A Inconstitucionalidade da Taxa Única de Serviços Tributários da Receita Estadual Instituída pelo Rio de Janeiro por Meio da Lei nº 7.176/15
por Eduardo Landi De Vitto
Pós Graduado em Direito Fiscal pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Pós Graduando em Direito Tributário e Contabilidade Tributária pelo Ibmec do Rio de Janeiro
Advogado
Ricardo Micheloni da Silva
Graduado pela Universidade Gama Filho – UGF (1988)
Pós- graduado lato sensu pela Universidade Gama Filho em Direito Tributário (1990) e pela UERJ (2005) na mesma área
Pós-graduado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) MBA em Direito da Economia e da Empresa (1997)
Especialização em Direito Processual Civil pela Fundação Getúlio Vargas – FGV (2004)
Doutorando em Direito Econômico e Tributário pela Universidade Lomas de Zamora – Buenos Aires – AR (início 2014 – 2017)
Em razão da grave crise econômica que assola o País e, de maneira ainda mais grave o Rio de Janeiro, no final do anos de 2015, o Poder Executivo Estadual enviou à Assembleia Legislativa projeto de lei instituindo nova taxa de serviços tributários.
Sem qualquer tipo de discussão, os legisladores aprovaram referido o projeto e o converteram na Lei nº 7.176/15, que inseriu o artigo 107-A no Código Tributário Estadual para instituir a Taxa Única de Serviços Tributários da Receita Estadual.
Os serviços que antes eram cobrados de maneira individualizada, de acordo com a efetiva atuação estatal, passaram a ser remunerados através de uma taxa periódica, já que cobrada trimestralmente, e dissociada de qualquer solicitação do contribuinte.
Tal recolhimento trimestral irá variar de R$ 2.101,61 a R$ 30.023,00 a depender do valor das operações de saída ou do número de documentos emitidos pelo contribuinte nos doze meses anteriores ao início do trimestre. As cinco faixas de recolhimento da Taxa Única são melhor compreendidas através da tabela que segue ao final do presente artigo.
Pelos valores exorbitantes percebe-se claramente que o Estado do Rio de Janeiro pretende utilizar a Taxa Única como reforço de caixa, por conta dos seus reiterados déficits orçamentários.
Em verdade, o Estado do Rio de Janeiro instituiu um novo imposto travestido de taxa, em completo desacordo com os mais básicos princípios constitucionais tributários, conforme iremos expor a seguir.
Primeiramente, cabe abordarmos a ausência de serviço público compulsório, certo e divisível capaz de justificar a instituição da Taxa Única pela Lei nº 7.116/15. Isso porque, a Lei Maior prevê em seu artigo 145 as espécies tributárias que podem ser instituídas pelos organismos políticos-administrativos brasileiros. São eles:
“Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos:
I – impostos;
II – taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição;
III – contribuição de melhoria, decorrente de obras públicas.
§ 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.
§ 2º As taxas não poderão ter base de cálculo própria de impostos.”
(grifamos)
Da leitura da norma supratranscrita, depreende-se que as taxas podem ser instituídas em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização de serviços públicos. Em ambos os casos, as taxas não poderão ter a mesma base de cálculo dos impostos, assunto que será abordado mais à frente.
No caso concreto, a Taxa Única instituída pela Lei nº 7.176/15 está definida expressamente como sendo uma taxa de serviço, ou seja: uma contraprestação que o contribuinte paga ao Estado em razão de sua atuação.
Nas palavras de Regina Helena Costa[i]:
“A taxa é, assim, tributo cuja exigência é orientada pelo princípio da retributividade, vale dizer, ostenta caráter contraprestacional – paga-se a taxa por ter-se provocado o exercício do poder de polícia, em razão de ter sido prestado serviço público e divisível ou, ainda, por ter sido serviço dessa natureza colocado à disposição do sujeito passivo”.
(grifou-se)
Tais serviços públicos estão bem definidos no artigo 79, do Código Tributário Nacional:
“Art. 79. Os serviços públicos a que se refere o artigo 77 consideram-se:
I – utilizados pelo contribuinte:
a) efetivamente, quando por ele usufruídos a qualquer título;
b) potencialmente, quando, sendo de utilização compulsória, sejam postos à sua disposição mediante atividade administrativa em efetivo funcionamento;
II – específicos, quando possam ser destacados em unidades autônomas de intervenção, de utilidade, ou de necessidades públicas;
III – divisíveis, quando suscetíveis de utilização, separadamente, por parte de cada um dos seus usuários.”
(grifou-se)
Por expressa previsão legal, a cobrança de taxa periódica por serviços públicos potenciais somente poderá ocorrer quando tais serviços forem compulsórios. São serviços que, ainda que sejam voltados aos indivíduos, se tornam obrigatórios em nome da coletividade.
No caso da Taxa Única, os serviços aos quais ela visa retribuir não são compulsórios (ainda que essenciais a muitos contribuintes). Em verdade, são serviços que devem ser efetivamente usufruídos para poder haver a contraprestação pecuniária (emissão de certidão, apresentação de impugnação, etc).
Ou seja, a Lei nº 7.176/15 nunca poderia prever a cobrança de taxa periódica (trimestral) para serviços não obrigatórios, ou seja, que dependem da efetiva fruição pelo contribuinte. Ao assim dispor, ofende frontalmente o artigo 79, do Código Tributário Nacional e o artigo 145, da Constituição Federal.
Ademais, conforme a mesma legislação, exige-se, para a instituição das taxas, que o serviço seja específico e divisível. Ou seja: específico quando a atividade estatal puder ser individualizada e divisível quando for possível identificar os usuários que fizeram uso do referido serviço.
Uma rápida leitura da Lei nº 7.176/15 é suficiente para concluir que ela institui uma taxa genérica e única, em substituição à remuneração de diversos serviços estatais e independentemente de sua utilização. Não poderia ser diferente, posto que seu único intuito é o aumento da arrecadação.
Por maior que seja o esforço interpretativo, a Taxa Única não pode ser classificada como específica, já que não se sabe qual atividade estatal será remunerada (pode não ocorrer atividade alguma) e não pode ser considerada divisível, pois não é possível identificar os contribuintes que fizeram uso dos serviços públicos.
Neste sentido, já se posicionou o Supremo Tribunal Federal:
“CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. TAXA DE LIMPEZA PÚBLICA: MUNICÍPIO DE IPATINGA/MG. C.F., art. 145, II. CTN, art. 79, II e III.
I. – As taxas de serviço devem ter como fato gerador serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos à sua disposição. Serviços específicos são aqueles que podem ser destacados em unidades autônomas de intervenção, de utilidade ou de necessidade públicas; e divisíveis, quando suscetíveis de utilização, separadamente, por parte de cada um dos usuários. CTN, art. 79, II e III.
II. – Taxa de Limpeza Pública: Município de Ipatinga/MG: o seu fato gerador apresenta conteúdo inespecífico e indivisível.
III. – Agravo não provido”
(RE 366086 AgR, Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO, Segunda Turma, julgado em 10/06/2003, DJ 01-08-2003 PP-00137 EMENT VOL-02117-45 PP-09708)
(grifamos)
Assim, com base nos argumentos até aqui expostos, não há como justificar a cobrança da Taxa Única, já que instituída pela Lei nº 7.176/15 em completo desacordo com a Constituição Federal e o Código Tributário Nacional.
Porém, não é só. A Taxa Única também está maculada pela inconstitucionalidade, já que utiliza a mesma base de cálculo do ICMS, ou seja, parâmetros alheios aos serviços públicos prestados.
Como já afirmamos linhas acima, a Constituição Federal veda expressamente que as taxas tenham a mesma base de cálculo dos impostos. É o que se depreende da leitura do parágrafo segundo do artigo 145 da Lei Maior:
“Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos:I – impostos;
II – taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição;
III – contribuição de melhoria, decorrente de obras públicas.
§ 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.
§ 2º As taxas não poderão ter base de cálculo própria de impostos.”
(grifamos)
Tal vedação, ao contrário do que muitos pensam, não tem a intenção de evitar a bitributação. Está ligada à própria essência das taxas e seu caráter retributivo, como explica com maestria Rogério Leite Lobo[ii]:
“A base de cálculo tem que ser a perspectiva dimensível do aspecto material da hipótese de incidência, de modo a afigurar-se como sua verdadeira e autêntica expressão econômica; desrespeitado este princípio, o tributo será inexigível”.
(grifamos)
Em outras palavras, a instituição da Taxa Única deveria levar em consideração os valores dos serviços prestados pela Secretaria de Fazenda e nunca relacionar a sua cobrança às características da atividade econômica dos contribuintes. Ao assim proceder, o Estado do Rio de Janeiro criou um imposto travestido de taxa.
Tal fato é inquestionável. Pela tabela constante da Lei nº 7.176/15, percebe-se que os contribuintes serão enquadrados em uma de suas cinco faixas não pelos custos dos serviços públicos prestados, mas sim de acordo com os valores das suas saídas ou da quantidade de documentos fiscais emitidos.
Trata-se, portanto, da mesma base de cálculo já utilizada pelo ICMS (valor das saídas), totalmente distante da atividade estatal que deveria ser a causa da instituição da taxa. Ou, para usar os termos do texto constitucional, a Lei nº 7.176/15 utiliza “base de cálculo própria de impostos” para instituir uma taxa.
O professor Humberto Ávila[iii] já estudou o assunto e assim se posicionou:
“Base de cálculo ‘própria’ de impostos é aquela apropriada à mensuração da atividade econômica dos contribuintes, mesmo – e isto é crucial – que não seja idêntica àquela que já tenha servido para a incidência dos impostos.
Sendo a causa da instituição das taxas a atividade estatal, a sua base de cálculo deverá ser medida com base nessa atividade, não em elementos residentes nos contribuintes.”
(grifou-se)
Em total confronto com o Texto Constitucional, a Lei nº 7.176/15 foi editada tendo como critério para cobrança da Taxa Única fatores ligados aos contribuintes: valor das saídas ou emissão de documentos fiscais.
Como não poderia deixar de ser, o Supremo Tribunal Federal possui entendimento sedimentado no sentido de que deve haver correlação entre o custo do serviço e o valor da taxa. Confira-se:
“(…)
TAXA: CORRESPONDÊNCIA ENTRE O VALOR EXIGIDO E O CUSTO DA ATIVIDADE ESTATAL.
– A taxa, enquanto contraprestação a uma atividade do Poder Público, não pode superar a relação de razoável equivalência que deve existir entre o custo real da atuação estatal referida ao contribuinte e o valor que o Estado pode exigir de cada contribuinte, considerados, para esse efeito, os elementos pertinentes às alíquotas e à base de cálculo fixadas em lei.
– Se o valor da taxa, no entanto, ultrapassar o custo do serviço prestado ou posto à disposição do contribuinte, dando causa, assim, a uma situação de onerosidade excessiva, que descaracterize essa relação de equivalência entre os fatores referidos (o custo real do serviço, de um lado, e o valor exigido do contribuinte, de outro), configurar-se-á, então, quanto a essa modalidade de tributo, hipótese de ofensa à cláusula vedatória inscrita no art. 150, IV, da Constituição da República. Jurisprudência. Doutrina.
(…)
(ADI 2551 MC-QO, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 02/04/2003, DJ 20-04-2006 PP-00005 EMENT VOL-02229-01 PP-00025)
(grifou-se)
Assim, a imposição da Taxa Única tendo como base de cálculo parâmetros ligados exclusivamente aos contribuintes (atividade econômica) configura-se uma clara tentativa de instituir um novo imposto em completo desacordo com o parágrafo segundo, do artigo 145, da Constituição Federal.
Como se os vícios já apontados não fossem suficientes, ainda consideramos que a Lei nº 7.176/15 fere de morte o artigo 146, inciso III, da Constituição Federal, pois trata-se de uma lei ordinária alterando outra lei que trata de matérias reservadas à lei complementar (Código Tributário Estadual).
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro já se manifestou anteriormente através da Representação de Inconstitucionalidade nº 42/01, que julgou inconstitucional o artigo 1º, da Lei nº 3.347/99 que alterava o Código Tributário Estadual. Vejamos curta passagem do Acórdão:
“À época da edição do Código Tributário Estadual, recebe ele a forma normativa de decreto-lei (Decreto-Lei nº 5/75), porém, resta indubitável sua eficácia de lei complementar, considerando a natureza das matérias que compreende e regula.
(…)
Situação análoga verifica-se no Código Tributário Nacional (Lei nº 5172/66), que, a despeito de tratar-se de verdadeira lei ordinária, restou recepcionado pela vigente ordem constitucional com eficácia de lei complementar.
(…)
Por conseguinte, as taxas incluem-se na reserva às leis complementares, afastando a possibilidade de lei ordinária reger a não incidência dessa espécie tributária, como verifica-se no artigo 1º da Lei nº 3.347/99, ao dispor sobre não-incidência dirigida ao sujeito passivo, além de dispor sobre a arrecadação e a destinação do tributo, que são normas gerais, normatizadas pelo Código Tributário Estadual, razão pela qual motivos de ordem social inviabilizam dar-se tratamento diferenciado a tais normas, sob pena de incorrer-se em invalidade legal.
Por todo o exposto, julgar-se (sic) procedente o pedido consoante (sic) da representação por inconstitucionalidade para o fim de ser declarada inconstitucional (sic) do artigo 1º, da Lei Estadual nº 3.347/99, que derrogou o Código Tributário Estadual do Rio de Janeiro, em seus artigos 106 e 107.”
(Representação de Inconstitucionalidade nº 42/01 – Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro – 29.10.2002 – votação unânime)
(grifamos)
Portanto, apenas uma lei complementar poderia alterar o disposto no Código Tributário Estadual, já que a Constituição Federal reserva a essa espécie normativa a exclusividade para tratar de normas gerais de direito tributário.
Por fim, mas não menos importante, a Taxa Única prevista na Lei Estadual nº 7.176/15 tem nítidos contornos confiscatórios, ne medida em que prevê a necessidade de recolhimentos periódicos até mesmo de contribuintes sem qualquer atividade (que não tenham saídas registradas e emissão de documentos fiscais).
Conclui-se que a instituição da Taxa Única tem o único objetivo de ajudar o Governo do Estado do Rio de Janeiro a reforçar o caixa do tesouro em razão da grave crise financeira, que paralisou a saúde pública e jogou os servidores na incerteza quanto ao recebimento de suas remunerações. Ainda que as razões sejam aceitáveis, os limites impostos pela Constituição Federal e pelo Código Tributário Nacional devem ser respeitados, o que infelizmente não ocorreu.
O Poder Judiciário já tem atuado no sentido de fazer valer o sistema normativo constitucional através da concessão de diversas liminares suspendendo a cobrança da Taxa Única até o julgamento de mérito das ações. Acreditamos que em breve a Lei nº 7.176/15 se tornará apenas uma lembrança amarga dos equivocados atalhos escolhidos pelo Estado brasileiro para suplantar sua própria ineficiência.
QUADRO DA LEI Nº 7.176/15 CONTENDO AS FAIXAS DE ENQUADRAMENTO PARA PAGAMENTO DA TAXA ÚNICA
Faixa |
Total de Saídas |
Total de Documentos |
Taxa Única de Serviços Tributários da Receita Estadual devida (em reais) |
01 |
De R$ 0,00 |
Até 6000 |
2.101,61 |
02 |
De R$ 3.600.000,01 |
De 6001 a 24.000 |
4.503,45 |
03 |
De R$ 5.000.000,01 |
De 24.001 a 120.000 |
9.006,90 |
04 |
De R$ 10.000.000,01 |
De 120.001 a 780.000 |
15.011,50 |
05 |
Acima de R$ 50.000.000,00 |
Acima de 780.000 |
30.023,00 |
[i]COSTA, Regina Helena. Curso de Direito Tributário: Constituição e Código Tributário Nacional. Saraiva, 2009, p. 115
[ii] LOBO, Rogério Leite. Sobre a Base de Cálculo dos Tributos. O Princípio Geral de Direito Tributário que Informa o §2º do Art. 145 da Constituição Federal. Caracterização e Aplicabilidade, em RDDT nº 34, julho de 1998
[iii] ÁVILA, Humberto. As taxas e sua mensuração. RDDT nº 204, setembro de 2012, p. 37-44