A irretroatividade do art. 3º da lei complementar nº 118/2005: comentários sobre a decisão do STF no re 566.621
porFlavio Eduardo Carvalho
Curioso ver como o princípio da segurança jurídica pode ser utilizado para suportar múltiplas interpretações e ser distorcido a fim de servir como panacéia argumentativa a justificar posições jurídicas conflitantes.
Ao apreciar o RE 566.621, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou inconstitucional o art. 4º da Lei Complementar (LC) 118/2005, norma que permite a aplicação retroativa do art. 3º da mesma lei, o qual fincou o termo inicial do prazo quinquenal para o pedido de devolução de tributos pagos indevidamente no momento do adimplemento. Segundo a interpretação do STF, o art. 3º aplica-se a todas as ações ajuizadas após 9 de junho de 2005 (data em que a norma passou a vigorar), independentemente da data do indébito.
A primeira impressão é a de que o STF protegeu os contribuintes da retroatividade do art. 3º da LC, prestigiando o princípio da segurança jurídica, fundamento que se repete em muitos dos votos que julgaram inconstitucional o art. 4º. No entanto, outra é a conclusão quando o julgado é analisado tendo como pano de fundo o histórico que envolve a questão.
O presente texto busca estimular o debate acerca de questões jurídicas surgidas no referido julgado, relevantes não só pela importância da matéria para os profissionais que atuam na seara tributária, mas também por demonstrar as complexidades que a aplicação da sistemática da Repercussão Geral ainda geram em nosso sistema jurídico.
Do equívoco do STF acerca da natureza da norma do art. 3º da LC 118/05. Há sim direito adquirido que deve ser respeitado
A norma do art. 3º da LC 118/05, cuja natureza de “lei nova” foi reconhecida pelo próprio STF, introduz no sistema do direito positivo brasileiro regra de direito material atinente ao fato extinção do crédito tributário. É dizer, com a vigência do art. 3º da LC nº 118/05[1], o único fato capaz de produzir efeitos jurídicos para contagem do prazo prescricional qüinqüenal que o contribuinte dispõe para pleitear a restituição de tributos recolhidos pelo autolançamento é a extinção do crédito tributário, não havendo, a partir de então, qualquer relevância para a incidência da norma prescricional o fato homologação do lançamento previsto no art. 150, § 4º, do CTN.
Entendendo-se como lei nova a norma que versa sobre o evento extinção do crédito tributário (art. 3º da LC 118/05), consectário lógico é que somente poderá alcançar os fatos jurídicos ocorridos posteriormente à sua vigência, em respeito aos contribuintes que tiveram integrado ao seu patrimônio material[2] o direito a repetir aquilo que pagaram indevidamente (nesse sentido foi o voto dos Ministros Celso de Mello e Luiz Fux).
Como dito, o art. 3º da LC 118/2005 modificou o fato jurídico da extinção do crédito tributário, alterando-o para o pagamento, razão pela qual, uma vez compreendido o seu caráter como sendo “lei nova” (e não meramente interpretativa), a conclusão do STF não poderia ter sido outra senão a de que os seus efeitos somente poderiam alcançar créditos tributários, cuja extinção (e, por consequência, caracterização do indébito) ocorresse posteriormente à sua entrada em vigor, a saber, 08/06/2005.
Todavia, embora essa conclusão lógica decorra da própria definição do art. 3º como norma nova e da integral declaração de inconstitucionalidade do art. 4º, o que deveria impedir qualquer forma de retroatividade do art. 3º, tem-se que o julgado seguiu outros rumos, inclusive em nítida falta de sintonia com a própria jurisprudência do próprio STF citada pela Ministra Ellen Gracie, voto vencedor do julgado.
Segundo a Ministra, o prazo prescricional faz parte do regime jurídico tributário, sendo assente na jurisprudência do STF a inexistência de direito adquirido a regime jurídico. Embora correta a assertiva em face dos precedentes da Corte, ela não serve para solucionar a questão em apreço. Isso fica claro com a simples leitura dos dois precedentes citados em seu voto com a finalidade de validar a tese de que a alteração de prazos para se pleitear a restituição de indébitos tributários não ofenderia direito adquirido, pois, verifica-se que ambos os julgados[3] analisaram situações que envolviam pretensão do contribuinte em ver aplicada lei passada a fatos futuros, situação totalmente diversa da que envolve a inconstitucionalidade da aplicação aos fatos passados (retroação) do art. 3º da LC 118/05.
O STF, no julgamento do RE 566.621, em franca dissintonia com sua jurisprudência[4], colocou em situações díspares contribuintes que se encontram na mesma situação diante do fato indébitos tributários ocorridos antes da entrada em vigor da LC 118/2005, na medida em que: (i) para os que recolheram indevidamente tributos antes da entrada em vigor da LC 118/05 (até 08/06/2005), considera-se como a data de extinção do crédito tributário a homologação expressa ou tácita, do lançamento, desde que tenham ingressado em juízo até 09/06/2005; (ii) para aqueles que recolheram indevidamente tributos antes da entrada em vigor da LC 118/05, considera-se como a data de extinção do crédito tributário data do pagamento antecipado, independentemente da sua homologação pelo Fisco.
Esse entendimento ofende diretamente o princípio da isonomia, previsto no art. 5º, caput e art. 150, II, ambos da Constituição Federal, bem como o princípio da irretroatividade e do direito adquirido. Afinal, não se pretende a garantia de aplicação da regra decenal para fatos ocorrido após a vigência da LC 118/05, mas apenas que se proteja a confiança legítima dos contribuintes no direito que se encontrava vigente quando da ocorrência dos indébitos, plasmado na norma interpretada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) durante anos. Ou seja, não se trata de aplicação da interpretação anterior para fatos futuros, mas sim para fatos pretéritos (ocorrência dos indébitos), momento em que se perfectibilizou o direito à restituição em 10 anos.
Da não aplicação do RE 566.621 in abstracto pelos demais tribunais. Devem ser consideradas as particularidades de cada caso concreto tendo em vista a inexistência de quórum para aplicação da tese em repercussão geral
O STJ, após anos de debates, garantiu aos contribuintes que, nos indébitos de tributos sujeitos ao autolançamento, ao prazo de 5 anos para pleitear sua devolução somar-se-iam mais 5 que a fiscalização dispõe para a homologação expressa ou tácita (“tese dos 5+5”).
Com a edição da LC 118/05, o STJ novamente analisou a matéria, pontuando com firmeza que não é meramente interpretativa uma norma que não admite uma das interpretações possíveis das regras do CTN, máxime quando impede justamente a que havia sido consagrada pelo Tribunal. Assim, em respeito aos princípios da segurança jurídica e da separação dos poderes, a LC não poderia retroagir[5].
A preocupação do STJ em resguardar os pagamentos indevidos ocorridos antes da vigência do art. 3º da LC 118/05 fez valer o princípio da segurança jurídica (direito adquirido) em favor dos contribuintes. Tal segurança, contudo, parece ter sido abalada pelo julgamento do RE 566.621, pelo E. STF, ao considerar que apenas os contribuintes que ajuizaram ações até a data da vigência da LC n. 118/05 não seriam afetados, ignorando a data do pagamento indevido como termo inicial do prazo prescricional.
Em muitas passagens dos votos dos 6 Ministros do STF que rejeitaram o pedido da União de aplicação retroativa da norma do art. 3º da LC 118/2005, nota-se que o fundamento jurídico utilizado foi justamente o princípio da segurança jurídica, sendo que a interpretação que foi conferida aos efeitos retroativos conflita, em parte, com o que restou pacificado, à unanimidade, por 18 Ministros da Corte Especial do STJ (composta pelos integrantes mais antigos do Tribunal), também baseados no mesmo princípio.
Tal conflito fica evidente quando se verifica que os 10 votos proferidos no âmbito do STF não possuem fundamentações concordantes, visto que não houve maioria em quaisquer dos entendimentos apresentados pelos Ministros[6]. Só houve maioria de entendimentos quanto à inconstitucionalidade do art. 4º da LC 118/05, visto que 6 ministros concordaram que a norma do art. 3º não é meramente interpretativa, razão pela qual não pode retroagir.
Ocorre que, se o STF declarou a inconstitucionalidade do art. 4º, não poderia ter sido autorizada qualquer eficácia retroativa do art. 3º, tendo ou não sido ajuizada demanda no judiciário. Entretanto, e aí reside outra perplexidade do julgamento, na medida em que se autorizou que os indébitos tributários ocorridos antes da vigência da nova norma (fatos passados) e não submetidos ao Judiciário fossem atingidos por ela, permitiu-se, de certo modo, a retroação dos efeitos do art. 3º, o que, por óbvio, significa que o art. 4º continua produzindo efeitos, embora declarada sua total inconstitucionalidade.
O argumento não é meramente técnico, tendo evidente importância prática, principalmente por envolver precedente julgado sob a sistemática da Repercussão Geral, instituto que serve para a pacificação das demandas e racionalização da prestação jurisdicional, garantindo que situações idênticas não tenham soluções jurídicas diversas, bem como que o Poder Judiciário não fique anos julgando litígios que já tiveram pronunciamento definitivo da Corte Constitucional. Entretanto, é certo que tal instituto tem sua aplicação limitada aos contornos fáticos e jurídicos do caso concreto apreciado.
Nessa medida, tem-se que, ante todas essas questões que remanescem pendentes após o julgamento do RE 566.621[7], deve o precedente limitar-se a seguinte situação analisada pelo STF: recolhimento de tributos indevidamente e ajuizamento da ação de repetição antes da LC n. 118/2005. E, nesse contexto, decidiu-se: é inconstitucional o art. 4º da LC 118/05, pois a norma do art. 3º inovou no ordenamento jurídico, não podendo atingir uma demanda ajuizada antes da sua vigência.
Entretanto, para as hipóteses fáticas que não se enquadrem no caso julgado (i.e., ações ajuizadas após a vigência da lei para restituição dos 10 últimos anos e pedidos administrativos de restituição/compensação), o precedente não pode ser aplicado pelos Tribunais indistintamente. Afinal, como não houve quórum para a aplicação genérica do precedente, aos Tribunais é mandatória nova apreciação do tema.
[1]Os 6 votos vencedores no julgamento do RE 566.621 foram taxativos em asseverarem que o art. 3º consubstancia norma nova, daí porque não se seria constitucional sua aplicação retroativa.
[2]Segundo R. Limongi França, na sua clássica obra sobre a matéria, direito adquirido é “a conseqüência de uma lei, por via direta ou por intermédio de fato idôneo; conseqüência que, tendo passado a integrar o patrimônio material ou moral do sujeito, não se fez valer antes da vigência de lei nova sobre o mesmo objeto.” (A Irretroatividade da Lei e o Direito Adquirido, RT, 4ª Edição, p. 231)
Tal lição doutrinária parece ter sido inteiramente acolhida pelo nosso ordenamento jurídico, como dá conta o art. 6º, §2º, da LICC: “consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por êle, possa exercer”.
[3]Isso é facilmente constatado no voto do Ministro Joaquim Barbosa, quando do julgamento do RMS 26.932, em que se examinava o direito adquirido das entidades beneficentes à manutenção de sua isenção sem o cumprimento das exigências legais que instituíram a necessidade de obtenção da Certificação de Entidades Beneficentes de Assistência Social (CEBAS). Na situação apreciada, a Província Brasileira da Congregação da Missão – PBCM buscava ver reconhecido seu direito adquirido à imunidade prevista no art. 150, VI, c, da Constituição Federal tão-somente pelo fato de que em algum momento esse direito lhe havia sido concedido, o que não foi acolhido pelo STF.
Do voto do Ministro Joaquim Barbosa, no RMS 26.932, extraem-se os fundamentos do seu entendimento, que, ao contrário do que considerou a Ministra Ellen Gracie, aplicam-se em tudo a questão da impossibilidade completa de retroatividade dos efeitos do art. 3º da LC n. 118/05:
Nos termos das regras e princípios que regem a vigência e a eficácia das normas jurídicas no sistema constitucional tributário brasileiro, uma norma incide quando há a subsunção de todos os critérios pertinentes de um fato à respectiva hipótese de incidência. Diz-se, então, que o fato se torna jurídico, isto é, passa a ter eficácia jurídica.
É a partir do fenômeno da incidência que o sujeito competente irá extrair a norma individual e concreta, destinada a especificar em termos precisamente identificados de tempo e espaço o conteúdo da relação jurídica que deverá ser observada pelos sujeitos ativo e passivo.
Normalmente, a norma jurídica apenas pode incidir quando houver simetria entre todos os seus critérios e os respectivos análogos do fato jurídico e ela for vigente. Isso ocorre independentemente do momento em que a norma é aplicada, pois é possível conceber que uma norma não mais vigente continue a ser aplicada pelos órgãos competentes, se s e referir a fatos contemporâneos a seu tempo.
(…)
Nos termos da regra constitucional de proteção do direito adquirido, normas jurídicas individuais e concretas que tenham sido constituídas regularmente sob a égide de sistema jurídico de referência pretérito, e as relações jurídicas delas aferentes, tendem a resistir a modificação por normas posteriores e que tenham como objetivo influir em tais situações consolidadas.
(…)
De fato, assumir que o cumprimento das condições vigentes e válidas em dado período valeriam para todo e qualquer período superveniente levaria à perenização e imutabilidade de regime jurídico aplicável a jurisdicionados selecionados. (grifos no original)
O outro precedente citado no voto da Ministra Ellen Gracie foi o RE 219.878, em que a 1ª Turma do STF, seguindo voto do Ministro Sepúlveda Pertence, considerou que não ofende o direito adquirido norma que altera a data de pagamento de tributo cujo fato gerador ocorreu antes da nova norma, mas o pagamento foi posterior.
[4]No emblemático julgamento da ADI 3.105, em que se discutia a constitucionalidade da contribuição dos inativos, o STF foi enfático em negar o direito adquirido à regime jurídico, aplicando, contudo, a nova norma (EC 41/2003) apenas aos fatos geradores futuros, em nítida proteção da segurança jurídica.
[5]De acordo com a Corte Especial do SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (AI nos ERESP 644736/PE, Relator Ministro Teori Albino Zavascki, julgado em 06.06.2007), é inconstitucional tal retroação, sendo que o novo prazo só se aplica para situações jurídicas ocorridas após a vigência da Lei Complementar. Posteriormente, o mesmo SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, ao julgar na sistemática de Recursos Repetitivos o REsp 1.002.932, decidiu e confirmou que a LC 118/05 repercute apenas para os tributos pagos em sua vigência, ou seja, a partir de 2005, de modo que os valores pagos anteriormente ainda se submetem à “tese dos 5 + 5”, o que é favorável aos contribuintes e à segurança jurídica. No mesmo acórdão, o C. STJ confirmou que a regra dos “5+5” vale para todos os valores pagos antes da vigência da LC 118/05, tanto para aqueles que já tinham processo em curso antes de tal vigência quanto aqueles sem questionamento judicial após publicação da nova lei.
[6]O quórum de votação pode ser assim resumido quanto à aplicação do art. 3º:
1) A redução do prazo prescricional somente se aplica para as ações judiciais ingressadas após 08/06/2005, que é o fim do prazo da vacatio legis da LC 118, não importando a data do fato gerador (Ministros: Ellen Gracie; Ricardo Lewandowski; Ayres Britto; Cezar Peluso);
2) A redução do prazo se aplica retroativamente, inclusive às demandas em curso (Ministros: Marco Aurélio; Dias Toffoli; Carmén Lúcia; Gilmar Mendes);
3) A redução dos prazos somente atingiria os fatos geradores ocorridos após sua vigência em 08/06/2005 (Ministro Celso de Mello e Luiz Fux).
Destaque-se trecho manifestação do Min. Luiz Fux, quando do julgamento do RE 566.621, quanto à necessidade de os próprios Ministros do STF debaterem expressamente a questão da eficácia do art. 3º. Disse S. Exa.: “Eu apenas sugeriria, com essa corrente majoritária já formada, que houvesse um ajuste nesse termo a quo.”
[7]Oque não foi objeto de recurso da partes envolvidas na demanda, pois ambas consideraram que o julgado atendia aos seus interesses. Isso não significa que houve a pacificação de todas as demandas sociais sobre o tema, o que, inclusive, restou demonstrado em petições apresentadas nos autos do RE 566.621 por terceiros interessados.