A modulação temporal dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade em matéria de direito fiscal e a escassez de novas teses tributárias

Por Renata Villela
Mestranda em Direito Empresarial pela UCES
Advogada do Escritório Magro Advogados Associados – Rio de Janeiro

 

Introdução

Assunto recorrente no meio jurídico é a impressão geral de que não existem mais “grandes teses tributárias”.

Neste sentido, o presente artigo visa tecer algumas considerações sobre o Processo Judicial Tributário e verificar como as recentes decisões do Supremo Tribunal Federal no sentido de modular temporalmente os efeitos das declarações de inconstitucionalidade estão a influenciar negativamente a produção de novas teses tributárias.

Como é sabido, compete ao STF dar a última palavra a respeito da compatibilidade de leis e atos normativos com a Constituição Federal e também invalidar os efeitos de lei que seja manifestamente contrária à Carta Magna.

Sabe-se também que a declaração de inconstitucionalidade atinge a norma impugnada desde sua entrada em vigor, fulminando-a com efeitos ex tunc através do reconhecimento de sua nulidade.

O mecanismo que vem sendo aplicado hodiernamente com esta finalidade é o artigo 27 da Lei 9.868/99, o qual passou a ser correntemente utilizado pelo STF e possui a seguinte redação in verbis:

Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

Pois bem, visto isso passamos às considerações doravante expendidas.

Verifica-se, com preocupação que o art. 27 da Lei nº 9.868/99, vem sendo aplicado com cada vez mais freqüência, o que deixa a comunidade jurídica alarmada e conjecturando sobre a moralidade da utilização em massa do instituto, notadamente em matéria tributária.

Como primeiro argumento neste sentido, é necessário destacar que a aplicação indiscriminada do instituto da modulação temporal dos efeitos das decisões em matéria tributária possui matizes confiscatórios, de maneira a ferir os princípios da igualdade e da isonomia.

Quanto à igualdade e isonomia, tal afirmação se faz uma vez que alguns contribuintes são afetados de uma forma pela declaração de inconstitucionalidade na norma, outros contribuintes são afetados de maneira totalmente diversa, eis que a única diferença existente entre o direito destes é uma medida de tempo.

Em outras palavras, para uns impõe-se efeitos benéficos da declaração de inconstitucionalidade da norma, com o nascimento do direito a pleitear restituição dos valores indevidamente cobrados (com base em lei declarada inconstitucional) e para outros não haverá forma de usufruir do mesmo direito (restituição), eis que este nasce a partir do momento da declaração de nulidade (extirpação do sistema jurídico da norma fulminada, momento a partir do qual pode-se pleitear um direito), como bem expõe HARADA[1]:

É exatamente a declaração de inconstitucionalidade que faz nascer a dívida pública a ser objeto de repetição. Antes dessa decisão não há dívida, portanto, não há inércia do contribuinte a ensejar a deflagração do prazo prescricional.

O impedimento no recebimento da restituição sob o fundamento da modulação temporal nas decisões referidas, viola os direitos dos contribuintes, posto que é direito fundamental de todo contribuinte, indevidamente tributado, de receber a restituição do tributo declarado inconstitucional.

Isto porque é ilógico que a nulidade produza efeitos ex tunc para uns e ex nunc para outros. Nulidade é nulidade, não admite exceções, afinal estamos em um Estado Democrático de Direito.

Ou seja, quando o STF declara que a partir de uma referida decisão, os contribuintes que atacaram um determinado tributo (que tenha sido fulminado pela declaração da inconstitucionalidade) poderão pleitear a restituição, porém, os que formularem o mesmo pleito doravante não poderão, cria diferença entre contribuintes lesados pela mesma cobrança indevida e validam efeitos do que é nulo, do que não mais existe no mundo jurídico, para algum determinado período.

Tal entendimento não pode prevalecer. A prevalecer este entendimento, outra afronta ao princípio da igualdade se configurará.

Como é sabido, temos que o contencioso tributário é altamente especializado, custoso e não está acessível para todos os contribuintes da mesma maneira (como, v.g. empresas de pequeno e médio porte, microempresas e o contribuinte pessoa física).

Portanto, ao se admitir tal expediente estaríamos admitindo que o contribuinte que possui poder econômico para manter um contencioso tributário eficaz durante anos para fulminar determinado imposto poderá obter seu direito à restituição reconhecido, enquanto outro contribuinte com o mesmo direito, mas que não disponha da mesma capacidade financeira terá sua lesão ou ameaça a direito impossibilitada de ser reparada por meio da restituição, tendo em vista a modulação temporal dos efeitos ora mencionada.

Ora, não se pode tratar de maneira diferente pessoas que se encontrem juridicamente na mesma situação, a diferenciação apontada ultrapassa os limites de conceito e passa para a prática, consubstanciando verdadeira discriminação entre contribuintes, o que não é aceitável de maneira alguma.

Como segundo aspecto relevante a ser abordado, temos que estas decisões normalmente são tomadas sob influência de pressão por parte do Poder Executivo, que sempre invoca a falência deste ou daquele setor/ente tributante a ser ocasionada pela declaração de inconstitucionalidade de referido tributo o que ensejaria a obrigação de restituir os valores cobrados com base em tributo declarado nulo.

Considerando este argumento recorrentemente utilizado (como se vê inclusive nas postulações orais feitas pelos procuradores dos entes tributantes nas sessões de julgamento), forçoso concluir que existe, com a prolação destas decisões, a possibilidade de favorecimento de interesses econômicos do Estado em sacrifício aos fundamentos jurídicos que moldaram norma constitucional, que validaram o arcabouço constitucional que define o Estado de Direito.

Apenas diante de situações excepcionalíssimas poderia se admitir expediente que justificasse o sacrifício do direito à restituição do indébito inconstitucional.

Por situações excepcionalíssimas entendam-se as hipóteses de empréstimo compulsório previstas na Carta Magna e mesmo nesses casos seria necessária a comprovação específica de que a devolução dos valores envolvidos acarretaria a falência financeira do Estado, ameaçando sua existência, conforme tem entendido o Professor Octavio Campos FISCHER[2]:

“Em casos de extrema impossibilidade (demonstrada cabalmente) de restituição do que foi pago a mais, seria admissível uma restrição dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, com o fim de evitar uma derrocada financeira completa do Estado. Portanto, a manipulação dos efeitos, voltamos a frisar, opera, sob este aspecto, de forma absolutamente excepcional.”

 Ou seja, é a estrita legalidade, respeitando os direitos componentes do estatuto de garantias do cidadão, que justifica a privação da liberdade (diminuição da propriedade). Esta observância valida o poder estatal de exigir prestações pecuniárias voltadas ao custeio do bem comum. Sem tal cuidado, o sistema perde a sua força e validade. Neste sentido, oportuno transcrever a lição de HARADA[3]:

Tenho para mim que na seara do Direito Tributário a modulação de efeitos é absolutamente incabível em razão dos princípios de legalidade tributária, da segurança jurídica e da moralidade pública. A unanimidade dos tributaristas reunidos no XXXV Simpósio Nacional de Direito Tributário, no dia 19/11/2010, em São Paulo assim deliberou, destacando não ser possível “permitir a exigibilidade de tributo inconstitucional ou impedir a sua restituição”.

De fato, não há como sustentar que a não cobrança de tributo considerado inconstitucional, ou a não repetição dele irá acarretar violência maior do que a aplicação do princípio da legalidade tributária. Pelo contrário, o princípio maior da moralidade pública está a exigir a abstenção na cobrança de tributo inconstitucional, bem como a restituição do que já cobrou indevidamente.

Sendo assim, em matéria tributária o direito à repetição do indébito assume a condição de medida de moralidade, sendo este o instrumento legal apto a viabilizar a devolução dos valores recolhidos em desarmonia com o sistema legal vigente, tudo visando evitar o ilegítimo empobrecimento do patrimônio particular e favorecimento indevido das finanças da Fazenda.

Na hipótese vertente a vedação desta restituição seria um verdadeiro enriquecimento sem causa.

Por terceiro ponto e conclusão podemos observar que o crescente emprego da manipulação temporal dos efeitos das declarações de inconstitucionalidade proferidas pelo supremo tribunal federal tem contribuído para a escassez na produção de teses tributárias.

Deveras, qualquer mercado é impulsionado pela percepção de lucro e com o mercado jurídico não é diferente.

Ademais, se cortada, no nascedouro, uma pretensão jurídica por meio de uma decisão de Corte Superior com efeito vinculante, certamente um dos reflexos dessa decisão será impedir que cheguem ao Tribunal novas questões acerca daquele mesmo tema e conseqüentemente, haverá desestímulo de que os contribuintes venham a pleitear seu direito e dos advogados em patrocinar as causas.

No caso destes dois últimos grupos de pessoas tem-se que: o contribuinte não pagará honorários de advogado e perseguirá causa fadada ao insucesso; quanto ao advogado não terá interesse em “vender” a tese que ele mesmo criou para novos clientes que tenham sofrido determinada lesão, porque estes restaram excluídos temporalmente da decisão que anulou determinada norma considerada inconstitucional.

Ou seja, com o tempo haverá impossibilidade/inviabilização de se levar a apreciação de lesões ou ameaças a direitos à apreciação do judiciário, por meio de uma temível institucionalização de chancela de ilegalidades, como por exemplo, conferir efeitos ao que é nulo, vedando o direito à restituição do imposto pelos contribuintes indevidamente cobrados, utilizando-se para tanto a modulação temporal de efeitos de decisões judiciais em matéria tributária.

Destarte, os aspectos benéficos da aplicação da técnica perdem o valor em face da medida de sacrifício das garantias individuais e da afronta ao arcabouço de segurança jurídica composto pelas normas estruturantes do Estado Democrático de Direito.

Portanto, resta claro que é necessário limitar a ingerência das “razões de estado” sobre as decisões judiciais e viabilizar remédio para minimizar os impactos das declarações de inconstitucionalidade de tributos. Tal remédio deverá ser pautado na eficiência da administração e na legalidade, mas não em sacrifício de bases fundantes de nosso sistema legislativo.

Ademais, a admitir-se tal utilização indiscriminada do instituto, poderia haver encorajamento na criação de tributos sabidamente inconstitucionais, quando este ente tributante de má fé, mesmo assim, sabendo que na hipótese de Declaração de Inconstitucionalidade com modulação temporal dos efeitos, teria auferido fabuloso lucro com sua prática indigna.

Isto se afirma porque, como afirmado anteriormente, para alguns contribuintes, o alto custo do contencioso tributário não permite a perseguição de determinado objetivo por meio de ação judicial e a modulação dos efeitos ceifaria na raiz a pretensão, eis que o contribuinte nestas condições não teria como receber a restituição do tributo cobrado indevidamente.

Não se pretende, nestas breves linhas, esgotar o complexo tema abordado e tampouco criar estatutos doutrinários, o que seria descabido, mas somente abordar alguns pontos preocupantes da adoção indiscriminada da técnica em comento.

Desta forma, protesta-se nestas breves linhas pelo comedimento na aplicação de técnica apta a resolver situações excepcionais. O referido expediente não pode se tornar regra nos julgamentos das Declarações de Inconstitucionalidade proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em matéria tributária.

BIBLIOGRAFIA

  • FISCHER, Octávio Campos. Os efeitos da declaração de inconstitucionalidade no Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, 398 p.
  • HARADA, Kiyoshi, Repetição de tributo declarado inconstitucional, disponível no endereço eletrônico http://www.haradaadvogados.com.br/publicacoes/Artigos/770.pdf, acessado em 29/12/2011.
  • STERNICK, Daniel. Modulação temporal dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade em matéria tributária: parâmetros para a aplicação do art. 27 da Lei nº 9.868/99. Rio de Janeiro. Monografia apresentada à banca da PUC-RJ, 2008, 149 p.


[1] HARADA, Kiyoshi, Repetição de tributo declarado inconstitucional, disponível no endereço eletrônico http://www.haradaadvogados.com.br/publicacoes/Artigos/770.pdf, acessado em 29/12/2011, p.4 e 5.

[2] FISCHER, Octávio Campos. Os efeitos da declaração de inconstitucionalidade no Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, 398 p. Op. Cit., p. 280. Apud Modulação temporal dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade em matéria tributária: parâmetros para a aplicação do art. 27 da Lei nº 9.868/99.

[3] HARADA, Kiyoshi, Repetição de tributo declarado inconstitucional, disponível no endereço eletrônico http://www.haradaadvogados.com.br/publicacoes/Artigos/770.pdf, acessado em 29/12/2011, p.3.

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