Notas Sobre Aspectos Polêmicos do Denominado “Refis IV”

por Luiz Gustavo A. S. Bichara
Sócio do Escritório Bichara, Barata, Costa & Rocha Advogados
Diretor da Associação Brasileira de Direito Financeiro – ABDF, Presidente da Comissão da Justiça Federal da OAB-RJ e Vice-Presidente da Comissão Especial de Assuntos Tributários da OAB-RJ

por Rafael Capaz Goulart
Advogado do Escritório Bichara, Barata, Costa & Rocha Advogados
Membro da Comissão da Justiça Federal da OAB-RJ e membro da Comissão Especial de Assuntos Tributários da OAB-RJ

 

Com a promulgação da Lei nº 11.941/2009, foram instituídos diversos regimes fiscais beneficiados que possibilitaram o pagamento, à vista ou parceladamente (em até 180 prestações mensais), de débitos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB) e/ou pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN).

 Como amplamente noticiado, relativamente ao Programa de Parcelamento previsto pelo referido diploma (“REFIS IV”), o mesmo fora criado para se desenvolver em etapas, que podem ser resumidas em: (i) adesão ao parcelamento, com a eleição das respectivas modalidades (Portaria Conjunta PGFN/RFB nº 6/2009); (ii) manifestação do sujeito passivo sobre a inclusão da totalidade dos débitos nas modalidades de parcelamento (Portaria Conjunta PGFN/RFB nº 3/2010); (iii) informações sobre os débitos que iriam compor o montante a ser parcelado (Portaria Conjunta PGFN/RFB nº 11/2010); e (iv) consolidação da dívida que será objeto de parcelamento (Portaria Conjunta PGFN/RFB nº 2/2011).

 A esse respeito, cumpre relembrar que, após a adesão ao Programa de Parcelamento em referência, cabia ao sujeito passivo o pagamento das “parcelas mínimas” previstas nos arts. 3º e 9º da Portaria nº 6/2009, até o momento da consolidação da dívida, ocasião em que será apurado o montante efetivamente devido.

 Apesar dos incontestáveis benefícios trazidos pelo “REFIS IV”, que foram muito bem vindos em razão do momento de crise econômica mundial e da elevada carga tributária nacional, em termos práticos, sua legislação de regência, também editada de maneira “parcelada”, criou situações tormentosas aos sujeitos passivos, as quais certamente contrariam a intenção do legislador ordinário ao conceder tais benesses.

 É tão visível quanto lamentável o descompasso de intenções verificado no caso concreto: enquanto o legislador concede o benefício, os responsáveis por sua execução (publicamente contrários à política fiscal de instituição de parcelamentos), inescondivelmente buscam cerceá-lo através da edição de normas complementares que, na prática, inviabilizam o parcelamento.

 Dentre as inúmeras incongruências que cercam o tema, podemos destacar: (i) a redução do prazo para pagamento da dívida na hipótese de débitos anteriormente parcelados; (ii) a ilegalidade dos critérios de apuração do prejuízo fiscal e base negativa da CSLL previstos nas Portarias Conjuntas PGFN/RFB; e (iii) os efeitos da confissão da dívida em relação aos sujeitos passivos que supostamente integram os denominados “Grupos Econômicos”.

Redução do prazo para quitação da dívida no caso de débitos anteriormente parcelados

Inicialmente, merece destaque a redução efetiva do prazo para pagamento da dívida, que decorre do pagamento da “parcela mínima” prevista pela Portaria Conjunta PGFN/RFB nº 6/2009, na hipótese de débitos anteriormente parcelados (REFIS, PAES, PAEX e parcelamentos ordinários).

Conforme o disposto no art. 9º da Portaria Conjunta PGFN/RFB nº 6/2009, em tais hipóteses, a prestação mínima corresponderia: (i) no caso do Programa Refis, ao montante de 85% (oitenta e cinco por cento) da média das prestações devidas entre 12/2007 e 11/2008; e (ii) em relação aos demais parcelamentos, ao valor de 85% (oitenta e cinco por cento) da prestação devida no mês de 11/2008.

Ocorre que, em termos concretos, dependendo do saldo da dívida a parcelar, depois de descontados os valores antecipados a título de “parcela mínima”, bem como aqueles decorrentes de redução da multa, dos juros e da utilização do prejuízo fiscal e base de cálculo negativa da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) permitidos pela Lei nº 11.941/09, é possível que os débitos fiscais tenham sido integralmente quitados pelo sujeito passivo antes mesmo da consolidação do parcelamento, fato que acarreta incontestável redução do prazo para pagamento da dívida, que, em tese, deveria ser de até 180 (cento e oitenta) meses.

Se não bastasse a incoerência, caso o sujeito passivo deixe de recolher a “parcela mínima” antes da efetiva consolidação, em razão da quitação do débito com os benefícios previstos na Lei nº 11.941/09, existe o risco de o mesmo ser excluído do Programa de Parcelamento, com a consequente recomposição de sua dívida, causando, assim, o restabelecimento do status quo ante.

Por outras palavras, de acordo com os critérios estabelecidos pela legislação de regência, existe a inaceitável, absurda e ilegal possibilidade de o sujeito passivo permanecer pagando prestações mensais na forma do no art. 9º da Portaria Conjunta PGFN/RFB nº 6/2009, mesmo depois de extinto o crédito tributário, apenas para evitar sua exclusão do parcelamento.

Critérios de apuração do prejuízo fiscal e base negativa da CSLL

Outro ponto que merece destaque refere-se aos limites de prejuízo fiscal e base negativa da CSLL a serem utilizados pelos sujeitos passivos para quitação de sua dívida.

Como mencionado anteriormente, a Portaria Conjunta PGFN/RFB nº 02/2011 dispõe sobre os procedimentos a serem observados pelos contribuintes para a consolidação dos débitos nas modalidades de pagamento (com utilização de créditos decorrentes de prejuízo fiscal ou de base de cálculo negativa da CSLL) e de parcelamento de que trata a Lei nº 11.941/2009.

No que tange aos procedimentos prévios à consolidação da dívida objeto de pagamento à vista ou de parcelamento, o art. 4º da Portaria Conjunta PGFN/RFB nº 02/2011[1] previu a utilização de créditos decorrentes de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa da CSLL, limitando-a a períodos de apuração encerrados até 27/05/2009, data anterior ao dia da publicação da Lei nº 11.941/09.

Em outros termos, a utilização abrangerá o prejuízo fiscal e base de cálculo negativa do período de apuração encerrado até 27/05/2009, ou seja, apenas de 01/01/2008 a 31/12/2008 para os contribuintes sujeitos à apuração anual ou 1º trimestre/2009, para aqueles que se submetem ao regime de apuração trimestral.

Na realidade, tal norma já constava do art. 27 da Portaria Conjunta PGFN/RFB nº 06/2009. Entretanto, em nosso sentir, tais disposições são absolutamente ilegais, eis que não encontram respaldo na Lei nº 11.941/09, diploma esse que não prevê qualquer limitação a esse título.

Justamente por esse motivo, não cabe falar na limitação temporal (períodos de apuração encerrados até 27/05/2009) pretendida pelas Portarias Conjuntas PGFN/RFB nºs 06/2009 e 02/2011, no que toca à utilização do prejuízo fiscal e da base de cálculo negativa de CSLL, para aproveitamento dos benefícios fiscais concedidos pela Lei nº 11.941/09.

Nada obstante, é pertinente alertar para o fato de que a ilegalidade da limitação temporal estabelecida pelas aludidas Portarias Conjuntas PGFN/RFB não viabiliza a inobservância dos critérios previstos no art. 1º, §§ 7º e 8º, da Lei nº 11.941/09, no que diz respeito aos montantes de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa da CSLL a serem aproveitados. [2]

Efeitos da confissão da dívida – supostos “Grupos Econômicos”

Por último, mas não menos importante, cabe abordar a controvérsia que gira em torno dos efeitos da confissão da dívida que será objeto de parcelamento, em relação aos sujeitos passivos que supostamente integram os denominados “Grupos Econômicos”.

A propósito, o art. 5º da Lei nº 11.941/09[3] prevê a “confissão irrevogável e irretratável dos débitos em nome do sujeito passivo na condição de contribuinte ou responsável e por ele indicados para compor os referidos parcelamentos.

Diante desse cenário, qual seria o tratamento a ser dispensado em relação aos sujeitos passivos supostamente integrantes de “Grupos Econômicos”?

A esse respeito, como destacado acima, para que haja confissão irrevogável e irretratável da dívida, a Lei nº 11.941/09 exige que o sujeito passivo indique débitos em seu nome para compor o parcelamento por ele formalizado.

Em decorrência, parece óbvia a conclusão segundo a qual a preclusão decorrente da confissão irrevogável e irretratável da dívida se opera somente em face do sujeito passivo que incluiu o débito fiscal no Programa de Parcelamento, não sendo viável a extensão dos respectivos efeitos aos demais sujeitos passivos que supostamente integram “Grupos Econômicos”.

Isso porque, entendimento em sentido diverso possibilitaria a aplicação dos efeitos da confissão a sujeitos passivos que sequer aderiram ao “REFIS IV”, o  que indiscutivelmente não foi a intenção do legislador ordinário.

Além disso, na hipótese de descumprimento do parcelamento pelo “devedor” que efetivamente confessou a dívida, o crédito tributário se tornará imediatamente exigível também em relação aos demais sujeitos passivos, não havendo, a princípio, possibilidade de defesa.

Ressalta-se que o fato de a exigibilidade do crédito tributário estar suspensa, na forma do art. 151, VI, do Código Tributário Nacional (CTN), é uma condição do próprio débito fiscal, que tem aplicabilidade a todos os “devedores”, o que não se confunde com a preclusão decorrente da confissão da dívida, que se opera somente em face daquele que incluiu o débito fiscal no Programa de Parcelamento.

Adotando a premissa de que as Empresas comporiam Grupo Econômico para fins tributários, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região, por ocasião do julgamento do Agravo de Instrumento nº 2010.02.01.011423-4,  manifestou-se no sentido de que: (a) se o fato gerador do tributo foi praticado por uma Empresa e esta confessou a dívida, essa confissão é valida para todas as demais consideradas responsáveis solidárias, por pertencerem ao mesmo grupo econômico; e (b) a adesão de uma Empresa ao programa de parcelamento, ainda que posteriormente seja rescindido, implica o reconhecimento expresso da dívida, de modo que as responsáveis solidárias não podem questioná-la.[4]

Contudo, parece-nos, pelas razões acima expostas, que esse posicionamento não reflete o melhor entendimento sobre a matéria, especialmente porque se afasta das normas que regem o Programa de Parcelamento em referência. De qualquer modo, é relevante mencionar que o tema ainda não foi apreciado pelos Tribunais Superiores.

Em suma, as divergências sobre a interpretação das normas que regem ao Programa de Parcelamento instituído pela Lei nº 11.941/09 são fruto da impossibilidade de atribuir-se à lei a tarefa de esgotar todos os pontos que envolvem o assunto, o que é agravado pela sede arrecadatória da Administração Fazendária Federal, não restando alternativa aos sujeitos passivos senão socorrerem-se do Poder Judiciário para garantia de seus direitos.



[1]Art. 4º – Antes de iniciar a consolidação das modalidades de parcelamento ou de pagamento à vista com utilização de créditos decorrentes de Prejuízo Fiscal e de Base de Cálculo Negativa da CSLL, o sujeito passivo deverá prestar as seguintes informações, observado o disposto no § 2º do art 1º:

I – indicar, separadamente, a totalidade dos montantes disponíveis de Prejuízo Fiscal e de Base de Cálculo Negativa da CSLL de que tratam o § 3º e o inciso I do § 4º do art. 27 da Portaria Conjunta PGFN/RFB nº 6, de 2009, referentes a períodos de apuração encerrados até 27 de maio de 2009, que pretenda utilizar nas modalidades a serem consolidadas;” (…) – (grifamos)

[2] “Art. 1º   (…)

§ 7º –  As empresas que optarem pelo pagamento ou parcelamento dos débitos nos termos deste artigo poderão liquidar os valores correspondentes a multa, de mora ou de ofício, e a juros moratórios, inclusive as relativas a débitos inscritos em dívida ativa, com a utilização de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa da contribuição social sobre o lucro líquido próprios.

§ 8º –  Na hipótese do § 7º deste artigo, o valor a ser utilizado será determinado mediante a aplicação sobre o montante do prejuízo fiscal e da base de cálculo negativa das alíquotas de 25% (vinte e cinco por cento) e 9% (nove por cento), respectivamente.” 

[3] “Art. 5º –  A opção pelos parcelamentos de que trata esta Lei importa confissão irrevogável e irretratável dos débitos em nome do sujeito passivo na condição de contribuinte ou responsável e por ele indicados para compor os referidos parcelamentos, configura confissão extrajudicial nos termos dos arts. 348, 353 e 354 da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil, e condiciona o sujeito passivo à aceitação plena e irretratável de todas as condições estabelecidas nesta Lei.”

[4] AG 2010.02.01.011423-4, Desembargador Federal Luiz Antonio Soares, TRF2 – Quarta Turma Especializada, 16/11/2010.

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