A INAPLICABILIDADE DO ATO DECLARATÓRIO INTERPRETATIVO RFB N. 8, DE 02.09.2014, EM RELAÇÃO AOS SERVIÇOS PRESTADOS POR PESSOA JURÍDICA RESIDENTE OU DOMICILIADA NO EXTERIOR
por Bruno Alberto Guilhem Pereira
Advogado em São Paulo.
Graduado em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo e em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie
Foi Presidente da Academia de Letras dos Estudantes da Univeridade Mackenzie
Atuou no Juizado Especial Cível, como conciliador concursado
Tem experiência acadêmica na área de Relações Internacionais e Direito, com ênfase em Direito do Comércio Internacional e Direito dos Contratos Internacionais
Integra a Área Tributária de TozziniFreire Advogados, participando do German Practice Group em TozziniFreire Advogados, tendo também experiência também na área Societária/M&A
INTRODUÇÃO
A hipótese de incidência do Imposto Sobre a Renda Retido na Fonte (“IRRF”), no âmbito de serviços profissionais prestados por uma pessoa jurídica a outra, é um tema controverso, tendo sido objeto de posicionamentos divergentes da Receita Federal do Brasil (“RFB”) em algumas oportunidades.
Com o intuito de solucionar a questão, foi editado e publicado o Ato Declaratório RFB n. 8 (“ADI n. 8”), por meio do qual as autoridades fiscais estabelecem que a retenção do IRRF deve ocorrer na data da contabilização do valor dos serviços, por meio de lançamento nominal ao fornecedor do serviço, a débito de despesas em contrapartida com o crédito de conta do passivo, à vista da nota fiscal ou fatura emitida pela contratada e aceita pela contratante.
Embora referido ato da RFB possa ser relevante para o contribuinte, no âmbito da relação entre duas pessoas jurídicas brasileiras, o mesmo não se verifica quando o prestador dos serviços vem a ser uma pessoa jurídica residente ou domiciliada no exterior.
O presente artigo tem como objetivo o de apresentar os principais aspectos do entendimento da RFB sobre o a retenção do IRRF que culminaram na edição do ADI n. 8, para, então, demonstrar as razões pela qual tal ato é inaplicável, no que tange aos serviços prestados por pessoa jurídica estrangeira.
1. POSICIONAMENTOS DA RFB QUANTO AO FATO GERADOR DO IRRF E SEU MOMENTO DE RECOLHIMENTO, EM RELAÇÃO A VALORES CREDITADOS POR UMA PESSOA JURÍDICA A OUTRA EM DECORRÊNCIA DA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PROFISSIONAIS
A dúvida surgida em relação ao nascimento da obrigação tributária relativa ao IRRF e ao momento de sua retenção, no caso de serviços profissionais prestados por uma pessoa jurídica a outra, decorre da redação do art. 647 do Regulamento do Imposto de Renda – decreto 3.000/99 (“RIR/99”), in verbis:
“Art. 647. Estão sujeitas à incidência do imposto na fonte, à alíquota de um e meio por cento, as importâncias pagas ou creditadas por pessoas jurídicas a outras pessoas jurídicas, civis ou mercantis, pela prestação de serviços caracterizadamente de natureza profissional.”
Dessa forma, a norma estabelece que o fato gerador do IRRF ocorre em dois eventos:
i)no momento do pagamento de valores, por uma pessoa jurídica a outra, relativo a serviços profissionais prestados; ou
ii)no momento do crédito de valores, por uma pessoa jurídica a outra, relativo a serviços profissionais prestados.
No entanto, o art. 647 do RIR/99 não define os conceitos de pagamento e de crédito, restando dúvida sobre o seu significado e limites de sua aplicação. Recorre-se então, ao Parecer Normativo CST n. 07/1986, que conceitua pagamento como sendo o momento em que a importância referente à prestação de serviços é colocada economicamente à disposição do prestador. O crédito, por sua vez, corresponderia ao instante em que houvesse disponibilidade jurídica sobre o montante devido, nos termos do art. 43 do Código Tributário Nacional (“CTN”).
Apesar dos esforços de interpretação da norma acima estudada, os critérios para determinação do fato gerador do IRFF permaneceram incertos, tendo em vista a amplitude do conceito conferido ao termo “crédito”. Nesse aspecto, os contribuintes questionavam se deveriam recolher o IRRF tendo como base para sua incidência o momento da emissão de uma nota fiscal relativa à prestação de serviços profissionais ou se a data a ser considerada era a do registro contábil do valor devido. Algumas pessoas jurídicas optavam por tomar posição tida como mais conservadora, considerando o fato gerador do IRRF ocorrido no momento da emissão das notas, enquanto outras entendiam como correto considerar ocorrida a hipótese de incidência do tributo no momento do registro da operação em seus livros contábeis.
A própria RFB, por meio de soluções de consultas com conteúdos discrepantes, demonstrou a dificuldade para resolver definitivamente o assunto. Por meio da Solução de Consulta n. 321, de 09 de dezembro de 2002, determinou que a retenção do imposto deveria ser realizada no momento do pagamento ou crédito, o que ocorrer primeiro, esclarecendo que, na hipótese de configuração primeiramente do crédito contábil, estaria configurado o fato gerador. No mesmo ano, a solução de consulta n. 338 elucidou que, caso o registro contábil de despesas de serviço ocorra antes do pagamento efetivo dos honorários referentes a tal prestação, se verifica o fato gerador do IRFF, devendo ocorrer a retenção.
Nesse sentido foi também a Solução de Consulta n. 133, de 26 de março de 2007, ao estabelecer que o fato gerador ocorreria no momento do crédito, considerado como o lançamento contábil na escrituração do tomador de serviços.
No entanto, a Solução de Consulta n. 60 de 18 de agosto de 2011 polemizou novamente, ao afirmar que: “O mero lançamento contábil não tem o poder de configurar o fato gerador do tributo. O beneficiário terá que possuir (adquirir) disponibilidade econômica ou jurídica do produto de seu serviço profissional.”.
Em 2013, a RFB utilizou-se da Solução de Divergência COSIT n. 26/2013 para harmonizar seu entendimento. Ficou determinado que o fato gerador do IRFF ocorre no momento do lançamento contábil da despesa relativa aos honorários devidos à pessoa jurídica prestadora de serviços profissionais, fato que constituiria o crédito, para fins de verificação da hipótese de incidência.
O ADI n. 8 veio consolidar o entendimento da RFB a respeito do momento de caracterização do crédito, para fins de verificação da ocorrência da hipótese de incidência do IRFF e consequente obrigação de retenção do imposto. Declarou que o fato gerador ocorre na data do lançamento contábil das despesas referentes à prestação de serviços. Ainda, determinou que a retenção deve ser efetuada no momento da contabilização do valor dos serviços prestados. A partir desse instante, considera-se o prazo para recolhimento do tributo
2. POSICIONAMENTOS DA RFB QUANTO À RETENÇÃO DO IRRF EM RELAÇÃO AOS RENDIMENTOS TRANSFERIDOS A UMA PESSOA JURÍDICA ESTRANGEIRA POR UMA PESSOA JURÍDICA BRASILEIRA
Verifiquemos agora os entendimentos da RFB quanto ao momento da ocorrência do fato gerador do IRRF, no que toca às pessoas jurídicas estrangeiras.
A Solução de Consulta n. 71 de 11 de julho de 2002 ao analisar o momento de incidência do IRRF relativo a rendimentos decorrentes de royalties, afirma que: “se ocorrer em primeiro lugar o crédito contábil dos royalties , nominal ao beneficiário, incondicional e não sujeito a termo, configura-se o fato gerador, ainda que a remessa dos valores se dê posteriormente, devendo ser retido e recolhido o imposto, em reais, e esse valor se torna definitivo, não cabendo a aplicação.”
Por sua vez, a Solução de Consulta n. 33 de 2003 determina que o imposto deve ser recolhido no momento do pagamento dos juros ao beneficiário residente ou domiciliado no exterior, quando então ocorreria o fato gerador.
Embora ambas as soluções apresentadas não abordem efetivamente a prestação de serviços profissionais, é possível vislumbrar a indefinição da RFB a respeito do momento de ocorrência da hipótese de incidência do IRRF no que tange à pessoa jurídica residente ou domiciliada no exterior.
Em 2009, a Solução de Consulta n. 98, determinou que, para que seja determinado o momento do crédito, deve haver disponibilidade jurídica dos valores a serem remetidos à pessoa jurídica estrangeira. Para tanto, é necessário que referido crédito seja incondicional (não sujeito a termo ou qualquer condição de cuja implementação depende seu pagamento) e nominal ao beneficiário. Assim sendo, o mero registro da obrigação nos livros contábeis não configura o crédito, já que os montantes não dispõem de certeza e liquidez necessários para verificação do fato gerador do IRRF, podendo ser alterados por eventos futuros. Nesse sentido determina também o Parecer Normativo CST no. 27, de 19 de dezembro de 1984.
3. O POSICIONAMENTO DAS INSTÂNCIAS ADMINISTRATIVAS TRIBUTÁRIAS SOBRE A HIPÓTESE DE INCIDÊNCIA DO IRRF, QUANTO ÀS PESSOAS JURÍDICAS RESIDENTES OU DOMICILIADAS NO EXTERIOR – O CASO JPO
O assunto em pauta já foi tratado em âmbito administrativo, no processo n. 3808.005907/2001-19, envolvendo a J. P. O. Exportação, Importação e Comércio Ltda. (“JPO”). No caso, a contribuinte foi autuada em cerca R$ 650.000,00, em decorrência da ausência de recolhimento do IRRF sobre rendimentos auferidos pela De Santi & Vallone, Inc., pessoa jurídica residente e domiciliada no exterior, devido como remuneração por serviço prestado. A JPO escriturou a obrigação, constituindo provisão contábil em seus registros.
O Fisco alegou ter ocorrido o fato gerador do IRRF, uma vez que pôde ser verificado o crédito em favor da pessoa jurídica estrangeira. Utilizou como base para sua alegação os registros contábeis da JPO em que estava demonstrada a dívida.
Por sua vez, o contribuinte brasileiro afirmou, em suma, que, embora tenha sido feita a contabilização do débito, não houve, em nenhum momento, disponibilidade jurídica ou econômica da importância a ser transferida à De Santi & Vallone, Inc. Consequentemente, não estaria caracterizado o crédito em favor da estrangeira, não se verificando a hipótese de incidência do IRRF.
Ao solucionar a controvérsia, a 6ª Câmara do Primeiro Conselho de Contribuintes, em sessão de 24 de janeiro de 2007 e por meio do acórdão 16-16.071, estabeleceu que a escrituração do crédito não caracteriza disponibilidade econômica ou jurídica de rendimentos devidos à pessoa jurídica estrangeiras, como se verifica pela ementa da decisão:
IMPOSTO DE RENDA NA FONTE. CRÉDITO CONTÁBIL. RESIDENTES OU DOMICILIADOS NO EXTERIOR. FATO GERADOR
– Estão sujeitas à incidência do imposto na fonte as importâncias pagas, creditadas, entregues, empregadas ou remetidas a beneficiários residentes ou domiciliados no exterior, por fonte situada no país. O registro contábil do crédito não caracteriza disponibilidade econômica ou jurídica dos rendimentos.
O julgado menciona expressamente que: “o crédito contábil, como simples provisionamento dos juros para pagamento de obrigação a vencer, em respeito ao regime de competência, sem que o aplicador possa juridicamente reclamar tal valor, pelo não vencimento da obrigação, não é fato gerador do imposto, ocorrendo tão logo esta condição seja implementada.” e que “o fato gerador do imposto de renda na fonte, pelo crédito dos rendimentos, relaciona-se, necessariamente, com a aquisição da respectiva disponibilidade econômica oras jurídica.”.
Houve recurso especial do Fisco à Câmara Superior de Recursos Fiscais (“CSRF”). Dessa forma, foi publicado o Acórdão 9304-00.114, decorrente de julgamento em sessão de 04 de maio de 2009, por meio do qual foi negado provimento ao recurso da autoridade fiscal e mantida a decisão. Como fundamento para tanto, além daqueles já utilizados no acórdão recorrido, alegou-se que o fato gerador do IRRF não teria ocorrido, pois para haver o crédito, deve haver disponibilidade sem qualquer obstáculo, o que não se verificou no caso concreto.
4. A INAPLICABILIDADE DO ADI8 EM RELAÇÃO AO IRRF INCIDENTE SOBRE OS RENDIMENTOS AUFERIDOS POR PESSOA JURÍDICA RESIDENTE OU DOMICILIADA NO EXTERIOR, EM DECORRÊNCIA DA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À PESSOA JURÍDICA BRASILEIRA
O ADI n. 8 não pode ser utilizado como fundamento para ocorrência do fato gerador do IRRF, na hipótese de os rendimentos sobre os quais incide o tributo serem auferidos por pessoa jurídica residente ou domiciliada no exterior, devido a prestação de serviço realizado em favor de pessoa jurídica brasileira.
Não poderia ser diferente, uma vez que:
i)O ADI8 não abrange expressamente pessoas jurídicas residentes ou domiciliadas no exterior;
ii)Como demonstrado, a RFB, por meio de soluções de consulta, estabeleceu posicionamento divergentes entre os momentos de ocorrência do fato gerador do IRRF, na hipótese de importâncias creditadas a pessoas jurídicas brasileiras e estrangeiras. Para as segundas, a efetiva disponibilização jurídica ou econômica dos recursos não se torna perfeita pela mera escrituração contábil da obrigação.
iii)O CSRF já se manifestou sobre o caso, decidindo pela impossibilidade de ocorrência do fato gerador, em decorrência da mera escrituração contábil, requerendo que exista disponibilidade jurídica ou econômica do crédito em favor da pessoa jurídica residente ou domiciliada no exterior, para fins de verificação da hipótese de incidência do IRRF.
Portanto, sendo o prestador de serviço residente ou domiciliado no exterior, não basta que o lançamento contábil ocorra, ainda que nos termos do ADI n. 8. Ainda que haja a escrituração, o crédito não está livre de obstáculos, sujeitando-se à condição, de cuja implementação depende seu pagamento. Tal condição refere-se aos procedimentos bancários para transferência de valores ao exterior. Faz-se necessário, de forma a existir efetiva aquisição da disponibilidade econômica e jurídica da importância a ser transferida, que tais procedimentos sejam concluídos pela pessoa jurídica brasileira para que, só então, possa se verificar o crédito, fato gerador do IRRF.
5. CONCLUSÃO
A partir de todos os argumentos expostos, podemos concluir que o ADI n. 8 não é aplicável na hipótese em que a prestadora de serviços é pessoa jurídica residente ou domiciliada no exterior.
Assim se pode afirmar, tendo em vista que a RFB tem consolidado o entendimento de que o mero registro contábil não basta para configuração do fato gerador, devendo haver certeza, liquidez e incondicionabilidade do crédito para que incida o imposto.
Além disso, há também decisões de órgãos julgadores, em instâncias administrativas tributárias que fundamentam e demonstrem a incompatibilidade de aplicação do ADI n. 8 às pessoas jurídicas residentes ou domiciliadas no exterior.