Análise da Constitucionalidade das Taxas Recentemente Instituídas pelo Estado do Rio de Janeiro

por Sarita Cristine Dias Leite
Graduada em 2014 pela Universidade Cândido Mendes
Pós-graduanda em Direito Aduaneiro pela Universidade Cândido Mendes
Advogada com atuação na área tributária

 

Recentemente, os contribuintes do Estado do Rio de Janeiro se depararam com a exigência de duas taxas, notadamente ilegais e inconstitucionais. São elas a “Taxa Única de Serviço de Receita Estadual”, instituída pela Lei nº 7.176/2015; e a “Taxa de Controle, Monitoramento e Fiscalização Ambiental das Atividades de Pesquisa, Lavra, Exploração e Produção de Petróleo e Gás – TFGP”, constituída pela Lei nº 7.182/2015.

Em um primeiro momento, as iniciativas do Governo do Estado do Rio de Janeiro assustaram os contribuintes quanto à sua instituição e obrigatoriedade. Conforme será demonstrado a seguir, é importante salientar que ambas as exações não são compatíveis com o sistema tributário nacional por afronta desarrazoada e ilegal de inúmeros preceitos insculpidos em nosso ordenamento jurídico.

Como se sabe, o artigo 145, inciso II, da Constituição Federal delegou à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a instituição de tributos, dentre eles, as taxas, em razão do poder de polícia, ou pela sua utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos à sua disposição.

Essa espécie de tributo é tratada pelo Código Tributário Nacional, em seus artigos 77 a 80, em momento anterior à promulgação da Constituição Federal, já havia determinado as suas modalidades, fato gerador, base de cálculo e hipóteses de incidência. Segundo Ricardo Lobo Torres[1], “A taxa é um tributo contraprestacional, posto que vinculado a uma prestação estatal específica em favor do contribuinte. É cobrada pela prestação de serviços públicos ou pelo exercício do poder de polícia.”

Por essa razão, as taxas constituem exações vinculadas a uma atuação estatal específica relacionada com o contribuinte. Nesse sentido, é o entendimento firmado por Hugo de Brito Machado[2], ao discorrer:

“Bastante divulgada é a idéia de que a taxa é um tributo contraprestacional, vale dizer, o seu pagamento corresponde a uma contraprestação do contribuinte ao estado, pelo serviço que lhe presta, ou pela vantagem que lhe proporcional. Não nos parece que seja assim. […]. Entendemos até que a instituição e cobrança de uma taxa não têm como pressuposto essencial um proveito, ou vantagem, para o contribuinte, individualmente. O essencial, na taxa, é a referibilidade da atividade estatal ao obrigado. A atuação da taxa há de ser relativa ao sujeito passivo desta, e não à coletividade em geral. Por isto mesmo, o serviço público cuja prestação enseja a cobrança da taxa há de ser específico e divisível, posto que somente assim será possível verificar-se uma relação entre esses serviços e o obrigado ao pagamento da taxa. Não é necessário, porém, que a atividade estatal seja vantajosa, ou resulte em proveito do obrigado.”

Nesse sentido, segundo a legislação infraconstitucional, entende-se como atividade inerente da administração pública a regulação de certas práticas de atos que tangem a segurança, a ordem eo exercício de atividades econômicas que dependem da concessão do Poder Público.

Por essa razão, conforme preleciona Ricardo Alexandre[3], para que seja possível a cobrança desse tipo de taxa, o exercício do poder de polícia deve ser regular, em obediência ao devido processo legal e sem abuso de poder.

Por outro lado, as taxas de serviço são uma contraprestação do Estado que, mediante a disponibilização dos serviços públicos, cuja natureza observem os critérios de divisibilidade e especificidade, cobram um determinando montante com vistas à realizá-la.

Dessa forma, a taxa tem caráter específico quando o contribuinte, ao pagá-la, sabe exatamente por qual serviço está sendo cobrado e tem viés divisível quando o próprio Estado possui meios de identificar os usuários do serviços que serão financiados com a taxa instituída.

Da Cobrança Inconstitucional Da Taxa Única De Serviços      

A despeito das discussões preliminares relativas à extensão das ilegalidades cometidas pelo Estado do Rio de Janeiro, chama atenção a Lei nº 7176/2015, que sujeita os contribuintes de ICMS do Estado do Rio de Janeiro ao pagamento de uma exação, cuja base de cálculo é o total de saídas e de documentos fiscais eletrônicos emitidos, a considerar o que for maior no ano-base. Aludida taxa deverá ser recolhida trimestralmente, nos valores variáveis de R$ 2.101,61 e R$ 30.023,00, que passará a vigorar a partir do dia 29 de março de 2016.

Vale destacar que a referida lei alterou o inciso I do artigo 107, do Código Tributário Estadual, a fim de substituir as taxas previstas para a realização de cada um dos serviços específicos e divisíveis listados no diploma legal.

Em um primeiro momento de análise da legislação, é possível identificar, sem maiores esforços, que a taxa ora instituída fere sobremaneira os princípios da legalidade e inconstitucionalidade, sobretudo porque deixa de observar princípios basilares da nossa pátria legislação. Esse fato é constatado porque (i) inexiste um serviço específico e divisível a ser custeado por meio de taxa; (ii) não há qualquer correlação entre os valores cobrados pelo Estado do Rio de Janeiro e o custo dos serviços prestados ou colocados à disposição dos contribuintes; (iii) é impossível a alteração do Código Tributário Estadual por meio de lei ordinária e; (iv) é inequívoca a violação ao princípio de isonomia ou não confisco.

Conforme mencionado, a lei em questão modificou o Código Tributário Estadual, sendo certo de que qualquer alteração a este diploma legal reserva-se tão somente à lei complementar, conforme estabelecido pelo artigo 146, inciso III, da Constituição Federal.Uma vez realizada a referida alteração, o legislador estadual atuou ao arrepio do ordenamento jurídico vigente, causando enorme instabilidade nas relações jurídicas e atropelando princípios constitucionais que regem as relações entre o poder público e os cidadãos.

Além disso, vale destacar que da análise da tabela contida na mencionada lei, pode-se notar, claramente, que a taxa ora debatida sobre os serviços estaduais incidirá sobre os valores de “saída” das empresas contribuintes. Entretanto,a lei não se prestou a especificar esse tipo de movimentação.

No que concerne essa questão propriamente, o faturamento das empresas não pode ser utilizado como critério para estabelecer a cobrança de qualquer taxa, vez que não guarda sequer relação com os serviços prestados pelo Estado do Rio de Janeiro. Por essa razão, é evidente que, segundo os preceitos constitucionais, a sua cobrança deve estar diretamente vinculada ao custo do serviço exercido pelo ente público, o que não foi observado pelo legislador.

Aludida taxa viola, ainda, o princípio da isonomia estabelecido no artigo 5º da Constituição Federal, que, trazido à luz do direito tributário, pode ser verificado por meio do artigo 150 do mesmo diploma legal,que veda o tratamento desigual entre os contribuintes que se encontrem em situação equivalente. Isso porque alguns contribuintes, que sequer utilizarão os serviços disponibilizados pelo Estado do Rio de Janeiro,arcarão com o mesmo valor, a título de taxa, do pago por aqueles que utilizarão inúmeras vezes.

Ainda, ao determinar o pagamento de um tributo, mesmo que trimestralmente, independente de o contribuinte possuir atividade ou não durante aquele período, é violado o principio do não confisco do aludido artigo 150 da Constituição Federal, já que o tributo, como se sabe, não pode ser utilizado para destruir o patrimônio alcançado pelo contribuinte.

Da Inconstitucionalidade da TFGP

Por sua vez, com relação à taxa instituída pela Lei nº 7.182/2015, sua situação não lhe parece mais favorável. A referida lei determinou que o fato gerador é o exercício regular do poder de polícia ambiental por parte do Instituto Estadual do Meio Ambiente – INEA, consistente nas atividades previstas no artigo 2º da mencionada lei, cuja base de cálculo corresponde ao valor fixo de R$ 2,71 (uma unidade de UFIR) por barril de petróleo.

Primeiramente, um dos aspectos a serem observados concerne, sobretudo, à legitimidade do Estado do Rio de Janeiro para regular a incidência da aludida taxa, conforme disposto no artigo 23, inciso IV, da Constituição Federal, que determina a competência comum de todos os entes federativos para a preservação do meio ambiente.

Do fato da existência dessa competência igualitária,que regula a preservação ambiental, é imperioso observar se a atuação estatal, de maneira específica,tem relação com os interesses locais, regionais, ou nacional para definir exatamente qual o ente competente que fiscalizará e instituirá tributos sobre essa ação.

De toda sorte, o que se observa do artigo 2º da referida lei é que o interesse estatal extrapola, sem tamanho, o interesse regional, que justificaria a instituição dessa taxa, tendo como consequência imediata a invasão da competência federal de proteção ao meio ambiente, ou regulação de atividade petrolífera. Isso se revela, sobretudo, porque compete à União a respectiva fiscalização, carecendo os Estados de competência material para fazê-lo.

Nessa linha de raciocínio, a exploração e produção de petróleo no Estado do Rio de Janeiro são exclusivamente desempenhadas no mar territorial, na plataforma continental e na zona econômica exclusiva, área em que o poder de polícia ambiental compete ao Ibama, e não aos órgãos estaduais.

Além disso, a controvérsia ainda se verifica quando se analisa que a base de cálculo da referida taxa é própria de imposto. Nesse caso em específico,elaé mensurada pela contribuição do contribuinte, e não pela onerosidade e complexidade do poder de polícia ambiental, que jamais poderia ser calculada pela produção de barris de petróleo. Tal manobra é vedada pelo ordenamento jurídico vigente, tendo, nesse sentido, sido editada a Súmula Vinculante nº 29, que determinou ser constitucional a adoção, no cálculo da taxa, de um ou mais elementos de base de cálculo de determinado imposto, desde que não haja integral identidade entre uma base ou outra, como é o caso da cobrança especificamente dessa taxa.

O que se observa é que a base de cálculo da taxa de fiscalização e do ICMS é a mesma, pois considera a quantidade de mercadoria saída por venda ou transferência. Nesse sentido, é a proibição constante no artigo 145, §2º da Constituição Federal, que determina a impossibilidade das taxas terem base de cálculo de imposto.

Nesse sentido, nos parece claro que a instituição das referidas exações nasce com vícios que comprometem desde o início a sua permanência no nosso ordenamento jurídico, quando é flagrante que a sua instituição visa a tratar a “sede arrecadatória” perpetrada pelo Estado do Rio de Janeiro, que tenta, a qualquer custo, elevar a sua arrecadação com medidas supostamente fiscalizatórias que não se justificam.

A despeito de todas as considerações expostas, e diante do clamor de todos os contribuintes e militantes na área tributária, foi colocada em discussão, por meio de Audiência Pública realizada no dia 23.03.2016, a legalidade da Lei nº 7176/2015. Em um primeiro momento, medidas foram estabelecidas para afastar, desde já, o pagamento dessas cobranças, já que são notadamente ilegais e ausentes de qualquer fundamentação jurídica.

Além disso, foram obtidas algumas liminares, em medidas judiciais propostas por empresas e associações, para que fosse suspensa a exigibilidade do recolhimento das taxas em questão. O entendimento demonstrado pelo Judiciário, ainda em primeira instância, é de que a instituição dessas taxas viola os princípios basilares da legalidade e constitucionalidade, que impedem a sua permanência no plano legal, suspendendo a sua cobrança até o deslinde final de toda esse absurdo jurídico.

Sendo assim, é evidente que a discussão não se encerra por aqui, certo de queela acarretará muitos contrapontos e desdobramentos na esfera judicial, haja vista que, sob qualquer ângulo que se examine, não pode o Estado do Rio de Janeiro atentar contra a Constituição Federal em benefício próprio a fim de satisfazer o único interesse de aumentar a arrecadação a qualquer custo.



[1] TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. Rio de Janeiro – São Paulo: Renovar. p.362.

[2] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 29. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2008.

[3]ALEXANDRE, Ricardo, Direito Tributário Esquematizado – 6ª ed. rev, e atual – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012, p.25-26

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