A Não Incidência de ICMS sobre as Atividades de Apoio Marítimo Realizadas com Base em Contratos de Afretamento Marítimo na Indústria Do Petróleo
por Gustavo Goiabeira de Oliveira
Sócio de Motta, Fernandes Rocha Advogados
formado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ
Mestre em Direito Tributário pela Universidade Cândido Mendes
MBA em Petróleo e Gás pela Coppe/UFRJ
MBA em Direito da Economia e da Empresa pela Fundação Getúlio Vargas. Atua nas áreas de tributário (contencioso e consultivo), planejamento fiscal, fusões e aquisições
Fernanda Lopez Marques da Silva
Advogada de Motta, Fernandes Rocha Advogados
formada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ,
LL.M. em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, com especialização em Direito Processual Tributário pela Universidade Cândido Mendes e especialização em Processo Fiscal pela Associação Brasileira de Direito Financeiro.
Atua nas áreas de tributário (contencioso e consultivo), planejamento fiscal, fusões e aquisições
Roberta Almeida Aguiar
Advogada de Motta, Fernandes Rocha Advogados,
formada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ,
LL.M. em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, com especialização em Processo Fiscal pela Associação Brasileira de Direito Financeiro e especialização em Impostos Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC/RJ
Atua nas áreas de tributário (contencioso e consultivo), planejamento fiscal, fusões e aquisições
I. Introdução
O atual cenário jurídico tributário brasileiro nos apresenta um grande número de autuações fiscais lavradas por autoridades estaduais contra sociedades que exercem atividades de apoio marítimo para a indústria do petróleo e gás, em especial nas etapas de exploração e produção. Tais autuações, em regra, pretendem aplicar às atividades de apoio marítimo realizadas com o amparo em contratos de afretamento por tempo de embarcações o mesmo tratamento tributário dispensado à prestação de serviços de transporte aquaviário interestadual ou intermunicipal de cargas e pessoas, ou seja, a incidência do ICMS. Diante de tal cenário, a proposta do presente estudo é de demonstrar a impropriedade de tal analogia feita pelas autoridades fiscais estaduais, para ao fim concluir pela não incidência do ICMS sobre as atividades de apoio marítimo baseadas em contratos de afretamento de embarcações.
Como será visto, as cobranças levadas a feito pelas autoridades estaduais em matéria de ICMS trazem como fundamento jurídico a tese de que, na verdade, estaríamos tratando da hipótese de prestação de serviços de transporte, passível da incidência do ICMS, uma vez que, segundo as autoridades fiscais, o contrato de afretamento nada mais seria do que uma modalidade de contrato de transporte.
II.Contrato de Afretamento X Contrato de Transporte
O contrato de afretamento de embarcações, independente da modalidade, não guarda necessária relação com a prestação de serviço de transporte de cargas ou passageiros. Analisando as definições legais de ambos os tipos contratuais, tem-se que o contrato de afretamento possui previsão específica original no Código Comercial Brasileiro de 1850 (arts. 566 e 574) e tem a seguinte definição dada pela doutrina:
“Afretamento: Designa o contrato pelo qual o armador, também denominado fretador, obriga-se a colocar o navio à disposição de um afretador, mediante o pagamento de uma quantia chamada frete, dando lugar a um instrumento conhecido como carta-partida e algumas vezes a um conhecimento. Também se diz contrato de fretamento, termo aliás mais utilizado, tendo sido consagrado pelo CCom, ao dispor sobre a matéria nos seus arts. 566 e 574”[1]
Existem três tipos de contratos de afretamento, conforme previsão contida no art. 2º, inciso II da Lei nº 9.432/97:
“Art. 2º Para os efeitos desta Lei, são estabelecidas as seguintes definições:
I – afretamento a casco nu: contrato em virtude do qual o afretador tem a posse, o uso e o controle da embarcação, por tempo determinado, incluindo o direito de designar o comandante e a tripulação;
II – afretamento por tempo: contrato em virtude do qual o afretador recebe a embarcação armada e tripulada, ou parte dela, para operá-la por tempo determinado;
III – afretamento por viagem: contrato em virtude do qual o fretador se obriga a colocar o todo ou parte de uma embarcação, com tripulação, à disposição do afretador para efetuar transporte em uma ou mais viagens; (…)”
Portanto, o contrato de afretamento de embarcações pode ser firmado a casco nu, equivalendo à simples locação da embarcação; por tempo, em que o afretador recebe a embarcação armada e tripulada para operações por tempo determinado (que é a modalidade mais utilizada nas atividades de apoio marítimo); ou ainda por viagem.
No que concerne ao contrato típico de transporte, de acordo com o art. 730 do Código Civil, este se qualifica como sendo o contrato pelo qual alguém se obriga, mediante retribuição, a transportar, de um lugar para outro, pessoas ou coisas.
Há, portanto, previsões legais distintas para diferentes contratos tipificados, não sendo permitido às autoridades fiscais estaduais alterarem os conceitos de direito privado para fins de ampliar suas competências tributárias constitucionalmente previstas (art. 155, inciso II da Constituição Federal), conforme comando legal expresso contido no art. 110 do Código Tributário Nacional.
Diferentemente do contrato de transporte, o contrato de afretamento é um contrato complexo, conforme reconhecido pelos tribunais pátrios e mesmo pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ)[2], no qual a posse da embarcação é transferida ao afretador por tempo determinado, juntamente com tripulação previamente treinada para operar os navios e equipamentos para auxílio às atividades de exploração e produção de petróleo e gás na costa brasileira.
Ainda sobre a singularidade do afretamento e sua diferença em oposição à prestação de serviços de transporte, destaca-se a doutrina de Paulo Campos Fernandes e Walter de Sá Leitão[3]:
“O afretamento por período também tem natureza jurídica distinta do contrato de transporte. No afretamento por período, dependendo do tipo da embarcação, não há sequer o seu emprego no deslocamento de cargas ou pessoas, como é o caso de embarcações contratadas para tancagem ou para alguns tipos de apoio à atividade off-shore. Neste tipo de contrato o objeto é o controle comercial da embarcação e não a realização de transporte. (…) Desta forma, fica evidente que o afretamento por período não pode ser enquadrado como uma espécie do contrato de transporte. (…) Desta forma tem-se que o afretamento por período tem a natureza jurídica sui generis, não tendo portanto nenhum instituto jurídico similar ao mesmo. Este é um dos aspectos que evidencia a singularidade do Direito Marítimo.”
No mesmo sentido é o entendimento de Flávia de Vasconcellos Lanari[4]:
“A locação do navio também se pode dar com a inclusão no contrato do serviço da tripulação. É a hipótese do ‘Time Charter’. Locação de navio armado para utilização temporária. (…) Durante todo o prazo da locação, visto que a tripulação continua a servir o armador e aquele que tomou o navio por um tempo determinado tem apenas seu uso, a total administração do navio continua a cargo do armador-cedente, que assume a responsabilidade pelo serviço da equipagem e pelo provimento de tudo quanto necessário para a expedição marítima, não tendo, por outro lado, obrigação alguma de transporte.”
O entendimento de que não há correlação entre afretamento e transporte é também corroborado por Ives Gandra da Silva Martins, que capitaneou o ajuizamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.779 (ADI nº 2.779) que trata exatamente do tema. Na ADI nº 2.779, atualmente sob a relatoria do Ministro Luiz Fux, a Procuradoria Geral da República já exarou parecer reconhecendo que o conceito de serviços de transporte não abrange o conceito de afretamento[5], estando esse último, portanto, fora do campo de incidência do ICMS.
III. Entendimento Jurisprudencial
Além da doutrina especializada e do parecer exarado pela Procuradoria Geral da República, também os tribunais pátrios reconhecem a distinção entre afretamento e transporte, bem como a não incidência do ICMS sobre as atividades lastreadas nos contratos de afretamento, especialmente contrato de afretamento por tempo. Dentre as diversas decisões nesse sentido, destacamos[6]:
“TRIBUTÁRIO. CONTRATOS DE AFRETAMENTO DE EMBARCAÇÃO. ICMS. NÃO INCIDÊNCIA. CLÁUSULAS CONTRATUAIS. INTERPRETAÇÃO. ÓBICE DA SÚMULA 5/STJ.1. Não incide o ICMS nos contratos de afretamento de embarcação, por não se enquadrarem na hipótese prevista do art. 2º, II, da LC n.º 87/96. Precedente: REsp 79.445/ES, Rel. Ministro ARI PARGENDLER, SEGUNDA TURMA, DJ 13/04/1998. 2. O Tribunal de origem, após analisar os elementos dos autos, concluiu que o contrato em exame é de afretamento por tempo. Portanto, rever essa premissa encontra óbice na Súmula 5/STJ. 3. Agravo regimental a que se nega provimento.” (AgRg no AREsp 1091416/RJ, Min. Sérgio Kukina, Primeira Turma do STJ, DJe: 29.10.2013)
“PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. (…) OMISSÃO NÃO DEMONSTRADA. APLICAÇÃO DA SÚMULA 284/STF, POR ANALOGIA. ICMS SOBRE AFRETAMENTO DE EMBARCAÇÃO. NÃO INCIDÊNCIA. PRECEDENTE DO STJ. REVISÃO DA NATUREZA DO CONTRATO. ÓBICE DA SÚMULA 05/STJ. AGRAVO CONHECIDO PARA NEGAR SEGUIMENTO AO RECURSO ESPECIAL.(…) Conforme anteriormente afirmado, a hipótese dos autos cuida de contrato de afretamento por tempo. No afretamento, o escopo do contrato é a obtenção da posse do barco, pelo contratante, para que este a utilize para atender suas necessidades na forma e tempo que lhe forem convenientes. Dessa forma, a embarcação fica à inteira disposição do contratante, o que não pode ser confundido com a mera contratação de prestação de serviço de transporte, pois nessa modalidade de contrato ocorre apenas a adesão à oferta anunciada pela transportadora de percorrer o itinerário por ela previamente estabelecido. O acórdão recorrido, portanto, está no mesmo sentido da jurisprudência desta Corte que afirma que nessa espécie contratual prepondera a disponibilização do bem ao contratante, não representando a contratação de um serviço de transporte. Consequentemente tem-se afastada a incidência de ICMS, que nos termos da LC 87/96, não consta em sua hipótese de incidência contratos em que não haja efetiva prestação de serviços de transporte. (…).” (AgRg no AREsp 136019/RN, Min. Benedito Gonçalves, STJ, DJe: 04.12.2012)
“MANDADO DE SEGURANÇA. SECRETÁRIO DE FAZENDA. AUTORIDADE COATORA. ICMS. AFRETAMENTO. CONTRATO COMPLEXO QUE NÃO SE CONFUNDE COM TRANSPORTE. 1. Trata-se de mandado de segurança com o que se busca afastar a incidência de ICMS em afretamento por tempo; (…) 3. O afretamento é um contrato de natureza complexa, que guarda em si uma séria de atribuições, mas que, na espécie, traz em sua razão de essência a disponibilização de embarcação que servirá de apoio logístico nas atividades de pesquisa e lavra de minerais e hidrocarbonetos; 4. Sendo assim, ainda que se possa, forçosamente, vislumbrar a imagem de um contrato de transporte em sua complexidade interna, assim como se poderia vislumbrar outros, não pode o afretamento ser, por isso, reduzido a este último, tampouco é possível seu desmembramento para fins de tributação; 5. Em termos, o afretamento guarda autonomia em relação a um contrato de transporte, sendo certo que não existe lei anterior que o preveja como evento econômico passível de tributação; 6. Segurança concedida. (Mandado de Segurança nº 0031144-36.2013.8.19.0000, 4ª Câmara Cível do TJRJ, Rel. Des. Antônio Iloízio Barros Bastos, DJe 24.03.2014)
Adicionalmente, no julgamento do REsp 105414[7], o STJ fixou seu entendimento quanto à impossibilidade de tributação das atividades realizadas com base em contrato de afretamento, por se tratar de contrato complexo, impossível de ser segregado para fins tributários.
Por fim, um ponto que normalmente é também ignorado pelas autoridades estaduais quando se está diante de contratos de afretamento, e ainda que se afastem todas as diferenças existentes entre afretamento e transporte, é o seguinte: o transporte para ser tributado pelo ICMS deve ser interestadual ou intermunicipal, nos termos do art. 155, inciso II da Constituição Federal. De acordo com entendimento manifestado pelo STJ[8], para que se verifique a prestação de serviço de transporte tributável pelo ICMS é necessário que a sua origem seja em um município e que seu destino seja em outro, não sendo suficiente são somente a transposição de fronteiras.
IV. Conclusão
O argumento utilizado pelas autoridades fiscais de que há necessária correlação entre a prestação de serviços de transporte e as atividades desenvolvidas com base nos contratos de afretamento, por distorcer a lógica jurídica, que prevê dois contratos típicos e distintos para reger atividades diversas, já foi por diversas vezes afastados pelos tribunais pátrios. Conclui-se, portanto, que não há amparo no sistema tributário brasileiro para a tentativa equivocada das autoridades fiscais estaduais de, aplicando a analogia, pretender a incidência do ICMS sobre as atividades de apoio marítimo realizadas com fundamento em contratos de afretamento de embarcações.
Bibliografia:
- Enciclopédia Saraiva de Direito, vol. 5. Saraiva, 1977.
- FERNANDES, Paulo Campos e Leitão, Walter de Sá. “Contratos de Afretamento à Luz dos Direitos Inglês e Brasileiro” Rio de Janeiro: Renovar, 2007.
- LANARI, Flávia de Vasconcellos. “Direito Marítimo: Contratos e Responsabilidades”, Belo Horizonte: Del Rey 1999.
[1] Enciclopédia Saraiva de Direito, vol. 5. Saraiva, 1977, p. 159.
[2] REsp 1054144, Ministra Denise Arruda, Primeira Turma do STJ, DJe 09/12/2009.
[3] FERNANDES, Paulo Campos e Leitão, Walter de Sá. “Contratos de Afretamento à Luz dos Direitos Inglês e Brasileiro” Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 33 e 36.
[4] LANARI, Flávia de Vasconcellos. “Direito Marítimo: Contratos e Responsabilidades”, Belo Horizonte: Del Rey 1999, p. 69, 72 e 73.
[5] “Da Procuradoria Geral da República, com parecer no sentido da procedência da presente ação direta para declarar, como requerido na inicial, a inconstitucionalidade parcial sem redução de texto da expressão “por qualquer via”, constante do inciso ii do art. 2º da mencionada lei complementar nº 87, de 1996, a fim de excluir de seu âmbito de incidência a prestação de serviço de transporte intermunicipal e interestadual de passageiros e de cargas “por via marítima”, executado no mar territorial, plataforma continental e zona econômica exclusiva, bem como para conferir interpretação conforme à expressão “serviços de transporte”, também compreendida na mesma norma, reconhecendo que os mesmos não abrangem o “afretamento” para transporte aquaviário, nem a navegação de apoio marítimo logístico às unidades instaladas nas águas territoriais para perfuração e extração de petróleo”.
[6]No mesmo sentido: REsp nº 79445, 2ª Turma do STJ, Min. Rel. Ari Pargendler, DJ 13.04.1998; AC 2005.001.23805, 18º Câmara Cível do TJRJ, Des. Rel. Jorge Luiz Habib, D.O. 18.10.2005; AC nº 2005.001.04498, 6ª Câmara Cível do TJRJ, Des. Rel. Gilberto Rêgo, DJ 03.10.2005;AI 2002.002.19607, 3º Câmara Cível do TJRJ, Des. Rel. Jorge Luiz Fernando Carvalho, DJ. 27.05.2003; AC 2007.001.26388, 8º Câmara Cível do TJRJ, Des. Rel. Luiz Felipe Francisco, DJ 07.08.2007; AC 2010.002522-3, 3ª Câmara Cível do TJRN, Des. Rel Amaury Moura Sobrinho, DJ 07.10.2010; Ag. Reg. no MS nº 0031144-36.2013.8.19.0000, Rel. Des. Antônio Iloízio Barros Bastos da 4ª Câmara Cível do TJRJ, DJe: 04.09.2013; AC 0009457-55.2009.8.19.0028, 6ª Câmara Cível do TJRJ, Des. Rel. Benedicto Abicair, DJ 18.06.2012.
[8] REsp nº 879.79, Min. Luiz Fux, Primeira Turma do STJ, DJe: -1/12/2008; e REsp nº 760.038, Min. Francisco Falcão, DJ: 14.11.2005