A Instrução Normativa RFB 1.397/13 e a Distribuição de Dividendos e de Juros sobe o Capital Próprio

 por Jorge N. F. Lopes Jr.
LL.M. em “International Taxation” pela New York University
Especialista em Direito Tributário pela PUC/SP
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
Advogado da Área Tributária de Pinheiro Neto Advogados
 por Pedro Augusto A. Abujamra Asseis
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
Advogado da Área Tributária de Pinheiro Neto Advogados

 

Ainda que a insegurança jurídica vivenciada pelas empresas brasileiras em relação à aplicação de normas tributárias já não fosse propriamente uma novidade, esta parece ter alcançado níveis surpreendentes neste ano de 2013, especialmente no contexto da chamada convergência das regras contábeis brasileiras aos padrões internacionais (IFRS).

Com a edição da Lei 11.638/07, que alterou uma série de dispositivos da Lei das Sociedades Anônimas (Lei 6.404/76) a respeito do tratamento contábil a ser aplicados pelas empresas, criou-se uma incerteza inicial a respeito de como ocorreria, no âmbito tributário, a aplicação das tais novas normas contábeis.  Sem o devido tempo hábil e diante da necessidade de mitigar tais dúvidas, o Governo Federal publicou, ao final de 2008, a Medida Provisória 449/08, posteriormente convertida na Lei 11.941/09, instituindo o chamado Regime Tributário de Transição (RTT), sob o qual os efeitos das novas regras contábeis seriam “neutralizados” para fins fiscais.  Nos específicos termos da Lei 11.941/09, as alterações contábeis que modificassem o “reconhecimento de receitas, custos e despesas computadas na apuração do lucro líquido do exercício” não teriam efeitos para fins de apuração do lucro real da pessoa jurídica sujeita ao RTT e seriam regidos pelos métodos e critérios contábeis vigentes em 31.12.2007.  O RTT, de acordo com a Lei 11.941/09, deveria vigorar até a entrada em vigor de lei que disciplinasse os efeitos tributários dos novos métodos e critérios contábeis, o que, até o presente momento, não aconteceu.

De todo modo, com a edição do RTT, restava claro que os novos critérios decorrentes da adoção do IFRS – tais como, por exemplo, a aplicação do valor justo de mercado para a avaliação de passivos ou a vedação à amortização de ágio, dentre tantos outros efeitos, deveriam ter impactos apenas para fins societários e contábeis, ao passo que, para fins especificamente da determinação da base de cálculo de tributos como o IRPJ e a CSL, bem como o PIS e a COFINS, os fatos econômicos vivenciados pelas pessoas jurídicas deveriam se subordinar às normas fiscais, conforme aplicadas às regras contábeis vigentes em 31.12.2007.

Por outro lado, até o início deste ano, desde a edição da MP 449/08 e sua posterior conversão em lei, as autoridades fiscais não haviam ainda emitido posicionamento oficial sobre algumas questões específicas, dentre as quais se destaca, por exemplo, a de como deveriam ser calculados dividendos ou juros sobre capital próprio (JCP) a serem distribuídos pelas empresas. Especificamente, tratava-se de saber se tais valores seriam calculados com base nos balanços oficiais das sociedades, os quais, como se sabe, devem ser preparados com base nos novos critérios contábeis enunciados pelo Comitê de Pronunciamento Contábeis, com base na Lei 11.638/07 e no IFRS, ou, alternativamente, se as pessoas jurídicas também deveriam ir além das normas em vigor e considerar para tais fins balanços ajustados à luz das regras contábeis vigentes ao final de 2007.

Apenas em fevereiro de 2013, isto é, mais de cinco anos após a publicação da Lei 11.638/07, é que sobreveio uma primeira manifestação oficial sobre o tema, por meio do Parecer PGFN/CAT 202/2013 (Parecer 202/13), emitido pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional a respeito da Nota Técnica nº 16, da Coordenação Geral do Sistema de Tributação da Receita Federal do Brasil (COSIT), de 17.5.2012, tratando dos limites da isenção aplicável aos lucros e dividendos distribuídos pelas empresas a seus sócios. Conforme o entendimento manifestado pela PGFN no referido parecer, o limite máximo para a isenção dada pelo artigo 10 da Lei 9.249/95 seria o lucro apurado de acordo com as regras contábeis vigentes em 31.12.2007, também chamado, inapropriadamente, de “lucro fiscal”.  Nesse raciocínio, a eventual diferença entre (i) o lucro societário, apurado de acordo com a Lei 6.404/76 e as novas regras contábeis, e (ii) o chamado “lucro fiscal”, ficaria supostamente sujeita a tributação quando de sua distribuição aos sócios, fossem estes pessoas físicas, jurídicas ou não-residentes no Brasil, conforme o caso.

O entendimento da PGFN tinha por base dois elementos principais: (i) uma interpretação ampliada do RTT, no sentido de que esse regime alegadamente buscaria expurgar todo e qualquer efeito fiscal trazido pelas novas regras contábeis, inclusive efeitos meramente indiretos – o que não entendemos correto, como se verá a seguir; e (ii) o artigo 10 da Lei 9.249/95, que atualmente dispõe sobre a isenção na distribuição de lucros e dividendos, seria fruto de política fiscal na qual o legislador havia feito a opção por isentar a distribuição de dividendos aos sócios ao pressuposto de que estes já haviam sido tributados nas pessoas jurídicas – o que também entendemos não ser exato, uma vez que a Lei 9.249/95 teve dentre seus principais objetivos o de mera simplificação do sistema tributário, sendo que a diferença entre o lucro apurado contabilmente, passível de distribuição isenta, e o lucro efetivamente sujeito a tributação na sociedade, existiu em diversas situações, como a de depreciação acelerada, para ficarmos apenas neste exemplo.  Em todo caso, com base na premissa de que a diferença entre o lucro da pessoa jurídica, apurado de acordo com as novas regras contábeis, e o tal “lucro fiscal”, apurado de acordo com as regras vigentes em 31.12.2007, não teria sido devidamente tributada na sociedade pessoa jurídica, em razão da existência do RTT, a PGFN defendeu que tal diferença deveria supostamente ser tributada quando de sua distribuição. O Parecer 202/13 acabou servindo de base também para as autoridades fiscais emitirem a Solução de Consulta nº 103, de 2.8.2013 (Solução de Consulta 103/13), na qual concluíram que os limites de dedutibilidade dos JCP pagos por uma pessoa jurídica a seus sócios deveriam levar em consideração os valores de patrimônio líquido apurados conforme as regras contábeis vigentes em 31.12.2007[1].

Ocorre que nem o Parecer 202/13, nem a Solução de Consulta 103/13, possuíam efeitos vinculantes para os contribuintes em geral, servindo tão somente como indicativo do entendimento das autoridades fiscais sobre o assunto. Assim, com o intuito de tornar obrigatória a aplicação desse entendimento aos demais contribuintes, a Receita Federal do Brasil editou, em 16.9.2013, a Instrução Normativa 1.397/2013 (IN 1.397/13), sob o pretexto de regular integralmente o RTT, conforme previsto na Lei 11.941/09, e determinar procedimentos específicos que deveriam ser adotados pelas empresas brasileiras.

Para os dividendos, o artigo 28 da IN 1.397/13 determinou que os valores distribuídos em excesso à quantia apurada segundo as regras contábeis vigentes em 31.12.2007 deveriam: (i) se sujeitar à incidência do Imposto de Renda na Fonte (IRF) a alíquotas progressivas (0 a 27,5%), se pagos a pessoas físicas residentes no Brasil; (ii) ser adicionados à base de cálculo do IRPJ e da CSL se pagos a outras pessoas jurídicas brasileiras; (iii) se sujeitar à incidência do IRF à alíquota de 15% se pagos a não-residentes no Brasil; ou (iv) se sujeitar à incidência do IRF à alíquota de 25% se pagos a não-residentes no Brasil que tenham domicílio em jurisdições com tributação favorecida (paraísos fiscais). Para os JCP, a determinação do artigo 14, parágrafo único da IN 1.397/13 foi a de que os limites de dedutibilidade devem ser estipulados tendo por base os valores de patrimônio líquido apurados com base nas regras e critérios contábeis vigentes em 31.12.2007.

A nosso ver, porém, o entendimento das autoridades fiscais não é o mais apropriado e a IN 1.397/13 carece da necessária base legal para impor tais efeitos tributários às pessoas jurídicas, devendo antes ser vista como uma indevida inovação no ordenamento jurídico-tributário relativo ao RTT. Em resumo, entendemos que devem ser levados em consideração, dentre outros, os seguintes pontos:

(i)        de forma geral, as divergências fiscais causadas pela aplicação das novas regras contábeis são meramente temporárias, não havendo que se falar na criação de riquezas novas ou na possível não-tributação permanente de valores distribuídos pela sociedade. Ao contrário, de forma geral, os efeitos de longo prazo devem ser os mesmos na contabilidade nova e nas regras contábeis de 2007, não havendo razão para se determinar a tributação dos dividendos das empresas sem que se conceda ao menos um crédito fiscal correspondente quando da anulação de tais efeitos no tempo;

(ii)       a lei brasileira prevê a existência de um único balanço, o qual deve ser apurado com base nas regras societárias e contábeis, sendo que o suposto “balanço fiscal” afigura-se um mero instrumento auxiliar para a apuração da base de cálculo de tributos. Como a lei tributária (Lei 9.249/95), que concede a isenção aos dividendos e garante a dedutibilidade dos JCP, faz referência ao balanço societário e esta não foi alterada pelo RTT ou por qualquer outra norma jurídica, não há que se falar na limitação da isenção para os valores apurados com base no suposto “balanço fiscal”; e

(iii)      a neutralidade fiscal instituída pelo RTT dirige-se aos efeitos diretos que as novas normas contábeis possam ter sobre a apuração da base de cálculo do IRPJ, CSL, PIS e COFINS, e não a todos e quaisquer efeitos indiretos de tais normas sobre a vida societária da pessoa jurídica, além do fato de que esta neutralidade deve ser imposta à pessoa jurídica distribuindo dividendos e JCP, e não a seus sócios.

No tocante especificamente aos JCP, não é demais destacar o fato de que o artigo 59 da Lei 11.941/09, a mesma lei que instituiu o RTT, previu expressamente que, no cálculo dos JCP pelas empresas, deveria ser feita a exclusão da conta de “ajustes de avaliação patrimonial”, criada no âmbito das novas normas contábeis convergentes ao IFRS. Ora, se o legislador tivesse a intenção de estabelecer efeitos amplos e indiretos ao RTT, como pretendido pelas autoridades fiscais com a edição da IN 1.397/13, não haveria de haver a previsão de exclusão apenas da conta de AAP nesse cálculo, conforme o artigo 59 da Lei 11.941/09.

Por fim, ainda que a IN 1.397/13 fosse válida para os efeitos pretendidos pelo Fisco, deve-se ressaltar que ela não poderia ser aplicada de forma retroativa, para alcançar fatos geradores pretéritos, sob pena de clara violação ao princípio da confiança legítima[2].

Como perspectiva, vale mencionar ainda a existência do Projeto de Decreto Legislativo (PDL 1.296/13), em trâmite na Câmara dos Deputados, com o declarado objetivo de sustar os efeitos da IN 1.397/13 e, de outro lado, também o fato de a própria Receita Federal ter alegadamente declarado à imprensa, em 2.10.2013, que não mais buscaria a aplicação retroativa da IN 1.397/13 e que, ao invés disso, enviaria ao Congresso uma Medida Provisória regulamentando o RTT, ou o seu fim, ainda este ano de 2013[3]. Se aprovada e convertida em lei ainda este ano, tal MP seria válida a partir de 2014.  Resta tentar sobreviver em meio a toda essa incerteza enquanto se aguardam as cenas dos próximos capítulos.

 


[1]SOLUÇÃO DE CONSULTA RFB Nº 103, DE 09 DE MAIO DE 2013“JUROS SOBRE CAPITAL PRÓPRIO. REGIME TRIBUTÁRIO DE TRANSIÇÃO. Na vigência do Regime Tributário de Transição, quando do cálculo da parcela a deduzir prevista no art. 9º da Lei nº 9.249, de 1995, deverão ser considerados a composição e valor do patrimônio líquido definidos segundo os métodos e critérios contábeis vigentes em 31 de dezembro de 2007. Não há que se cogitar da produção de efeitos tributários decorrentes da adoção de métodos e critérios destinados a promover a harmonização das normas contábeis brasileiras às normas internacionais, se não vigentes naquela data, inclusive no que diz respeito ao cálculo do montante dedutível a título de Juros sobre Capital Próprio.”Dispositivos Legais: Lei no 11.941, de 27 de maio de 2009, arts. 15 e 16; Nota Cosit no 16, de 17 de maio de 2012; Parecer PGFN no 202, de 07 de fevereiro de 2013 e Instrução Normativa SRF nº 11, de 21 de fevereiro de 1996, art. 30, parágrafo único.

[2]Acórdão CARF nº 1201-00.658.

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