Princípio da Seletividade para o ICMS. Tributação de Energia Elétrica
por Alessandra Nishinari de Mello
Advogada em São Paulo
Silvio José Gazzaneo Junior
Advogado em São Paulo
O art. 155, § 2º, inc. III, da Constituição Federal de 1988 (CF/88), dispõe sobre a seletividade para fins do ICMS, estabelecendo que o imposto estadual poderá ser seletivo, em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços. “Seletivo” decorre de seleção, referindo-se à escolha de acordo com critérios e objetivos fundamentados. “Essencialidade”, por sua vez, diz respeito à qualidade do que é indispensável, necessário, importante.
O referido dispositivo constitucional outorgou ao legislador ordinário a faculdade de conferir ao ICMS um viés extrafiscal, onerando menos as mercadorias e serviços considerados essenciais e, em contrapartida, gravando com mais intensidade as mercadorias e serviços supérfluos (que é a grandeza inversamente proporcional à essencialidade).
Mas nem sempre foi assim. A tributação sobre a circulação de mercadorias (antigo ICM) foi concebida para que o imposto fosse neutro e exclusivamente fiscal. A Constituição pretérita consignava que a alíquota do imposto era uniforme para todas as mercadorias nas operações internas e interestaduais. Nessa época, Ruy Barbosa Nogueira[1] sustentava que o próprio conceito de uniformidade já induz à noção que, não podendo ser seletiva, nem progressiva, não comporta também as dispensas, reduções ou agravações de alíquotas.
Ana Mônica Filgueiras Menescal[2] registra que a atual previsão constitucional da seletividade para o ICMS decorre do mesmo espírito que deu origem a outros princípios e valores presentes na CF/88, tais como a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III), o desenvolvimento nacional (art. 3º, inc. II), a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais (art. 5º, inc. III), as necessidades vitais básicas do cidadão e de sua família – moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência (art. 7º, IV). O que se denota, portanto, é que muito mais do que uma norma tributária, o princípio da seletividade está estritamente vinculado ao ideal de justiça fiscal[3].
A CF/88, no entanto, não determina de que forma o princípio da seletividade deve ser instrumentalizado, tampouco quais seriam as mercadorias e serviços essenciais. Tudo isso ficou a cargo do intérprete do direito, que deve se valer dos postulados de hermenêutica e da razoabilidade para alcançar o fim pretendido pelo constituinte.
Embora a instituição de alíquotas diferenciadas seja a forma mais conhecida de aplicação da seletividade, o legislador tem liberdade para escolher a técnica de tributação que melhor lhe convier para esse fim. Significa dizer que, além da instituição de alíquotas diferenciadas, a redução de base de cálculo e até mesmo a isenção são legítimas para implementação da seletividade. O que se constata, todavia, é que o conceito de imposto seletivo está historicamente relacionado à adoção de diferentes alíquotas para diferentes situações.
Registre-se, por oportuno, que qualquer redução de carga tributária pelos Estados está vinculada a uma série de regras constitucionais. Primeiro porque a alíquota interestadual do ICMS foi definida pelo Senado Federal (12%). Além disso, a CF/88 determina que as alíquotas internas – enquanto o Senado não as estabelecer – não poderão ser inferiores às previstas para as operações interestaduais (ou seja, os mesmos 12%). Não obstante, qualquer alteração nesses limites, com o objetivo de diminuição da carga tributária, deve ser submetida ao crivo do CONFAZ.
No entanto, a questão toma outra proporção ao se analisar o que vem a ser essencial. São muitas as manifestações doutrinárias que se debruçam sobre o assunto, sendo que a maioria delas vincula o conceito de essencialidade às mercadorias e serviços indispensáveis para manutenção da vida, ou ainda de adequação do produto à vida do maior numero de habitantes do país[4].
A celeuma poderia ter sido dirimida (ou ao menos delimitada) por ocasião da edição da Emenda Constitucional n. 31, de 14.12.2000, que abriu a possibilidade de os Estados criarem Fundos de Combate à Pobreza com recursos advindos de adicionais de ICMS. Nesta ocasião, foi acrescentado ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) o art. 83, que impunha ao legislador federal o dever de definir os produtos e serviços supérfluos sujeitos ao adicional. No entanto, nenhuma lei foi editada e a obrigatoriedade de edição de lei federal foi suprimida pela Emenda Constitucional n. 42/2003 em relação aos Fundos Estaduais.
A despeito do rumo que tomou a discussão do adicional de ICMS, parece-nos que sujeitar o legislador à tarefa de definir o conceito de essencialidade realmente não é o melhor caminho. A essencialidade tem relação direta com a ciência econômica, notadamente no que concerne aos bens de consumo e, por essa razão, está sujeita a elementos temporais, circunstanciais e, até mesmo, regionais. Faça-se o seguinte raciocínio: em tempos de guerra, a indústria bélica é essencial; todavia, em tempos de paz, ela é supérflua quando comparada à necessidade de saneamento básico. Note-se, assim, que vincular a definição do que é essencial à edição de uma lei poderia sufocar o princípio prestigiado pelo constituinte, pois sujeitaria a seletividade ao demorado e penoso processo legislativo brasileiro, que sabidamente não acompanha os interesses e necessidades da sociedade.
Consequentemente, a ausência de norma definidora dos parâmetros de essencialidade endereça a questão para o campo da subjetividade e da razoabilidade. No entanto, o fato de determinada interpretação estar sujeita a critérios subjetivos não significa dizer que ela possa ser analisada à margem do ordenamento jurídico.
Havendo violação ao princípio da seletividade, o contribuinte sempre poderá recorrer ao Poder Judiciário, que tem o dever de avaliar o caso concreto à luz das disposições legais e constitucionais. Situações como essa ocorrem com frequência, especialmente nos casos em que a Justiça é instada a se manifestar sobre ofensas aos princípios da proporcionalidade e razoabilidade. Embora esses dois princípios não estejam definidos em nenhuma norma, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) é contundente ao vedar os excessos normativos e as prescrições irrazoáveis do Poder Público[5].
Feitos esses esclarecimentos, deve-se superar o argumento de que a seletividade não é obrigatória.
Realmente, as leis estaduais podem definir, no âmbito de cada Unidade Federada, a adoção de alíquota de ICMS uniforme, gravando todas as mercadorias e serviços sujeitos à tributação com a mesma carga. Ou seja, a aplicação da seletividade para fins do ICMS é, de fato, facultada aos Estados e Distrito Federal[6]. Entretanto, a partir do momento em que o Estado opta por adotar alíquotas diferenciadas (e, atualmente, todos os Estados brasileiros fazem isso), então ele está obrigado a observar à teleologia da norma, aplicando o princípio da seletividade em função da essencialidade, e, por consequência, fica impedido de tributar um bem essencial com alíquota superior àquela que tributa um bem supérfluo, ou menos essencial.
É neste contexto em que se insere a discussão sobre a constitucionalidade da alíquota de ICMS de 25% incidente sobre a energia elétrica, para a qual o Supremo Tribunal Federal suscitou a existência de Repercussão Geral, no bojo do Recurso Extraordinário 714.139/SC[7].
Sob qualquer ângulo que se analise a questão, a adoção de alíquota tão elevada para a energia elétrica não atende aos parâmetros mínimos de seletividade e essencialidade previstos no texto constitucional. Hoje, a dignidade da pessoa humana, o desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e marginalização e redução das desigualdades sociais e as necessidades vitais básicas do cidadão e de sua família dependem, obrigatoriamente, do consumo de energia elétrica. É inadmissível que, à luz da essencialidade, a tributação da energia elétrica seja superior a de joalheria e pedras preciosas, por exemplo.
A jurisprudência em relação ao tema ainda carece de maturação, sendo que as decisões até então proferidas pelo STF não analisaram a fundo a questão, o que se espera seja feito no julgamento da referida Repercussão Geral.
Por ocasião do julgamento do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 634.457/RJ, o relator, Ministro Ricardo Lewandowski, manteve a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, fundamentada em inconstitucionalidade já declarada por seu Órgão Especial[8]. No caso, negou-se provimento ao agravo regimental diante da impossibilidade de reexame do método comparativo adotado e da interpretação da legislação ordinária. De todo modo, restou consignado no voto o entendimento de que, não obstante a possibilidade de instituição de alíquotas diferenciadas, tem-se que a capacidade tributária do contribuinte impõe a observância do princípio da seletividade como medida obrigatória, evitando-se, mediante aferição feita pelo método da comparação, a incidência de alíquotas exorbitantes em serviços essenciais.
O RE 714.139/SC, no qual foi suscitada a Repercussão Geral, foi interposto em face do acórdão proferido pela Quarta Câmara do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que considerou ilegítima a pretensão do contribuinte de redução da alíquota do ICMS relativo ao fornecimento de energia elétrica e ao serviço de comunicação, de 25% para 17% (regra geral), em função da essencialidade, sob entendimento de que a instituição da alíquota de 25% não violaria o art. 155, § 2º, inc. III, da CF/88, por envolver a norma constitucional uma faculdade e não uma imperatividade – como no caso do IPI.
O art. 155, § 2º, inc. III, da CF/88, certamente envolve uma faculdade: a de atribuir caráter extrafiscal ao ICMS, mediante aplicação da seletividade. Mas envolve também uma imperatividade: o critério de exercício dessa faculdade, que não pode ser outro senão a essencialidade. Com isso, o imposto estadual deixa de ter cunho meramente arrecadatório e passa a servir como instrumento de intervenção do Estado no desenvolvimento, na economia, nas relações sociais, dentre outros, na medida em que se passa a tributar menos as mercadorias e serviços indispensáveis, e mais os supérfluos.
Não há liberdade, pois, no critério de exercício da faculdade instituída pelo art. 155, § 2º, inc. III, da CF/88. Entendimento contrário tornaria letra morta o próprio dispositivo constitucional. Assim, uma vez que o Estado tenha optado pela seletividade, em detrimento da tributação uniforme, torna-se mandatória que sua aplicação seja orientada pela essencialidade.
A instituição da alíquota de 25% do ICMS incidente sobre o fornecimento de energia elétrica viola gravemente a essencialidade, na medida em que é orientada, não pela indispensabilidade da mercadoria, mas pela sanha arrecadatória de se tributar uma grandeza fruída, inevitavelmente, por todos os indivíduos do Estado.
REFERÊNCIAS
BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 11. ed. Atualizadora: Misabel Abreu Machado Derzi. São Paulo: Forense, 2007.
MENESCAL, Ana Mônica Filgueiras. A seletividade como instrumento concretizador da justiça fiscal no âmbito do ICMS. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito Constitucional. Disponível em www2.unifor.br/tede//tde_busca/arquivo.php?codArquivo=761741. Acesso em 18.12.2014.
NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Direito tributário. São Paulo: José Buschatsky Editor, 1969.
[1] NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Direito tributário. São Paulo: José Buschatsky Editor, 1969.
[2] MENESCAL, Ana Mônica Filgueiras. A seletividade como instrumento concretizador da justiça fiscal no âmbito do ICMS. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito Constitucional. Disponível em www2.unifor.br/tede//tde_busca/arquivo.php?codArquivo=761741. Acesso em 18.12.2014.
[3] Há divergência na doutrina a respeito da relação entre a essencialidade e o princípio da capacidade contributiva. Há quem sustente que o primeiro decorre do segundo. Todavia, entendemos que eles decorrem do mesmo ideal de justiça fiscal; em alguns aspectos, até mesmo se tocam e geram os mesmos efeitos; todavia, tecnicamente, não se confundem, de modo que a essencialidade pode se manifestar em hipóteses não relacionadas, necessariamente, com a capacidade contributiva.
[4] BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 11. ed. Atualizadora: Misabel Abreu Machado Derzi. São Paulo: Forense, 2007.
[5] Ação Direita de Inconstitucionalidade 1407-2, julgada em 07.03.1996, pelo Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal.
[6] Diferentemente do que ocorre no âmbito do IPI, de caráter eminentemente extrafiscal, onde a seletividade é impositiva, por força do art. 153, § 3º, inciso I, da CF/88 (“será seletivo, em função da essencialidade do produto”).
[7] Discute-se a inconstitucionalidade da lei estadual de Santa Catarina, que fixou em 25% a alíquota do ICMS incidente sobre o fornecimento de energia elétrica e os serviços de telecomunicação.
[8] Em 27.3.2006, no julgamento da Arguição de Inconstitucionalidade 0021368-90.2005.8.19.0000, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro declarou a inconstitucionalidade do art. 14, inciso VI, item 2, e inciso VIII, item 7, do Decreto n. 27.427/2000, que instituía alíquota de 25% para o fornecimento de energia elétrica e o serviço de telecomunicação, sob o fundamento de desatenção aos princípios constitucionais da seletividade e essencialidade, dispostos no Artigo 155, §2o da CRFB.