A Validade da Distinção entre Sociedades Domiciliadas em Jurisdições de Tributação Favorecida e Demais Jurisdições para fins de Aplicação das Regras de Controlled Foreign Corporations – CFC

por Fábio Capelletti
Advogado da Área Tributária do Escritório Barretto Ferreira e Brancher – Sociedade de Advogados
(BKBG)

por Caio Caetano Luna
Advogado da Área Tributária do Escritório Barretto Ferreira e Brancher – Sociedade de Advogados
 (BKBG)

Introdução

Este artigo aborda a questão da validade da diferenciação de tratamento entre as entidades estrangeiras domiciliadas em jurisdições de tributação favorecida[1] (comumente denominadas “paraísos fiscais”), e as domiciliadas fora dessas jurisdições, para fins de aplicação das regras de tributação de entidades no exterior que sejam controladas ou coligadas de pessoas jurídicas domiciliadas no Brasil (as chamadas regras de Controlled Foreign Corporations – “CFC”).

1. As Regras Brasileiras de CFC

Com a edição da Lei nº 9.249/1995, o Brasil passou a tributar a renda das filiais, sucursais, controladas e coligadas, no exterior, de pessoas jurídicas brasileiras. Essa lei foi regulamentada diversas vezes, com o intuito de se determinar o momento em que a renda deveria ser considerada tributável no País.

Inicialmente[2], estabeleceu-se que os lucros das coligadas ou controladas estrangeiras seriam considerados disponibilizados para a sociedade brasileira na data de seu pagamento, ou crédito em conta representativa de obrigação. Segundo essa sistemática, permitia-se que a tributação fosse diferida para o momento da efetiva disponibilização dos lucros à coligada ou controladora brasileira.

Posteriormente, a Lei Complementar nº 104/2001 alterou o Código Tributário Nacional de modo a determinar que as condições e o momento da ocorrência da disponibilidade dos lucros oriundos do exterior deveriam ser estabelecidos em lei específica. Nesse sentido, a Medida Provisória (“MP”) nº 2.158-35/2001, em seu artigo 74, definiu que a tributação ocorreria na data da apuração do balanço por parte da entidade estrangeira. Esse dispositivo foi regulamentado pela Instrução Normativa SRF nº 213/2002, que determinou que o balanço a ser considerado, para fins de incidência do IRPJ e da CSLL, seria o de 31 de dezembro de cada ano.

A partir da adoção desse novo regime, a tributação passou a ocorrer independentemente da efetiva distribuição financeira dos lucros apurados, ou mesmo da deliberação da entidade estrangeira que a autorizasse. Segundo nosso entendimento, trata-se de regime antidiferimento amplíssimo, que na prática consiste na desconsideração, para fins tributários, da personalidade jurídica das entidades estrangeiras de cujo capital participem as sociedades brasileiras.

 2. A Alegação de Inconstitucionalidade

A Confederação Nacional da Indústria (“CNI”), por entender que a referida Medida Provisória violava o conceito constitucional de renda, propôs a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.588 (“ADI nº 2.588”). O principal argumento apresentado foi que o mero fechamento do balanço das sociedades estrangeiras, em 31 de dezembro de cada ano, não configuraria aquisição de disponibilidade jurídica ou econômica de renda para a sociedade brasileira, o que, conforme a Constituição Federal e o Código Tributário Nacional, é a raiz do critério material da regra matriz de incidência tributária do Imposto sobre a Renda. Além disso, alegou-se que a indisponibilidade da renda seria ainda mais evidente no caso de entidades coligadas, uma vez que a sociedade investidora não detém o poder de determinar que seus lucros sejam distribuídos.

  Após doze anos de discussões e votos conflitantes, a ADI nº 2.588 foi finalmente decidida. O debate principal girou em torno de duas posições definidas: a primeira, julgando a MP plenamente constitucional, por considerar que, na verdade, tributava-se a renda da sociedade brasileira, auferida pelo reconhecimento dos lucros das entidades controladas e coligadas estrangeiras pelo Método da Equivalência Patrimonial; a segunda, julgando a MP inteiramente inconstitucional, por considerar que, até o momento da efetiva disponibilização econômica ou jurídica dos lucros, os resultados das sociedades estrangeiras estariam fora do alcance dos tributos sobre a renda. Dois votos, entretanto, diferenciaram-se dos demais: o da Ministra Ellen Gracie, que entendeu que a inconstitucionalidade da MP se limitava à tributação das entidades coligadas, sendo constitucional a cobrança sobre a renda das controladas; e o do Ministro Joaquim Barbosa, que entendeu que a tributação seria apenas constitucional para o caso de entidades coligadas ou controladas baseadas em paraísos fiscais, e inconstitucional para o caso de entidades coligadas ou controladas baseadas em jurisdições ditas “normais”.

Com base nesses votos, o STF julgou a ação parcialmente procedente, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, para considerar que: (i) o artigo 74 da MP nº 2.158-35/2001 não poderia se aplicar às empresas coligadas localizadas fora de países com tributação favorecida; e (ii) o dispositivo, contudo, seria aplicável às sociedades controladas localizadas em países de tributação favorecida. A decisão não dispôs de forma definitiva sobre o tratamento aplicável a sociedades coligadas localizadas em jurisdições de tributação favorecida (situação para a qual houve empate entre os votos), nem aquele ao qual se sujeitariam as sociedades controladas localizadas fora dessas jurisdições[3]. O resultado do julgamento pode ser ilustrado da seguinte forma:

Entidades

Localização

Em Paraísos Fiscais

Fora de Paraísos Fiscais

Coligadas

Não decidido

Não tributável (com efeito vinculante)

Controladas

Tributável (com efeito vinculante)

Tributável (sem efeito vinculante)

 3. Relevância do Domicílio da Entidade Estrangeira para o STF

 Conforme se observa do quadro acima, o STF considerou, independentemente do efeito vinculante da decisão, que: (i) os lucros das entidades estrangeiras controladaspor sociedades brasileiras podem sofrer tributação automática na apuração do balanço, em 31 de dezembro de cada ano, independente de seu domicílio; e (ii) os lucros das entidades estrangeiras coligadas a sociedades brasileiras não são passíveis de tributação automática, se essas sociedades forem domiciliadas fora de paraísos fiscais.

  Em relação às sociedades controladas, pode-se dizer que o critério do domicílio foi considerado irrelevante, ao menos em princípio, já que, em qualquer hipótese, foi admitida a tributação automática de seus lucros. Em relação às sociedades coligadas, ainda não é possível determinar se esse critério é ou não relevante, já que não se conhece a posição do tribunal sobre sua tributação no caso de domicílio em paraíso fiscal.

Para o Ministro Joaquim Barbosa[4], único votante na ADI nº 2.588 a se pronunciar de forma categórica sobre o tema, o domicílio das entidades deve ser determinante para a aplicação da regra de tributação automática dos lucros. Segundo se depreende de seu voto, o investimento em controladas ou coligadas em paraísos fiscais dificilmente teria outro objetivo que não a evasão fiscal, o que permitiria a presunção de intuito de fraude, autorizando a aplicação da regra antidiferimento constante no artigo 74 da MP nº 2.158-25/2001.  É possível observar que essa posição é claramente inspirada na política adotada por diversos países no combate ao que se chama de concorrência fiscal danosa (harmful tax competition)[5], segundo a qual as pessoas jurídicas controladas[6] sediadas em paraísos fiscais são consideradas “transparentes” para fins tributários, o que permite a tributação de sua renda pelo país da sociedade investidora, independentemente da efetiva distribuição de lucros.

 4. Validade da Distinção de Tratamento com Base no Domicílio

Em nosso entendimento, a presunção de intuito fraudulento poderia ser aplicada validamente apenas para o caso de sociedades que, cumulativamente: (i) fossem controladas, e não apenas coligadas; (ii) fossem sediadas em paraísos fiscais; e (iii) não exercessem atividade econômica substantiva nessas jurisdições. A razão para tanto, de forma semelhante à alegada pelo CNI na ADI nº 2.588, reside no conceito constitucional de renda e do critério material da hipótese de incidência do IRPJ e da CSLL.

O conceito constitucional de renda é pacificamente entendido como acréscimo patrimonial efetivo[7]. O artigo 43 do Código Tributário Nacional, por sua vez, determina que tal acréscimo ocorre apenas quando presente a disponibilidade econômica ou jurídica do rendimento. Portanto, não nos parece compatível com a ordem jurídica vigente que se determine, arbitrariamente, a ocorrência da disponibilidade de renda no fechamento do balanço 31 de dezembro de cada ano. Admitir esse entendimento seria considerar válida a incidência dos tributos sobre a renda independentemente da ocorrência efetiva de seu fato gerador, o que, segundo posicionamento do próprio STF[8], é inconstitucional. Nesse sentido, entendemos que:

  1. em relação às entidades meramente coligadas, a presunção de evasão fiscal por tentativa de diferimento do imposto não se justificaria em nenhuma hipótese, pois a sociedade investidora não tem o poder de determinar o momento da distribuição dos lucros da investida;
  2. quanto ao domicílio da entidade estrangera, entendemos que a presunção de ilicitude deva se restringir às jurisdições de tributação favorecida, pois não haveria, necessariamente, vantagem tributária alguma derivada de investimentos fora dessas jurisdições; e
  3. o requisito de exercício de atividade econômica substantiva deve ser considerado relevante porque, tratando-se de empresa efetivamente operacional, a opção pela não distribuição dos lucros pode ser justificada pela realização de novos investimentos, não necessariamente se relacionando com a busca pelo diferimento da tributação no domicílio da sociedade investidora.

 Conclusão 

Ante o exposto, entendemos que as regras de CFC devem levar em consideração a jurisdição de domicílio das entidades estrangeiras vinculadas às sociedades brasileiras. Contudo, a aplicação dessas regras deve se limitar às situações em que seja possível presumir que uma entidade estrangeira exista com o único propósito de promover a evasão fiscal. Caso contrário, a tributação automática de seus rendimentos estaria fundada exclusivamente em uma ficção jurídica quanto à ocorrência do fato gerador dos tributos sobre a renda, o que, conforme decidido reiteradas vezes pelo próprio STF, é inconstitucional.



[1] Conforme definido pelos artigos 24 e 24-A da Lei nº 9.430/1996.

[2] Ver Instrução Normativa SRF nº 38/1996, e Lei nº 9.532/1997.

[3] Trata-se de decisão proferida no RE nº 541.090 que, em processo cuja matéria é relacionada à tratada na ADI nº 2.588, por maioria, manifesta entendimento que pode ser alterado pelo STF em casos futuros. Destaque-se que não foi declarado efeito vinculante no referido RE e seu acórdão ainda não publicado.

[4] Segundo consta no resultado do julgamento da ADN nº 2.588, publicado no website do STF.

[5] Em termos gerais, considera-se concorrência fiscal danosa a praticada por jurisdições de tributação favorecida com o objetivo de atrair capital de alta mobilidade detido por agentes econômicos em busca de economia tributária. Alguns exemplos são a isenção de tributos sobre os rendimentos de atividades realizadas no exterior, a ocultação do real beneficiário de rendimentos, e o sigilo à composição societária de pessoas jurídicas.

[6] O conceito de controle varia conforme a legislação de cada país.

[7] Ver RE nº 117.887-6/SP, em que o tribunal declarou, por unanimidade, a inconstitucionalidade de um dispositivo legal que determinava a incidência do Imposto sobre a Renda sobre o lucro distribuído, em adição ao lucro apurado ao final do exercício.

[8] Ver RE nº 172.058-1, em que o STF julgou inconstitucional a incidência do Imposto sobre Lucro Líquido na fonte, sobre a distribuição de dividendos, na data do encerramento do balanço pela pessoa jurídica, independentemente de os lucros serem distribuídos aos sócios.

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