Lucros de controladas e coligadas no exterior segundo a orientação do STF – distribuição automática dos resultados de investidas em paraísos fiscais – inexistência de fundamento legal e de razoabilidade do critério de decidir

por Douglas Guidini Odorizzi
Advogado. Sócio do Dias de Souza Advogados. Mestrando em Direito do Estado (subárea Direito Constitucional) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

 

Após mais de dez anos de espera, o Supremo Tribunal Federal concluiu, na sessão de 10.04.2013, o julgamento da ADI 2.588, que versava sobre a constitucionalidade do art. 74 da MP 2.158-35/01. A norma determina que os lucros das controladas e coligadas no exterior serão considerados disponibilizados às controladoras e coligadas no Brasil tão logo sejam apurados por suas investidas para fins de formação das bases de IRPJ e CSLL das investidoras domiciliadas no País[1].

A decisão adotada por maioria – com eficácia erga omnes e efeito vinculante – foi no sentido de que: “o art. 74 da MP nº 2.158-35/2001 não se aplica às empresas ‘coligadas’ localizadas em países sem tributação favorecida (não ‘paraísos fiscais’), e que o referido dispositivo se aplica às empresas ‘controladas’ localizadas em países de tributação favorecida ou desprovidos de controles societários e fiscais adequados (‘paraísos fiscais’, assim definidos em lei) (…)”[2].

Depreende-se da ata de julgamento que o critério determinante a pautar a solução dada no que diz respeito às controladas foi o local em que domiciliadas. Caso estejam em “paraísos fiscais”, será aplicável a distribuição automática. Diversamente, não será cabível a disponibilização imediata se localizadas em jurisdições de tributação regular (os intitulados “não paraísos fiscais”). A justificativa para assim concluir foi que as controladas em “paraísos fiscais” seriam estruturas concebidas com o objetivo primordial de elisão fiscal, mediante represamento injustificado, sob o ponto de vista econômico, dos ganhos no exterior, tendo como única motivação a redução do IRPJ e da CSLL devidos quando da distribuição. 

Ocorre que, em nossa opinião, o art. 74 da MP 2.158-35/01 não teve por objetivo tributar lucros de investidas em “paraísos fiscais”. A sua finalidade é mais ampla. Justamente por isso a norma não oferece critérios que assegurem sua aplicação de forma restrita às controladas em “paraísos fiscais”, estruturadas como forma de planejamento fiscal, tal como imaginado pela maioria do STF. Disso resulta que o critério de distinção para a tributação foi fixado sem previsão em lei expressa, o que seria imprescindível para que fosse legítima, em vista do princípio da reserva absoluta de lei (CF, art. 150, I), em virtude do qual se exige a descrição de todos os elementos da obrigação tributária (tipicidade).

Ao mesmo tempo, como a solução dada não encerra a discussão sobre a matéria, a prevalecer o entendimento adotado, se verificará a existência de situações concretas às quais não haverá elementos suficientes que permitam concluir pela adoção ou afastamento do art. 74 da MP 2.158-35/01, revelando a falta de razoabilidade para a sua aplicação do modo idealizado. Como resultado, persistirá a litigiosidade sobre a matéria em franca inobservância à segurança jurídica.

É o que se depreende dos fundamentos adiante expostos.

A Exposição de Motivos do art. 73 da MP 2.158-34/01 – que inicialmente introduziu a prescrição em análise e posteriormente foi reenumerada para artigo 74 na edição da MP 2.158-35/01 – não traz qualquer consideração acerca dos “paraísos fiscais” e da adoção de estruturas de planejamentos fiscais como justificativa para a implementação da regra em comento. O texto fundamenta a proposta no art. 43, § 2º, do CTN, segundo o qual a lei deve definir o momento e as condições de disponibilidade da renda oriunda do exterior e a opção por tributar os lucros de controladas e coligadas fora do Brasil quando do levantamento das suas demonstrações financeiras[3].

Da comparação entre o art. 74 da MP 2.158-35/01 e o art. 25 da Lei 9.249/95[4] verifica-se haver coincidência entre suas prescrições no que tange ao momento de disponibilização dos lucros das investidas no exterior. A única diferença entre ambos decorre do fato de a norma mais recente ter sido fundamentada no art. 43, § 2º, do CTN, introduzido pela LC 104/01.

Nessas circunstâncias, a MP 2.158-35/01 resgata os objetivos pretendidos com a sistemática introduzida pela Lei 9.249/95, que pouco após sua entrada em vigor, foi abandonada com as edições da Instrução Normativa SRF 38/96 e da Lei 9.532/97, que estabeleceram critérios distintos para a definição do momento de disponibilização dos lucros de controladas e coligadas no exterior[5]. Dessa observação segue-se a conclusão de que a identificação dos fins visados pelo art. 74 da MP 2.158-35/01 passa também pelo exame das finalidades almejadas pelo art. 25 da Lei 9.249/95.

A norma introduziu a tributação em bases universais para as pessoas jurídicas residentes no Brasil (até então tributadas unicamente sobre as rendas auferidas no território nacional). Este o propósito do art. 25 da Lei 9.249/95[6].

Quando da adoção da universalidade, as autoridades fiscais imaginaram que a tributação dos lucros de controladas e coligadas de forma imediata no Brasil não traria prejuízo aos grupos que mantivessem sociedades operacionais, pois “a empresa tem o direito de compensar o imposto pago, no exterior, sobre seus resultados, até o limite do imposto de renda incidente no Brasil”[7]. Haveria assim mera equivalência de tratamento com aquelas que obtêm suas rendas internamente. Desse modo, a medida afetaria apenas as investidas localizadas em países de tributação reduzida, justamente onde estariam concentradas as sociedades concebidas como forma de evadir a tributação no Brasil.

Da evolução legislativa depreende-se que a tributação automática dos lucros de controladas e coligadas no exterior busca alcançar quaisquer investimentos relevantes no exterior e não apenas aqueles feitos em sociedades localizadas em “paraísos fiscais”. A ênfase dada aos “paraísos fiscais” foi apenas de que as rendas deles originárias passariam a ser integralmente tributadas no Brasil, haja vista a inexistência de créditos passíveis de compensação com os tributos devidos no País. Tal circunstância, no entanto, não significaria que as sociedades em jurisdições diversas – os “não paraísos fiscais” – estariam excluídas do sistema de disponibilização automática.

E assim não foi feito porque as normas não estabeleceram critérios suficientes que permitam identificar quais são e quais não são as jurisdições classificáveis como “paraísos fiscais”, de modo a considerar as investidas transparentes para fins fiscais. De fato, a análise das legislações editadas pelos Estados Unidos, Portugal, Espanha, França e Alemanha, citadas no voto proferido pelo Ministro Nelson Jobim na ADI 2.588, permite verificar que, no direito comparado, a tributação automática dos resultados de investidas no exterior se dá de forma excepcional e em razão da subsunção da situação particularmente avaliada em mais de um elemento, a revelar que se trata de estrutura concebida para impedir a tributação no país da investidora.

As disposições da espécie – conhecidas como Controlled Foreign Coporations (CFC) rules -, diferentemente dos arts. 25 Lei 9.249/95 e 74 da MP 2.158-35/01, não são aplicáveis como regra geral (são exceções) e justamente por essa razão não recaem da mesma forma tanto sobre as controladas e coligadas que sejam operacionais (com atividades econômicas próprias), quanto sobre as inoperantes (concebidas como forma de afastar a incidência fiscal no local de jurisdição da investidora).

As normas brasileiras não contemplam critérios equivalentes aos verificados CFCs rules para distinguir quando se está a tratar de investidas operacionais e de investidas carentes de substrato econômico. A decisão do STF, ao aplicar a distribuição automática em relação às controladas em “paraísos fiscais”, conforme definido em lei, não infirma a conclusão posta.

Com efeito, é de se questionar qual o conceito legal de “paraísos fiscais”. O previsto no art. 24 da Lei 9.430/96 (“Países com Tributação Favorecida”), no art. 24-A do mesmo diploma legal (“Regime Fiscal Privilegiado”) ou o resultante da conjunção de ambos?

O exemplo do Uruguai – debatido na sessão de 10.04.2013 – bem ilustra a insuficiência normativa da conclusão proposta no julgamento do STF. Há uma série de rendas auferidas por sociedades lá sediadas que não são tributadas localmente. Tal fator seria suficiente para qualificá-lo, por lei, como “paraíso fiscal”. No entanto, a Receita Federal reconhece que o Uruguai não se caracteriza como “País com Tributação Favorecida”[8].

No julgamento ocorrido, a Corte Constitucional concluiu que o Uruguai não seria “paraíso fiscal” por não estar arrolado como tal na lista divulgada pela Receita Federal – IN RFB 1.037/10[9]. Significa dizer que a disponibilização automática terá aplicação sempre que a jurisdição de localização da controlada for definida como “paraíso fiscal” unilateralmente pelo Fisco mesmo que em nosso sistema a exigência tributos seja regida pela reserva absoluta de lei?

Disso resulta que a diferenciação pretendida não se mostra razoável, pois fará com que países, por estabelecerem regras prevendo a não tributação de espécies de rendas de parte das sociedades neles instaladas, possam ser consideradas jurisdições que não contemplem cargas tributárias eficazes. Isso, todavia, não é verdade. Em vários deles, o rigor na calibração da tributação é similar aos de outros sistemas, como o nosso. São nesse sentido as legislações da Dinamarca, Reino Unido, Nova Zelândia, Reino dos Países Baixos (Holanda), dentre outros.

Bem se vê que, invariavelmente, a aplicação do art. 74 da MP 2.158-35/01 da forma idealizada pelo STF leva à sua inconstitucionalidade por inobservância da razoabilidade (necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito). Configura-se medida desproporcional por sujeitar de forma igual à distribuição automática os lucros de controladas existentes (operacionais) e inexistentes (estratagemas), sejam elas efetivamente localizadas em jurisdições de tributação favorecida ou não[10].

Portanto, diante da inexistência de restrição no art. 74 da MP 2.158-35/01 para que sua prescrição seja aplicada unicamente às controladas localizadas em “paraísos fiscais” e da inviabilidade de assim se pretender fazer, face à ausência de critérios legais que possibilitem distinguir as estruturas lícitas das ilícitas, espera-se que o Tribunal reveja seu posicionamento e julgue a constitucionalidade da norma em exame face aos conceitos de aquisição e disponibilidade da renda extraídos da Constituição Federal e da legislação complementar.

Bibliografia

SCHOUERI, Luis Eduardo (“Tributação Internacional das Empresas Nacionais e Desenvolvimento: Novos rumos?”. In: SANTI, Eurico Diniz de. Tributação e Desenvolvimento Homenagem ao Professor Aires Barreto. São Paulo: Quartier Latin, 2011.

ROCHA, Sérgio André. Obra conjunta com Victor Uckmar, Giuseppe Corasaniti, Paolo de’ Capitani di Vimercate, Caterina Corrado Oliva (aspectos gerais) e Marco Aurélio Greco (sistema brasileiro). Manual de Direito Tributário Internacional. São Paulo: Dialética, 2012.



[1] “Art. 74. Para fim de determinação da base de cálculo do imposto de renda e da CSLL, nos termos do art. 25 da Lei no 9.249, de 26 de dezembro de 1995, e do art. 21 desta Medida Provisória, os lucros auferidos por controlada ou coligada no exterior serão considerados disponibilizados para a controladora ou coligada no Brasil na data do balanço no qual tiverem sido apurados, na forma do regulamento”.

[2] Ata de julgamento disponível nas movimentações processuais da ADI 2.588 constante da página eletrônica do STF.

[3] Não há espaço para tratar de discussões teóricas sobre a prevalência da “mens legislatoris” ou da “mens legis”. Embora seja assente o entendimento de que o texto legal deva prevalecer sobre a intenção do legislador, não se pode deixar de reconhecer a importância dos trabalhos preparatórios para a apreensão do correto sentido da norma, dentre várias alternativas possíveis, como bem observado no seguinte trecho do voto proferido pelo Ministro Sepúlveda Pertence, nos autos do RE 134.509-8/AM (STF – Pleno – DJ: 13/09/2002): “(…) na experiência jurídica moderna, não se chega ao extremo de negar a utilidade, nem de dar demasiada importância aos trabalhos preparatórios. A doutrina reconhece o seu valor na medida em que as ideias enunciadas transparecem da vontade objetivada do texto, vale dizer, do quadro das significações verbais possíveis da regra interpretada (…)”.

[4] “Art. 25. Os lucros, rendimentos e ganhos de capital auferidos no exterior serão computados na determinação do lucro real das pessoas jurídicas correspondente ao balanço levantado em 31 de dezembro de cada ano”.

[5] Embora a Instrução Normativa – ato infralegal – não seja o instrumento competente para a mudança de aspectos definidores da obrigação tributária, devido à exigência constitucional de reserva absoluta de lei para tal fim, verifica-se que as suas disposições acerca do momento de disponibilização dos resultados de controladas e coligadas são inconfundíveis com as disposições constantes da Lei 9.249/95. 

[6] Consta da Exposição de Motivos do Projeto de Lei que resultou na sua edição que: “13. As regras para a tributação dos rendimentos auferidos fora do País constam dos arts. 24 a 27. O Projeto alcança unicamente os lucros, permitindo a compensação do imposto de renda que sobre eles houver incidido no exterior (…)”.

[7] Tributação da Renda no Brasil Pós-Real. Ministério da Fazenda. Brasília: Dupligráfica, 2001, p. 87.

[8] “REMESSAS AO EXTERIOR. URUGUAI. JUROS. O Uruguai não está relacionado entre os países de tributação favorecida, para fins de aplicação do IRRF sobre rendimentos a título de juros de domiciliado no exterior” (Consulta 136/02, 9ª RF. No mesmo sentido, Consulta 85/01, da 10ª RF).

[9] A despeito de as regras aplicáveis às SAFIs constituídas até 31.12.2010 formarem conjunto considerado regime fiscal privilegiado (art. 2º, II).

[10] No mesmo sentido são as opiniões de SCHOUERI, Luis Eduardo (“Tributação Internacional das Empresas Nacionais e Desenvolvimento: Novos rumos?”. In: SANTI, Eurico Diniz de. Tributação e Desenvolvimento Homenagem ao Professor Aires Barreto. São Paulo: Quartier Latin, 2011, pp. 467-486) e ROCHA, Sérgio André. Obra conjunta com Victor Uckmar, Giuseppe Corasaniti, Paolo de’ Capitani di Vimercate, Caterina Corrado Oliva (aspectos gerais) e Marco Aurélio Greco (sistema brasileiro). Manual de Direito Tributário Internacional. São Paulo: Dialética, 2012, pp. 396-397. 

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