A inconsistência na interpretação do termo “insumo” nas diversas decisões da Receita Federal do Brasil

por Tácito Ribeiro de Matos

por Anna Beatriz Podcameni

 

O artigo 195 da Constituição Federal dispõe que a lei definirá os setores da atividade econômica para os quais a Contribuição para o Programa de Integração Social (PIS) e a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS) devem incidir de forma não cumulativa.

Em observância aos preceitos constitucionais, foram editadas as Leis 10.637 (de 30 de dezembro de 2002) e 10.833 (de 29 de dezembro de 2003). Ambas dispõem em seu artigo 3º que as pessoas jurídicas podem tomar crédito em relação a “bens e serviços, utilizados como insumo na prestação de serviços e na produção ou fabricação de bens ou produtos destinados à venda (…)”.

A Receita Federal do Brasil (RFB) apresentou seu entendimento sobre o regime não-cumulativo do PIS e da COFINS por meio da Instrução Normativa 404, editada em 01 de fevereiro de 2004. O referido ato normativo limita, a nosso ver de forma ilegal, a sistemática de não cumulatividade, ao prever que somente são considerados como insumos os bens diretamente aplicados na fabricação ou produção de bens destinados à venda.

 Feita essa breve introdução dos dispositivos legais pertinentes, não se pode deixar de lembrar que a aplicação do princípio da não cumulatividade sempre foi objeto de relevantes controvérsias em relação ao Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e ao Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e sobre a Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS). Com a edição das Leis 10.637/2002 e 10.833/2003 tais discussões se estenderam à apuração do PIS e da COFINS.                     

A dúvida fundamental da aplicação desse princípio na apuração do PIS e da COFINS decorre, como já dito, da redação do inciso II do artigo 3º da Lei 10.637/2002 e da Lei 10.833/2003 que estabelecem a possibilidade de registro de créditos em relação a bens e serviços, utilizados como insumo. De forma mais simples, pode-se concluir que o cerne da questão é definir o que é “insumo”.

A RFB tem apresentado interpretação vacilante sobre o conceito de insumo aplicável ao PIS e à COFINS. As decisões em processos de consulta ou em discussões administrativas têm sido elaboradas em face de análise pontual dos casos concretos.  Essa aplicação pontual e casuística da norma deriva da premissa de que a sistemática da não cumulatividade, no caso do PIS e da COFINS, não foi alçada à condição de princípio constitucional, diferentemente do IPI e do ICMS. A possibilidade de registro de crédito das referidas contribuições na aquisição de insumos foi estabelecida por lei ordinária e, nesse contexto, é entendida pela RFB como um benefício fiscal previsto em lei. Se o registro dos créditos é um benefício fiscal, então, o Fisco poderia fazer uma interpretação restritiva do referido regime adotando, por exemplo, a teoria do crédito físico. Nessa linha teórica de interpretação, apenas os insumos diretamente ligados à atividade produtiva e efetivamente incorporados ao bem produzido gerariam direito ao registro de crédito de PIS e COFINS.

Há, contudo, uma outra corrente doutrinária, mais favorável ao contribuinte, que defende uma interpretação econômica ampla do princípio (teoria do crédito financeiro). Essa linha interpretativa assume que a não cumulatividade é um princípio constitucional expressamente previsto no § 12º do artigo 195 da Constituição Federal e, assim sendo, não poderia ter sua aplicação amesquinhada ou restringida. O intuito do legislador constitucional seria tributar “o valor agregado” e, se assim é, deve ser garantido o direito de registro de créditos de PIS e COFINS sobre todo custo ou encargo que é, ainda que de forma indireta, “repassado” (ou tecnicamente dizendo, “repercutido”) ao preço do bem ou serviço vendido.

A dicotomia interpretativa sumarizada nos parágrafos anteriores  foi explicitada de forma irretocável pelo ilustre Professor Ricardo Lobo Torres[1]: “Os impostos não-cumulativos sobre a circulação de bens podem adotar o sistema do crédito físico, em que se deduzem do imposto a pagar as quantias correspondentes aos tributos que anteriormente incidiram sobre as mercadorias empregadas fisicamente na industrialização ou comercialização; ou o do crédito financeiro, em que se deduzem todas as despesas necessárias à produção do bem”.

 Como já dito, nem mesmo a RFB tem um entendimento totalmente consolidado sobre o tema. Como se verá na tabela a seguir, as autoridades têm respondido a consultas de forma inconsistente e, até mesmo, divergente ao tratar de casos similares. Para fins exemplificativos, sumarizamos as decisões sobre alguns tipos de crédito usualmente discutidos em processos administrativos[2].

            Tipo de crédito Decisão sobre a tomada de créditos
Favorável Desfavorável Controverso
1 Frete contratado na:

 

1.a Compra de insumo

 

 

1.b Compra de bens para revenda

 

 

1.c Transporte interno

 

 

2 Frete contratado na: 

 

2.a Venda de mercadoria

 

 

2.b Transporte internacional

 

 

3 Serviço de manutenção de máquinas, equipamentos

 

 

4 Peças de reposição e conserto de máquinas, equipamentos

 

 

5 Serviços de limpeza e conservação da área operacional da sociedade

 

 

6 Energia elétrica de todos os estabelecimentos

 

 

7 Aluguel de prédios, máquinas e equipamentos

 

 

8 Despesas e custos com viagens operacionais

 

 

9 Combustíveis em geral e lubrificantes:

 

10.a Na atividade operacional

 

 

10.b No transporte interno

 

 

11 Custos e despesas relacionados à água operacional

 

 

12 Dispêndios relacionados às marcas e patentes

 

 

13 Custos relacionados a laboratório, testes, experiências e amostras

 

 

14 Dispêndios relacionados à coleta de resíduos

 

 

15 Dispêndios e custos com telefonia relacionados à atividade

 

 

Não apenas a RFB tem entendimento vacilante. O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) já prolatou decisões adotando a interpretação mais restritiva do conceito de “insumo”. No acórdão n° 202-19127, o Conselheiro Gustavo Kelly Alencar entendeu que se deve aplicar ao PIS e à COFINS o conceito de insumo físico adotado para fins do IPI, sob o argumento de que somente podem ser entendidos como “insumo” os bens e serviços diretamente utilizados no processo produtivo da empresa que se incorporam ao bem produzido.               

Ocorre que, em outra decisão, essa mesma corte administrativa adotou interpretação mais ampla do conceito de “insumo”. No acórdão n° 3.202-00226, o Conselheiro Gilberto de Castro Moreira Junior sustentou que não se pode usar o conceito de “insumo” do IPI para fins de PIS e de COFINS, uma vez que a materialidade do IPI é distinta daquela do PIS e da COFINS. Enquanto o elemento essencial para a incidência do IPI gira em torno do “produto”, o PIS e a COFINS incidem sobre o faturamento.  A legislação em questão faz menção expressa à “produção e fabricação” e não simplesmente ao “produto”. Nesse sentido, todos os gastos e despesas vinculados ao processo produtivo deveriam ser entendidos como “insumos” e, por conseguinte, gerariam registro de crédito na apuração das contribuições ora em comento. Para o Conselheiro, a definição de “insumo” para efeitos do PIS e da COFINS deveria buscar sustentação nos conceitos aplicáveis ao imposto sobre a renda da pessoa jurídica (IRPJ).               

A questão começa a ser apreciada pelo Poder Judiciário. Contudo, também não há entendimento consolidado sobre o tema. Em determinada decisão, o Tribunal Regional Federal (“TRF”) da 1ª Região interpretou as normas de forma restritiva, aplicando à apuração do PIS e da COFINS o conceito de “insumo” adotado na apuração do IPI[3]. Entretanto, mais recentemente, o TRF da 4ª Região[4] defendeu que seriam insumos todos os gastos ligados aos elementos produtivos, inclusive os dispêndios com manutenção e funcionamento da atividade operacional da empresa, ou seja, o Tribunal aplicou um conceito amplo de insumo.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), no Recurso Especial n° 1.147.902[5], decidiu que as despesas relacionadas ao frete de transporte de mercadorias entre estabelecimentos da mesma empresa não são insumos para fins de apuração do PIS e da COFINS. Ratificando decisão do tribunal de origem, o STJ sustentou que há semelhança no tratamento entre os conceitos de insumo aplicáveis ao IPI, ao PIS e à COFINS.

Muito embora não haja convergência dos entendimentos sobre o tema, não se pode olvidar a existência de fundamentos jurídicos para sustentar uma interpretação mais ampla do princípio da não cumulatividade.  O Prof. Lobo Torres, ao tratar especificamente da não cumulatividade do PIS e da COFINS, esclarece[6]: “(…) c) os créditos suscetíveis de aproveitamento na compensação com os débitos de PIS/PASEP e COFINS são os créditos físicos, financeiros ou presumidos indicados na legislação, sem qualquer restrição no tocante à sua natureza; d) inexiste óbice para que os contribuintes utilizem os créditos correspondentes aos custos necessários à produção das receitas, calculados de acordo com a lei aplicável, tendo em vista a ausência do princípio da repercussão obrigatória e do efeito de recuperação na sistemática da não-cumulatividade do PIS e da COFINS, (…)”. Ainda que baseado em outra linha de argumentação, o Dr. Ricardo Mariz também sustenta que[7]: “Neste sentido, constituem-se em insumos para a produção de bens ou serviços não apenas as matérias-primas, os produtos intermediários, os materiais de embalagens e outros bens quando sofram alteração, mas todos os custos diretos e indiretos de produção, e até mesmo despesas que não sejam registradas contabilmente a débito do custo, mas que contribuam para a produção. Nas Leis nº 10.637 e 10.833 encontramos elementos subsidiários de confirmação deste conceito, também hauridos da interpretação sistemática, agora pela consideração da maneira como a mesma lei se exprime em outros dispositivos.(…)”.

 Pelo exposto, somos de opinião que não se deveria aplicar a teoria dos créditos físicos ao regime não cumulativo previsto nas Leis 10.637/2002 e 10.833/2003, dentre outras razões, porque: (i) a própria lei previu a possibilidade de creditamento de itens que não se agregam ao bem produzido; (ii) a lei também estabeleceu a aplicação do conceito de “insumo” para casos de prestação de serviços – e nessa hipótese, sendo o serviço um bem incorpóreo, não se deveria falar em agregação física do insumo, só restando aplicar a tese da agregação econômica; (iii) o intuito do legislador foi estabelecer um regime de tributação do valor agregado e, uma vez que a base de cálculo do PIS e da COFINS é o faturamento, deve-se excluir dessa base de cálculo tudo aquilo que é imputado ao faturamento (agregação econômica de custos e despesas), mas que já foi “tributado” anteriormente – ou seja – teoria dos créditos econômicos.



[1] Torres, Ricardo Lobo – “A Não-Cumulatividade no PIS/COFINS” – parecer publicado na obra “PIS-COFINS – Questões Atuais e Polêmicas” – Editora Quartier Latin, 2005, página 60

[2] A indicação da tendência à homologação ou não dos créditos está baseada no entendimento majoritário das Delegacias da RFB (respostas a consultas), porém, pode haver entendimentos discrepantes.

[3] TRF 1ª Região, Apelação Cível n° 200438000375799, Desembargador Luciano Tolentino Amaral, em 23 de novembro de 2009 e TRF 3ª Região, Apelação em Mandado de Segurança n° 200561000285868, Juiz Souza Ribeiro, em 26 de março de 2009

[4] Desembargador Joel Ilan Paciornik, em 13 de julho de 2011

[5]Apelação Cível n° 0029040-40.2008.404.7100/RS, Relator Ministro Herman Benjamin, em 18 de março de 2010

[6] Op. cit. página 72

[7] Oliveira, Ricardo Mariz de – “Aspectos relacionados à Não-Cumulatividade da COFINS e da Contribuição ao PIS” – parecer publicado na obra “PIS-COFINS – Questões Atuais e Polêmicas” – Editora Quartier Latin, 2005, página 47

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