A Taxa Única de Serviços Tributários do Estado do Rio de Janeiro

 por Flávio Couto Bernardes
Doutor (2006), Mestre (2000) e Bacharel (1994) em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais
Membro do corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Professor de Direito Tributário e Financeiro da UFMG
Procurador do Município de Belo Horizonte
Advogado
Frederico Machado Marques
Diretor da Associação Brasileira de Direito Tributário Jovem – ABRADT Jovem
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (2015)
Advogado

 

A recente Lei n. 7.176/2015, publicada no Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro em 29 de dezembro de 2015, instituiu a Taxa Única de Serviços Tributários da Receita Estadual, inserindo o art. 107-A no Decreto-Lei estadual n. 5/1975, responsável por instituir o Código Tributário do Estado do Rio de Janeiro, e regulamentada pelo Decreto estadual n. 45.598/16.  A Taxa em questão destina-se a custear a prestação, efetiva ou potencial, dos serviços colocados à disposição dos estabelecimentos inscritos no Cadastro de Contribuintes do ICMS (CAD-ICMS) e substitui, com algumas exceções, as taxas específicas relativas aos serviços da Administração Tributária prestados no âmbito da Subsecretaria de Estado de Receita da Secretaria de Fazenda do Estado do Rio de Janeiro. Ocorre que a referida lei, que está prestes a entrar em vigor, tem gerado algumas polêmicas acerca da sua constitucionalidade.

A Taxa Única de Serviços Tributários da Receita Estadual, denominada TUT – Taxa Única Tributária ou TUSTRE – Taxa Única de Serviços Tributários da Receita Estadual, estava prevista para ser exigida a partir do dia 28 de março de 2016, conformeseu artigo 2º, que determinou seus efeitos após o decurso de 90 dias. No entanto, uma semana antes do encerramento da vacatio legis e, portanto, diante da possibilidade do Estado iniciar a cobrança do tributo supracitado, houve a apresentação de proposta de revogação da Lei por iniciativa do Deputado Estadual Luiz Paulo, com o apoio de pelo menos outros 20 parlamentares da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro – ALERJ, que há pouco mais de 3 meses tinha sido aprovada por unanimidade. Ademais, a tributação também foi contestada no âmbito judicial, possuindo em seu desfavor mais de 300 ações judiciais distribuídas por empresas e entidades que estão recorrendo ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

Nessa toada, vale destacar, de maneira preliminar, algumas características das taxas, espécie tributária tão importante no ordenamento jurídico brasileiro prevista no Código Tributário Nacional em seus artigos 77 a 80 e na Constituição Federal em seu artigo 145, inciso II, dentre outros dispositivos. A Taxa tem como fato gerador o exercício regular do poder de polícia ou a utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível, prestado ao contribuinte ou colocado à sua disposição.

A taxa, diferentemente do imposto, é tributo vinculado a uma atuação estatal, ou seja, seu fato gerador está umbilicalmente ligado a uma atividade estatal. Quanto à jurisprudência, o Supremo Tribunal Federal já decidiu, por diversas vezes, que a vedação contida no artigo 167, inciso IV, da CF/88 refere-se somente aos impostos, não havendo impedimento para que as taxas tenham o produto da sua arrecadação com destinação específica, sendo vedada apenas a destinação às entidades privadas.

Existem dois tipos de previsão de taxas no direito tributário brasileiro: a taxa que decorre da prestação de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos à sua disposição, e, lado outro, a taxa instituída pelo exercício regular do poder de polícia. O que não se pode aceitar é o mero aparato administrativo estatal ser considerado fator suficiente para ensejar a cobrança dessa última taxa. De todo modo, cada tipo de taxa possui suas especificidades, não se tratando do objetivo primordial do presente artigo arrazoar sobre tais questões.

No caso em tela, o que ocorre é que a Lei estadual n. 7.176/2015 está tentando mudar a sistemática da cobrança, isto é, estabelecendo uma cobrança trimestral para as empresas, independentemente da contraprestação ou não de serviços, diferentemente do modo atual em que os serviços na Secretaria da Fazenda são cobrados individualmente, como, por exemplo, a taxa exigida do contribuinte que precisa protocolar sua defesa em processo administrativo ou necessita emitir documento, como a nota fiscal.

Dessa forma, o Juiz da 11ª Vara da Fazenda Pública do Rio de Janeiro, Dr. João Luiz Amorim, concedeu liminar em 17 de março para proibir o governo fluminense de cobrar essa pretendida Taxa Única de Serviços Tributário, sob o seguinte fundamento:

“De acordo com a nova lei, percebemos que os contribuintes, ao invés de pagarem pelo serviço sempre que o demandarem do ente público, terão que desembolsar a cada três meses um valor preestabelecido na tabela progressiva, ainda que não haja solicitação de qualquer prestação de serviço. Até mesmo uma empresa com zero de saída, zero de faturamento e zero de documentos terá que pagar trimestralmente a dita ‘taxa’…O descompasso atinge como se vê a pretensão estatal que data venia, está fadada ao malogro. Resta caracterizado, portanto, o periculum in mora, já que o tributo está na iminência de ser cobrado e irá sobrecarregar os contribuintes. Destarte, presentes os requisitos exigidos para a obtenção da medida acauteladora, razão pela qual defiro a liminar”. (http://www.tjrj.jus.br/web/guest/home/-/noticias/visualizar/31104)

Nessa mesma direção, concedeu liminar nos autos do mandado de segurança impretrado pelo Sindicato dos Lojistas do Comércio do Município do Rio de Janeiro, alcançando todos os contribuintes e suspendendo a cobrança da Taxa Única de Serviços Tributários da Receita Estadual que começaria a ser cobrada pelo governo fluminense a partir da semana seguinte à prolação da decisão (Processo 0075545-5.2016.8.19.0001).

Essa lei também é questionada em outras representações no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, impetradas pela Federação do Comércio do Rio de Janeiro – Fecomércio RJ e a Federação das Indústrias do Rio de Janeiro – FIRJAN, que também alegou sua inconstitucionalidade no órgão especial do Tribunal de Justiça.

Alguns afirmam que a revogação da lei que prevê o pagamento trimestral da taxa pelas empresas contribuintes de ICMS representaria uma perda de receitas públicas para o Estado do Rio de Janeiro de aproximadamente R$ 500 milhões por ano. Para o subsecretário de Receita Estadual, Antônio Carlos Cabral, por exemplo, uma justificativa para a instituição da taxa é a necessidade de melhorias nos sistemas da Fazenda, afirmando que a taxa “garantirá que a Receita tenha os recursos necessários para pagar toda a estrutura”[1].

Todavia, a referida argumentação não pode ser justificativa para a violação dos preceitos normativos vigentes no sistema jurídico pátrio, motivo pelo qual se faz necessário examinar sua adequação ou não às regras legais. Fato é que a Taxa Única de Serviços Tributários, caso seja cobrada, será em decorrência de suposto poder de polícia, que não pode ser previsto em caráter potencial pelo Governo do Estado, por poder ou não fiscalizar a emissão de notas fiscais do contribuinte do ICMS! Ora, nas palavras acertadas do citado Deputado Luiz Paulo: “É como se o estado punisse o comerciante por fazer o certo, que é emitir a nota fiscal a cada venda efetuada. O empresário já recolhe o ICMS quando vende, então como pode ser cobrado novamente por emitir a nota, que já é obrigatória?”[2]. O Deputado ainda destaca que a lei é inconstitucional por não deixar claro que exista a prestação de algum serviço por parte da Fazenda estadual, que é requisito legal para a criação de uma nova taxa.

Ainda nesse sentido, o presidente do Sindicato de Lojistas do Comércio do Rio de Janeiro, Aldo Gonçalves, afirma que a taxa “é uma aberração jurídica e foi aprovada ao arrepio da lei. É inconstitucional, pois afronta não apenas a Constituição brasileira, mas também a do Rio de Janeiro e o Código de Tributação Estadual”, e salientou que o fato de o Estado do Rio de Janeiro passar a ser “o único que pune o contribuinte que declara seu faturamento e emite seus documentos fiscais de modo idôneo”.[3]

Aparentemente a Taxa Única de Serviços existe em realidade para custear serviços gerais da Receita Estadual, ou seja, trata-se de tributo arrecadatório, uma vez que está vinculada ao faturamento das empresas e não ao custo efetivo do serviço prestado pela Administração Pública, consoante a natureza jurídica da taxa. Basta rápida análise da tabela abaixo, transcrita do 1º artigo da Lei estadual n. 7176/2015:

 

Tabela do Valor da Taxa Única de Serviços Tributários da Receita Estadual prevista no caput do art. 107-A da Lei estadual n. 7.176 de 28.12.2015

 

Faixa

Total de Saídas

Total de Documentos

Taxa Única de Serviços Tributários da

Receita Estadual devida (em reais R$))

01

De R$ 0,00 a R$ 3.600.000,00

Até 6000

2.101,61

02

De R$ 3.600.000,01 a R$ 5 000.000,00

De 6001 a 24.000

4.503,45

03

De R$ 5.000.000,01 a R$ 10.000.000,00

De 24.001 a 120.000

9.006,90

04

De R$ 10.000.000,01 a R$ 50.000.000,00

De 120.001 a 780.000

15.011,50

05

Acima de R$ 50.000.000,00

Acima de 780.000

30.023,00

 

Nota-se, assim, que o valor da taxa é fixado com base no faturamento das empresas, podendo variar de R$ 2.101,61 a R$ 30.023,00 consoante o número de notas fiscais emitidas, incluídas as microempresas cadastradas no Regime de Simples Nacional, existindo cinco faixas de cobrança. Interessante perceber que em certa medida os pequenos empresários sofreriam mais para pagar a taxa, já que seus negócios faturam relativamente pouco, mas emitem muitos cupons fiscais, o que os joga num patamar mais alto de cobrança. A título de exemplo, um estabelecimento comercial que emitisse 25 mil notas fiscais com valor médio de R$10,00 (faturamento de R$ 250 mil) no trimestre, por exemplo, teria que pagar R$ 9.006,90, enquanto outra empresa que faturasse R$1 milhão no mesmo período, mas emitisse apenas 100 notas fiscais seria enquadrada na primeira faixa da cobrança (R$ 2.101,61).

Sob outro foco, até mesmo os contribuintes que não utilizarem os serviços da Receita Estadual deverão pagar a taxa em análise no seu valor mínimo de R$ 2.101,61, como já frisado pelo Magistrado da 11ª Vara citado anteriormente. Configura-se, portanto, de forma notória e clara uma ofensa ao princípio da isonomia tributária, que tem sua origem no princípio geral da igualde. Nas palavras de Sacha Calmon Navarro Côelho:

“A República democrática e a supremacia do Judiciário são hoje inseparáveis contra o ressurgimento das tiranias da lei…‘De nada vale fazer uma Constituição, se ela não for obedecida. Não adianta haver lei para tudo, se não for respeitada. Daí a importância do Poder Judiciário. Este merece especial cuidado dos Constituintes, porque é a chave de todas as instituições. Elas só funcionam com o virtual ou atual controle do Judiciário… E direito só existe onde haja juízes que obriguem o seu cumprimento’.”[4]

Vale destacar também que de acordo com a tabela da legislação, todos os contribuintes do ICMS, incluindo as microempresas no Simples Nacional, devem recolher a taxa de forma trimestral, observado o desconto previsto por força do art. 1º § 7º. Além disso, ressalta-se, na oportunidade, que o prejuízo para o contribuinte pode ser ainda maior, eis que a lei prevê multa de 30% do valor da taxa para quem não a recolher, além dos acréscimos moratórios, nos termos do art. 107-A, § 11 da lei em foco.

Ademais de ser notório que a Taxa Única de Serviços Tributários do Estado do Rio de Janeiro sufoca o contribuinte, sobretudo num cenário de crise econômica, é imprescindível observar que o argumento de que a instituição da Taxa seria um mecanismo de se promover um aumento de arrecadação por meio da simplificação da cobrança ou que a proposta permite que a ampla maioria dos serviços possam ser obtidos sem necessidade de recolhimentos isolados, reduzindo a burocracia e os controles a que os contribuintes estão sujeitos[5], são uma falácia

A Taxa única de Serviços Tributários da Receita do Estado do Rio de Janeiro, data venia, é medida inconstitucional, haja vista a não conformidade com os preceitos do Código Tributário Nacional e da Constituição Federal de 1988. Não há que se falar em serviços prestados pelo poder público que ensejariam essa cobrança e muito menos em estabelecer o faturamento da empresa/o valor de saída de mercadorias como base de cálculo para critério de mensuração do tributo, em desrespeito flagrante ao art. 145 da CF.

No momento, cabe à sociedade civil acompanhar os próximos passos do trâmite legislativo da Assembleia Fluminense, eis que as Comissões de Tributação, Economia e Orçamento da ALERJ decidiram pedir ao Governo do Estado que adie o início da vigência da lei por 60 dias, para que a medida possa ser mais amplamente debatida. De todo modo, diante de eventuais abusos por parte das autoridades administrativas cabe ao contribuinte questionar seus direitos no Judiciário.

 

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