A Tributação de Embarcações de Instalação em Repetro na Etapa de Desenvolvimento de Campos de Petróleo e Gás e a Interpretação do Uso Interligado

por Fabio Luiz Gomes Gaspar de Oliveira
 Especialista em tributação de E&P
pós-graduado em Direito do Estado e da Economia pela Fundação Getúlio Vargas
MBA em Gestão Empresarial em Tributação e Contabilidade pela Universidade Federal Fluminense.[1]

 

1. Introdução

Com a crescente importância do Brasil no cenário energético global, mormente após as descobertas de grandes acumulações de hidrocarbonetos em águas profundas e ultra-profundas ocorridas nos últimos anos, bem assim as grandes perspectivas de gás natural no país, é chegada a hora de enfrentar alguns dos velhos paradigmas brasileiros que há muito atrapalham o desenvolvimento do país.[2]

Nesse sentido, é sabido e consabido que grande parte do chamado “custo Brasil” é oriunda da complexidade fiscal, carga tributária total e insegurança jurídica. As duas primeiras questões são frequentemente monitoradas por publicações feitas pela KPMG[3] e PWC[4] e, conquanto detrimentais ao investimento no país, são palpáveis e podem ser calculadas, de maneira que são conhecidas do tomador de decisão antes de definir investimentos.

Contudo, com o problema da insegurança jurídica a história é diferente. A imprevisibilidade da edição e alteração das normas, assim como interpretações que mudam ao sabor da conjectura política e econômica, traz aos investidores riscos incalculáveis e não raro suficientes para prevenir investimentos.

Os últimos anos foram maculados de forte insegurança na área fiscal relacionada com as atividades de exploração e produção de petróleo e gás natural. Com efeito, a discussão acerca da redistribuição dos Royalties gerou grande preocupação financeira aos estados produtores, notadamente Rio de Janeiro, Espírito Santo e São Paulo. Apenas no Rio de Janeiro, a perda esperada com a mudança nas regras de distribuição dos Royalties geraria um impacto de aproximadamente R$ 7 bilhões[5].

Os estados prejudicados adotaram, então, diversas medidas para contra-atacar na guerra federativa que se estabelecera. Uma medida, contudo, trouxe franca surpresa ao setor, especialmente na admissão temporária de embarcações de instalação em Repetro durante a etapa de desenvolvimento, afastando o benefício do “uso interligado às fases de exploração e produção” a que diz respeito o inciso III, da cláusula sexta, do Convênio ICMS nº 130/2007, em razão de mudança de interpretação por parte do Fisco.

Esta mudança de entendimento pode ser identificada em autuações lavradas em desfavor dos contribuintes do setor, bem como pela jurisprudência não unânime do Órgão Pleno do Conselho de Contribuintes do Estado do Rio de Janeiro[6], e será, doravante, objeto do presente trabalho. Acontece que, até recentemente, a Secretaria de Fazenda do Estado de Rio de Janeiro esposava o entendimento, manifestado por escrito através de Soluções de Consulta para diversos contribuintes, de que o “uso interligado às fases de exploração e produção” se referia à etapa de desenvolvimento, isentando o ICMS incidente na importação de equipamentos que se encaixassem nessa hipótese e que permanecessem no país por um prazo inferior a 24 meses.

2. O arcabouço jurídico aplicável

Inobstante a duvidável juridicidade do novo entendimento, salta aos olhos de início a violação à vedação ao comportamento contraditório, o qual é vedado pelo Direito pátrio, bem como pelo Direito comparado, e não pode ser admitido na presente hipótese, sobretudo pelo fato de se tratar de indústria que demanda vultuosos investimentos planejados com muitos anos de antecedência. A vedação ao comportamento contraditório, ou princípio da tutela da confiança legítima, é também conhecida pelo brocardo nemo potest venire contra factum proprium e é conceituado pela Doutrina de forma uníssona[7].

No mesmo sentido, o E. Superior Tribunal de Justiça, admitindo e aplicando o venire em nosso ordenamento, já decidira que em “havendo real contradição entre dois comportamentos, significando o segundo quebra injustificada da confiança gerada pela prática do primeiro, em prejuízo da contraparte, não é admissível dar eficácia à conduta anterior”[8].

Por outro lado, ainda que não se tratasse de ilegítima mudança de interpretação, fato é que o atual entendimento do fisco fluminense revela posição jurídica frágil e que pode ser descontruída com argumentos mais sólidos que se passa a aduzir.

Com efeito, a pedra fundamental do entendimento fazendário reside no fato de que o “uso interligado” a que diz respeito a norma em testilha é destinado àqueles equipamentos importados na fase de exploração e que sejam mantidos no país até a fase de produção, desde que dentro do interregno de 24 meses, sendo – agora – rechaçada a sua aplicação à etapa de desenvolvimento posto que esta está inserida dentro da fase de produção. Trata-se de leitura superficial, equivocada e distante da realidade do setor, sendo necessário, para adequada interpretação da hipótese, avaliar o contexto em que a norma se insere.

Nessa ordem de ideias, é certo que, na esteira da Lei 9.478/97, a fase de exploração serve às análises das áreas a serem avaliadas para determinação da existência de petróleo e gás natural e, ao final desse período, a área deve ser devolvida à ANP ou ser declarada a comercialidade dos campos que lhes são afeitos. Com a declaração de comercialidade inicia-se oficialmente a fase de produção, na qual são feitos os investimentos na etapa conhecida como desenvolvimento. Só então, após desenvolver o campo, é que se chega ao primeiro óleo e, efetivamente, à produção. Dessa forma, a lógica em que se insere a norma vergastada é justamente que entre explorar o bloco e produzir o óleo há uma etapa intermediária, ou interligada, que se revela pelo desenvolvimento. “Uso interligado às fases de exploração e produção”, então, não poderia, pela lógica do setor, ser outro que não a etapa de desenvolvimento.

Outra não poderia ser a conclusão sob a ótica de incentivo ao investimento. Ora, se na fase de exploração há isenção fiscal para atrair investidores para um dos negócios mais arriscados do mundo e na fase de produção encontra-se a tributação típica (naturalmente reduzida à luz dos vultuosos investimentos pecuniários), na etapa intermediária, ou seja, quando se desenvolve o ativo e onde há o maior dispêndio de capital mas ainda não se tem retorno ou produção, há de se seguir a mesma lógica de não se tributar o investimento antes que este possa produzir riqueza. Ou seja, equipamentos trazidos para essa etapa intermediária a interligar a pesquisa e a lavra ou a exploração e a produção de hidrocarbonetos se encaixam perfeitamente no perfil traçado pela norma sob o conceito de “uso interligado”.

Do estudo dedicado ao tema, Gustavo Brigagão (2012) conclui, como não poderia deixar de ser, que “É nessa etapa (desenvolvimento) que se interligam as fases de exploração (ou descoberta) e produção (ou extração). Logo, os bens importados para utilização nessa etapa em prazo inferior a dois anos estão isentos do imposto”.

Admitir o contrário revelaria a inutilidade da norma, já que inexistem equipamentos trazidos sob admissão temporária durante a fase de exploração e mantidos até a fase de produção. Essa não é a realidade da indústria e, portanto, não é a realidade da norma que lhe é destinada, mormente pelo fato de que tipicamente a interpretação anterior tinha serventia ao atender embarcações de instalação utilizadas interregno legal na etapa de desenvolvimento. É princípio basilar da hermenêutica jurídica aquele que a lei não contém palavras inúteis, sendo necessário que a norma seja aplicada à luz do seu contexto e de forma que se lhe dê sentido e serventia.[9]

Não fosse o bastante, é certo que a própria exigência do ICMS nos casos de admissão temporária é duvidosa, sendo rechaçada pelo pretório excelso como se pode verificar pela análise de precedentes, bem como da recente decisão alcançada por maioria no RE nº 540829 no último dia 11 de setembro, com repercussão geral reconhecida. Na ocasião, afirmou o Min. Luís Roberto Barroso: “Não incide o ICMS importação na operação de arrendamento internacional, salvo na antecipação da opção de compra, dado que a operação não implica a transferência da titularidade do bem[10].

Não é necessário grande esforço exegético para afastar a interpretação do fisco fluminense a respeito do tema enfrentado, notadamente quando o mesmo advém de alteração de entendimento fulcrada em matriz não jurídica, mas, ao revés, ocorrida em contexto diverso e cuja mera ocorrência é vedada pela melhor exegêse das normas aplicáveis e acima enfrentadas.

3. Conclusão

Conforme se viu, o país se encontra em grande euforia em matéria de O&G mas para se provar como viável é necessário que se torne mais amigável ao investimento estrangeiro, o que não pode ser feito sem garantir, ao menos, segurança jurídica e estabilidade fiscal. O custo Brasil deve ser minorado.

No presente trabalho isolou-se um dos temas que demonstra o problema da falta de segurança jurídica, qual seja, o ICMS no “uso interligado”, e buscou-se demonstrar como a mudança de interpretação em matéria tributária desfalcada de alicerce válido é deletéria ao Estado de Direito.

A conclusão, sem grande esforço jurídico, é que a importação de bens Repetro sujeitos ao “uso interligado” para utilização por um prazo inferior a 24 meses equivale à admissão de bens destinados à etapa de desenvolvimento e, bem assim, sujeitos à respectiva isenção. Entender o contrário seria negar vigência à norma aplicável, bem como injurídico num plano maior.

Referências

BRIGAGÃO, Gustavo. Inseguranças na tributação do setor do petróleo. Consultor Jurídico, 2012. Disponível em http://www.conjur.com.br/2012-jan-25/consultor-tributario-insegurancas-tributacao-setor-petroleo ; Acesso em 19/09/2014.

SANTOS, Alberto Marques dos. Regras científicas da hermenêutica. Revista Judiciária do Paraná, Curitiba: Amapar, jan.-2011, Ano VI, número 2. Disponível em: http://albertodossantos.wordpress.com/artigos-juridicos/regras-da-hermeneutica ; Acesso em: 19/09/2014.

SCHREIBER, Anderson. A Proibição de Comportamento Contraditório. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 88 e 101.



[1] Este artigo espelha a opinião do autor, não refletindo necessariamente a posição das instituições que o mesmo represente profissionalmente.

[3] Competitive Alternatives 2012: http://www.competitivealternatives.com/reports/2012_compalt_report_tax_en.pdf acesso em 08/01/2014.

[6] Acórdão nº 6.811, sessão do Conselho Pleno de 23 de janeiro de 2013.

[7] Por todos, Anderson Schreiber (2005): “O reconhecimento da necessidade da tutela da confiança desloca a atenção do direito, que deixa de se centrar exclusivamente sobre a fonte das condutas para observar também os efeitos fáticos de sua adoção. Passa-se da obsessão pelo sujeito e pela sua vontade individual, como fonte primordial das obrigações, para uma visão que, solidária, se faz atenta à repercussão externa dos atos individuais sobre os diversos centros de interesses, atribuindo-lhes eficácia obrigacional independentemente da vontade ou da intenção do sujeito que os praticou.”

 

[8] Resp n° 9553-9 – SP – Min. Ruy Rosado de Aguiar.

[9] Nesse sentido, esclarece Alberto Marques dos Santos (2011): “Na interpretação deve-se sempre preferir a inteligência que faz sentido à que não faz. Essa regra tem relação com uma passagem do jurisconsulto PAULO, no Digesto: nas proposições obscuras se costuma investigar aquilo que é verossímil, ou o que é de uso ser feito o mais das vezes. BARROS MONTEIRO a atualiza dizendo que “deve ser afastada a exegese que conduz ao vago, ao inexplicável, ao contraditório e ao absurdo”. E SAN TIAGO DANTAS lembrava que o brocardo o legislador não pode ter querido o absurdo é quase sempre verdadeiro [9]. Na interpretação de uma norma freqüentemente o operador deve optar entre mais de um possível sentido para o texto. Dentre os entendimentos que se pode extrair de uma norma, deve ser descartado aquele que conduz ao absurdo. Por absurda, aqui, se entende a interpretação que: a) leva à ineficácia ou inaplicabilidade da norma, tornando-a supérflua ou sem efeito (como será visto na 2ª regra, a lei não tem palavras nem disposições inúteis); b) conduz a uma iniqüidade: o preâmbulo constitucional diz que a justiça é um valor supremo da sociedade brasileira, e o art. 3º, I, da Constituição diz que é objetivo permanente da República (e de suas leis, por extensão) construir uma sociedade justa; c) infringe a finalidade da norma ou do sistema; d) conduz a um resultado irrealizável, impossível, ou contrário à lógica; e) conduz a uma colisão com princípios constitucionais ou regentes do sub-sistema a que se refere a norma: os princípios são vetores de interpretação, e constituem super-normas que indicam os fins e a lógica específica de um determinado sistema ou sub-sistema; f) conduz a uma antinomia com normas de hierarquia superior, ou com normas do mesmo texto legal, situações onde não pode haver antinomia (vide a 3ª regra, infra); g) conduz a uma fórmula incompreensível, de inviável aplicação prática [10].”

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