A metodologia de apuração do fator acidentário de prevenção – FAP – À luz da Constituição Federal
por Leonardo Garcia Bites
Advogado do Jurídico Tributário da Petróleo Brasileiro S.A. – PETROBRAS
Criado pela Lei 10.666/03, o FAP – Fator Acidentário de Prevenção, foi inspirado, segundo o legislador, no objetivo de incentivar as empresas a promover a melhoria das condições de trabalho e da saúde do trabalhador, mediante adoção de políticas mais efetivas de saúde e segurança no trabalho, de forma a reduzir a acidentalidade.
Trata-se de multiplicador que varia de 0,5 a 2,0, permitindo um aumento ou diminuição das alíquotas de contribuição das empresas em função dos Riscos Ambientais do Trabalho – RAT, antigo Seguro de Acidente do Trabalho – SAT, cujo percentual, alternado em 1%, 2% ou 3% sobre a folha de salários, é fixado de acordo com o grau de risco atribuído a elas, segundo o CNAE – Classificação Nacional da Atividade Econômica.
Ou seja, em termos práticos, possibilita reduzir à metade ou, caso contrário, duplicar o valor das alíquotas constantes nas alíneas dispostas no inciso II do artigo 22 da Lei 8.212/91.
Aludidas particularidades, a nosso ver, não têm o condão, por si só, de comprometer juridicamente o FAP que, até aqui, parece encontrar guarida na Carta Constitucional (§9º do artigo 195 da CF/88). Por outro lado, a metodologia de cálculo do aludido fator, a cargo do Conselho Nacional de Previdência Social, está a merecer algumas considerações, visto que alvo de inúmeros questionamentos.
Tais critérios foram inicialmente preconizados pelaLei 11.430/2006, que alterou a Lei 8.213/91 para ali inserir o artigo 21-A e, finalmente, pelo Decreto 3.048/99, conforme alterações promovidas pelos Decretos 6.042/07 e 6.957/09.
Em data mais recente, foram trazidas à baila pelo Conselho Nacional de Previdência Social as Portarias nº 1.308/09 e 1.309/09, ambas de 2009, por meio dos quais foram estabelecidas as metodologias de cálculo referidas no Decreto 3.048/99.
Dentre os critérios anunciados na referida metodologia, vem sendo fonte de grande controvérsia aqueles inerentes à caracterização da natureza acidentária da incapacidade, conforme referido no art. 21-A da Lei 8.212/91, como também nos §§ 3º e 5º a 13, todos do artigo 337 do Decreto 3.048/99.
Isto porque, segundo se vê das normas em questão, a título de se apurar aludido índice, restou preconizado pelo legislador, e colocado em prática pelo Conselho Nacional de Previdência Social, o Nexo Técnico Epidemiológico – NTEP.
Segundo leciona Alessandra de Souza Costa, considera-se epidemiologicamente estabelecido o nexo técnico entre o trabalho e o agravo, sempre que se verificar a existência de associação entre: a) a atividade econômica da empresa, expressa pela Classificação Nacional de Atividade Econômica (CNAE); e b) a entidade mórbida motivadora da incapacidade, relacionada na CID, em conformidade com o disposto na parte inserida pelo Decreto nº 6.042/07 na lista B do Anexo II do Decreto nº 3.048/1999 [1].
Ou seja, independentemente de prova neste sentido, o simples confronto entre a entidade mórbida motivadora da incapacidade, elencada na Classificação Internacional de Doenças (CID) e a atividade econômica desenvolvida, segundo CNAE atribuído ao empregador pelo Ministério do Trabalho, se revela, nos moldes da metodologia constante do dispositivo legal questionado, capaz de determinar, em razão do NTEP, o evento capaz de influenciar negativamente na apuração do FAP, restando ao empregador, portanto, ser diligente no sentido de afastar, somente em momento posterior, qualquer relação entre os referidos parâmetros.
Aludida presunção foi objeto de questionamento na ADIN 3931, ajuizada pela Confederação Nacional da Indústria – CNI, por meio da qual se colocou em dúvida a constitucionalidade dos dispositivos que tratam do NTEP (artigo 21-A da lei 8.213/91 e §§3º, 5º a 13º do artigo 337 do Regulamento da Previdência Social), aos considerá-los contrários àquilo que dispõem as normas dispostas no §1º do artigo 201, inciso XXVIII do artigo 7º e o inciso XIII, todos da Constituição Federal.
Em apertadíssima síntese, o primeiro argumento sob o qual se justifica a argüição de inconstitucionalidade por afronta à norma disposta artigo 201, caput, inciso I e § 1º, da Carta Magna, se finca no entendimento de que as aposentadorias especiais somente podem ser concedidas nos casos de as atividades serem efetivamente exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física do trabalhador.
Ou seja, a lei não poderia extrair que, em determinada empresa, todos os empregados estejam sujeitos a condições de trabalho capazes de gerar a entidade mórbida classificada no CID, cumprindo à Previdência Social, segundo regra Constitucional acima elencada, identificar aqueles que, de fato, estariam realmente expostos às atividades econômicas geradoras de risco, visto que somente eles estariam sujeitos à aposentadoria especial.
Alega-se, ainda, ser absolutamente insustentável que a presunção legal se dê com base unicamente em dados estatísticos, pois em seu entender os estudos epidemiológicos e as máximas da experiência comum, nada provam a respeito do caso concreto, uma vez que esses dados empíricos, os quais envolvem a incidência de certas enfermidades em determinados locais e em casos de exposição a determinados agentes nocivos, são utilizados pelos serviços de saúde apenas no sentido de viabilizar a adoção de políticas preventivas, não tendo eles, contudo, o condão de provar que o trabalhador tenha ficado sujeito à exposição, nem que a doença nela tenha tido causa, constatação última que, segundo conclui, se revela indispensável para acesso do trabalhador à aposentadoria especial.
Entretanto, quando apreciados à luz dos valores que aos poucos vão sendo entronizados pelo pensamento do Estado Social e Democrático de Direitos, nota-se que os questionamentos postos não são os que revelam melhor harmonia com os ideais que o norteiam.
Vale dizer, segundo leciona Ricardo Lodi Ribeiro, a legalidade tributária é marcada pela definição, num ambiente de pluralismo político, de um critério de divisão de encargos e benefícios, a partir da composição dos interesses dos mais variados seguimentos do corpo social, de acordo com a justiça fiscal, representada pela capacidade contributiva dos cidadãos e com a prevenção dos riscos sociais [2].
Não bastasse, a latente vocação social do tributo extrafiscal em discussão tem potencializado seus efeitos quando sua aplicação se dá em um contexto de reconhecimento de que a sociedade atual, doravante denominada sociedade de risco, é balizada pela ambivalência e imprevisibilidade dos seus atos, aqui caracterizados pelo risco decorrente do exercício de atividades econômicas pelo homem [3].
Sob referido panorama, mostra-se possível de se concluir que os argumentos que se valeram de eventual violação à segurança jurídica, na forma como suscitado na ADI em análise [4], a título de justificar inconstitucionalidade da norma disposta artigo 201, caput, inciso I e § 1º, da Carta Magna, não levaram em consideração o fato de que, segundo Ricardo Lodi Ribeiro, a segurança jurídica hodierna ostenta uma dimensão plural baseada na aferição da adequação dos critérios legislativos à justiça fiscal e à repartição dos riscos e custos sociais, superando, assim, a dimensão meramente individual da liberdade para, em contrapartida, atender os agentes coletivos [5].
Soma-se a isto o fato de que, em razão das dificuldades sabidamente existentes no processo de identificação dos acidentes de trabalho, visto que defronte de uma massa expressiva e pulverizada de relações jurídicas, mostra-se, aqui, absolutamente razoável que a identificação da entidade mórbida motivadora da incapacidade, elencada na Classificação Internacional de Doenças (CID), seja relacionada ao trabalho desenvolvido pelo empregado, mediante o seu cruzamento com a atividade econômica desenvolvida pelo empregador, segundo CNAE a ele atribuído, conforme critérios inerentes às ciências estatísticas e atuariais.
Trata-se, sem dúvida alguma, de medida que, depois de reconhecer as dificuldades inerentes à apuração das entidades mórbidas relacionadas ao exercício do trabalho, traz à discussão o princípio da praticabilidade [6], no claro objetivo de tornar reais as chances de atendimento das demandas sociais preconizadas pela Constituição Federal que, de forma ambivalente, são em grande parte geradas pelas atividades econômicas desenvolvidas.
Não se pode perder de vista o fato de que referida praticabilidade não veio em detrimento de valores outros, tais como o contraditório e a ampla defesa que, sem dúvida alguma, foram preservados pela legislação guerreada onde, por meio dela, se reconheceu a oportunidade do empregador impugnar administrativa e judicialmente a entidade mórbida apurada via NTEP.
Em outras palavras, a metodologia sob o qual se ampara o NTEP cuidou, em larga medida, de inverter o ônus probatório em benefício dos anseios sociais que norteiam a alíquota SAT, bem como laurear a busca de uma justiça fiscal efetiva, aqui vocacionada para a instituição de uma tributação cada vez mais condizente com o risco gerado pelo contribuinte que, de agora em diante, tem como missão ser diligente não só para com a instituição de políticas de saúde laboral, como também na demonstração de que a entidade mórbida cuja responsabilidade restou a ele atribuída por conta do NETP, não guarda relação efetiva com sua atividade econômica, segundo apuração realizada caso a caso.
Logo se vê, portanto, que as expectativas postas na ADI 3931 não representam mais os valores que, atualmente, estão a merecer a guarida do zeloso Pretório Excelso, visto sustentadas em uma realidade que cada vez mais se distancia dos valores e interesses guarnecidos pela Constituição Federal.
[1] COSTA, Alessandra de Souza. Fator Acidentário de Prevenção (FAP) e a Alteração da Contribuição Previdenciária sobre a Folha de Pagamento. Cursos Práticos Fiscosoft. São Paulo/SP. Pág.18. 2009
[2] Ribeiro, Ricardo Lodi. A segurança jurídica do Contribuinte (Legalidade, Não-surpresa e Proteção à Confiança Legítima) Editora Lúmen Iuris: Rio de Janeiro. 2008. pág. 53
[3] A expressão sociedade de risco foi cunhada pelo sociólogo alemão Ulrich Beck em 1986, após o acidente nuclear de Chernobyl, na Ucrânia, para designar os dias em que vivemos, a partir da constatação de que os perigos hoje enfrentados pela humanidade são resultados dos efeitos colaterais da própria ação humana, o que acabar por gerar uma imprevisibilidade quanto às conseqüências das medidas adotadas, e o enfraquecimento da racionalidade baseada no conhecimento do passado. Ribeiro, Ricardo Lodi. A segurança jurídica do Contribuinte (Legalidade, Não-surpresa e Proteção à Confiança Legítima) Editora Lúmen Iuris: Rio de Janeiro. 2008. pág. 34
[4] Por outro lado, a legislação questionada cria grave insegurança jurídica e social nas relações entre patrões e empregados, pois as suas disposições conflitam com a legislação trabalhista e previdenciária em vigor, conforme exposto no item VIII da presente petição. ADI 3931
[5] Ribeiro, Ricardo Lodi. A segurança jurídica do Contribuinte (Legalidade, Não-surpresa e Proteção à Confiança Legítima) Editora Lúmen Iuris: Rio de Janeiro. 2008. pág.. 54/55
[6] Daí que, face a um direito fiscal que se aproxima do caos e cuja tão propalada simplicação não passa de uma utopia, o princípio da determinabilidade deva ser entendido com alguma moderação e realismo de modo a compatibilizá-lo com o princípio da praticabilidade. NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos. Contributo para a compreensão constitucional do estado fiscal contemporâneo. Livraria Almedina: Coimbra. 1998. pág. 356