórias cada vez mais vorazes pelo Estado Brasileiro, que por sua vez, compromete o nível de concretização dos direitos fundamentais previstos na Constituição – o que não se pode admitir, cabendo aos intérpretes e operadores deste ramo do Direito, a responsabilidade por tentar encontrar um meio para que os fins arrecadatórios do Estado andem sempre de mãos dados com os princípios constitucionais tributários, sob pena de subversão de todo o regime existente.

BIBLIOGRAFIA

  • ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios jurídicos. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 12 ed. São Paulo: Malheiros. 2011.
  • BOBBIO, Norberto. Teoria dell Ordinamento Giurídico, Turim, Giappichelli Edeitore, 1994.
  • CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 12ª ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 1999.
  • MARQUES, José Frederico; SANDOVAL, Ovídio Rocha Barros. Instituições de Direito processual Civil. Rio de Janeiro: Ed. Millennium, 2000.
  • MEDINA, José Miguel Garcia. Execução civil – teoria geral dos princípios fundamentais. 2 ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
  • THEODORO JÚNIOR, HUMBERTO. Lei de Execução Fiscal. 3ª ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 1993.
  • WAMBIER, Luiz Rodrigues; ALMEIDA, Flávio Renato Correia de; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil. Vol. 2, 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.


[2] O Bacen Jud é um instrumento de comunicação eletrônica entre o Poder Judiciário e instituições financeiras bancárias,utilizado pelos magistrados para protocolizarem ordens judiciais de requisição de informações, bloqueio, desbloqueio e transferência de valores bloqueados, que serão transmitidas às instituições bancárias Observa-se que nestes casos, ao magistrado é facultada a consulta, para fins de averiguação de existência de valores depositados, de titularidade do devedor, condicionada a posterior expedição de mandado de penhora e avaliação, após exame, pelo juízo do feito, das circunstancias fáticas que envolvem a pendência, na busca da satisfação do crédito, sem desprezar, ainda, o equilíbrio de tratamento entre as partes,a conveniência, ou não do bloqueio pretendido, principalmente em se tratando de contas em que a origem do numerário ali existente possa conduzir a inviabilidade da constrição, seja pela sua eventual vedação legal ou pela sua natureza alimentar.

[3] Análise jurisprudencial realizada com base nos seguintes acórdãos: EDcl nos EREsp n° 1184765. Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Seção, julgado em 30.05.2012. Acessado em 12/09/2012, Disponível em https://ww2.stj.jus.br/processo/revistaeletronica/inteiroteor?num_registro=201264&data=15/6/2012; AgRg  no Ag n°1161122/SP. Rel. Min. Benedito Gonçalves, Primeira Turma, Julgado em 19.11.2009. Acessado em 12/09/2012. Disponível em https://ww2.stj.jus.br/processo/revistaeletronica/inteiroteor?num_registro=200900376571&data=30/11/2009; EDcl nos EREsp n° 819.052/RS. Rel. Ministro Humberto Martins, Primeira Seção, julgado em 08.08.2007, DJ 20.08.2007. Acessado em 12/09/2012. Disponível em https://ww2.stj.jus.br/processo/revistaeletronica/inteiroteor?num_registro=20066484&data=20/8/2007; EREsp n° 662.349/RJ, Rel.Ministro José Delgado, Primeira Seção, julgado em 10.05.2006, DJ 09.10.2006; Acessado em 12/09/2012. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revistaeletronica/inteiroteor?num_registro=200501915&data=9/10/2006; REsp. 796.485/PR, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 02.02.2006, DJ 13.03.2006.Acessado em 12/09/2012. Disponível em https://ww2.stj.jus.br/processo/revistaeletronica/inteiroteor?num_registro=200501884070&data=13/3/2006; REsp. n° 771.838/SP, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 13.09.2005, DJ 03.10.2005; Acessado em 12/09/2012.  Disponível em https://ww2.stj.jus.br/processo/revistaeletronica/inteiroteor?num_registro=200501287041&data=19/12/2005;

[4] Sobre interessante crítica ao instituto da penhora online, vide BARRETO, Aires F e Gilberto Rodrigues Gonçalves. A penhora “on line” na Execução Fiscal e a LC 118. Em Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n° 116, Maio 2005.

[5]Para maior aprofundamento sobre o tema, vide Cunha, Leonardo José Carneiro da. A Lei 11.382/2006 e seus reflexos na Execução Fiscal. Em Revista Dialética de Direito Processual Civil n° 49, Abril 2007, pp. 96/106.

[6] Apesar dos contribuintes alegarem que os precatórios seriam assemelhados a dinheiro na maioria dos casos, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já firmou entendimento, submetido ao regime do artigo 543-C do Código de Processo Civil, no sentido de que, apesar de penhoráveis, os precatórios não podem ser dados em garantia por flagrante desobediência da ordem prevista de bens penhoráveis prevista no artigo 11 da Lei n° 6830/30 e ainda a sua baixa liquidez – REsp 1.090.898/SP, Rel. Min. Castro Meira, Primeira Seção, DJ 31.8.2009.

[7] BOBBIO, Norberto. Teoria dell Ordinamento Giurídico, Turim, Giappichelli Edeitore, s/d p. 181-182.

[8] ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios jurídicos. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 12 ed. São Paulo: Malheiros. 2011, p. 194.

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