O Princípio da Seletividade e o ICMS Incidente sobre a Energia Elétrica

por Ana Carolina Carpinetti
Associada da Área Tributária do Escritório Pinheiro Neto Advogados
Bacharela pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
Mestra em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Marco Aurelio Louzinha Betoni
Associado da Área Tributária do Escritório Pinheiro Neto Advogados
Bacharel pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

 

O Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (“ICMS”) é tributo de competência estadual e do Distrito Federal, previsto no artigo 155 da Constituição Federal (“CF”), que incide sobre a circulação de mercadorias e em razão da prestação de serviços de transporte interestadual ou intermunicipal e de serviços comunicação.

 Em decorrência da interpretação do texto constitucional e da Lei Complementar nº 87, de 13.9.1996 (LC nº 87/96) a energia elétrica é considerada mercadoria, e, portanto, sujeita ao imposto estadual.

 Nos termos do artigo 155, § 2º, inciso III, da CF estabelece que o ICMS poderá ser seletivo em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços vendidos, por meio da redução das alíquotas do tributo estadual. A CF, dessa forma, permite que os Estados e o Distrito Federal adotem a seletividade na cobrança do ICMS. Entretanto, apesar da existência de alíquotas diferenciadas, o que se constata atualmente é que esse princípio não é obedecido integralmente sob a alegação de não ser obrigatório.

 O presente artigo analisará a aplicação do princípio da seletividade ao ICMS especificamente em relação à tributação da energia elétrica, assunto que vem ganhando relevância ultimamente e teve sua repercussão geral reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (“STF”) nos autos do Recurso Extraordinário nº 714.139, distribuído sob a relatoria do Ministro Marco Aurelio Mello.

 O princípio da seletividade busca diferenciar a tributação de bens ou serviços em razão da necessidade desses produtos ou serviços pela sociedade em geral. Nesse sentido, os bens imprescindíveis deveriam estar sujeitos à alíquotas inferiores em comparação aos bens considerados supérfluos.

 Nas palavras de Aliomar Baleeiro, esse princípio pode ser definido como a “discriminação ou sistema de alíquotas diferenciadas por espécies de mercadorias. Trata-se de dispositivo programático, endereçado ao legislador ordinário recomendando-lhe que estabeleça as alíquotas em razão inversa da imprescindibilidade das mercadorias de consumo generalizado. Quanto mais sejam elas necessárias a alimentação, vestuário, à moradia, ao tratamento médico e higiênico das classes mais numerosas, tanto menores devem ser”[1].

 Se por um lado os tributos tem a função principal de arrecadação e geração de receitas aos entes políticos, a tributação também pode influenciar as condutas, estimulando ou inibindo o consumo de determinada mercadoria ou produto. E é justamente nesse contexto que se coloca o princípio da seletividade do ICMS que possibilita que o imposto estadual facilite ou dificulte o acesso dos contribuintes a bens e serviços em razão da essencialidade dessas mercadorias e serviços à sociedade em geral, como prevê o artigo 155, § 2º, inciso III da CF.

 Nesse sentido, a essencialidade pode ser definida como a necessidade do consumo humano de determinados bens e serviços que permitam à sociedade viver de forma razoável e digna e sua aplicação se dá pela criação de alíquotas variáveis. De acordo com esse princípio, bens supérfluos como, por exemplo, o cigarro, devem ser onerados pela aplicação de alíquotas altas exatamente para desestimular o consumo, afinal não só não são essenciais à sociedade como ainda prejudicam a saúde humana. Por outro lado, bens como água ou leite, que são necessários à sobrevivência de qualquer pessoa, devem ter as alíquotas do ICMS reduzidas exatamente para que sejam mais acessíveis a toda a população.

 Como mencionado, a CF estabelece que o ICMS poderá ser seletivo em razão da essencialidade do bem ou do serviço e esse caráter autorizativo e não impositivo abre margem para que os Estados e o Distrito Federal não apliquem o princípio da seletividade do ICMS a muitos bens e serviços que são essenciais à sociedade.

 A doutrina não é pacífica no que diz respeito à obrigatoriedade da aplicação do princípio da seletividade ao ICMS. Roque Antonio Carrazza ensina que “este singelo “poderá” equivale, na verdade, a um permptório “deverá”. Não se está, aí, diante de uma mera faculdade do legislador, mas de uma norma cogente, de observância obrigatória”[2]. Por outro lado, Hugo de Brito Machado[3] entende que a seletividade dos ICMS é facultativa com base em interpretação literal do disposto no artigo 155, § 2º, inciso III, da CF.

 Em que pese não existir entendimento unânime da doutrina em relação à obrigatoriedade da aplicação do princípio da seletividade ao ICMS, a nosso ver, uma vez determinada a aplicação de alíquotas diferenciadas, os Estados e o Distrito Federal devem observar o critério da essencialidade previsto pelo legislador constitucional.

 Apesar disso, o que temos na prática é a adoção de alíquotas diferenciadas sem que o critério da essencialidade seja obedecido, trazendo como consequência a existência de alíquotas mais altas para produtos e serviços essenciais à sociedade e alíquotas reduzidas para produtos dispensáveis.

 Um exemplo claro disso é a alíquota do ICMS aplicável às operações com energia elétrica.

 A energia elétrica permite a utilização de uma lâmpada para iluminar o escuro, além de viabilizar, por exemplo, o aquecimento da água utilizada para o banho (até mesmo nos casos dos aquecedores a gás mais recentes, que são alimentados por energia elétrica), a conservação de alimentos perecíveis na geladeira, a utilização de computadores e até o acesso à internet para execução de trabalhos ou pagamento de contas. A energia elétrica permite o funcionamento de todos os aparelhos elétricos e eletrônicos que fazem parte do cotidiano de todos nós.

 Além disso, o exercício de praticamente toda a atividade econômica exige a energia elétrica seja para o funcionamento de equipamentos, computadores, telefone, máquinas de cartão de crédito etc.

 Sobre a essencialidade desse bem, Hugo de Brito Machado Segundo ensina que “sem energia elétrica não há vendas, prestação de serviços ou produção. Não se vive, apenas se sobrevive, e mal. Enfim, no momento histórico atual, não se pode em sã consciência se questionar a essencialidade da energia elétrica”[4].

 Dessa forma, uma vez adotada a sistemática das alíquotas diferenciadas para fins de tributação pelo ICMS, é obrigatório que essa distinção leve em conta a essencialidade das mercadorias sujeitas à tributação, sob pena de tornar letra morta o artigo 155, § 2º, inciso III da CF.

 Tendo em vista sua relevância, a não observância do princípio da seletividade do ICMS em razão da essencialidade dos produtos e serviços será analisada pelo STF no julgamento Recurso Extraordinário nº 714.139/SC.

 Ao examinar a existência de repercussão geral sobre o assunto, o Ministro Relator entendeu que a não aplicação da essencialidade na obtenção da alíquota do ICMS para a energia elétrica e para os serviços de comunicação é matéria de repercussão geral, cabendo ao STF definir o alcance do disposto no artigo 155, § 2º, inciso III, da CF.

 Por fim, vale destacar que em ocasiões anteriores, ao analisar o assunto em relação à energia elétrica e aos serviços de comunicação, o STF já se posicionou no sentido de reconhecer que a capacidade do contribuinte impõe a observância do princípio da seletividade como medida obrigatória evitando-se, assim, a incidência de alíquotas exorbitantes sobre bens e serviços essenciais[5].

 Portanto, pelos motivos acima demonstrados, concluímos que atualmente a energia elétrica é bem essencial à existência digna de qualquer cidadão e sem ela a vida em sociedade fica limitada e até mesmo impraticável. Por esse motivo, em respeito às previsões constitucionais, uma vez implementada a diferenciação de alíquotas ao ICMS pelos Estados e pelo Distrito Federal, a energia elétrica deve ser beneficiada por alíquotas inferiores do tributo estadual em razão de sua essencialidade.



[1] BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. Por Mizabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 1997

[2] CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 12ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

[3] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. São Paulo: Malheiros, 2007.

[4] MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. A tributação da energia elétrica e a seletividade do ICMS. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, 2008.

[5]Nesse sentido confira-se a decisão proferida pela Segunda Turma no Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 634.457/RJ, de 5.8.2014.

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