O Supremo Tribunal Federal decide a responsabilidade dos sócios por dívidas tributárias
por Ciro César Soriano de Oliveira
Advogado em São Paulo, sócio de Soriano & Woiler Advogados.
Formado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP,
MBA em Economia de Empresas pela FIPE-FEA /USP.
Associado ao Instituto brasileiro de Direito Tributário – IBDT
Membro da Associação Fiscal Internacional.
Membro do Internacional Bar Association (IBA).
por Mariana de Souza Ramos
Assistente jurídica na área tributária no escritório Soriano & Woiler Advogados.
Formada em Direito na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP.
Decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), proferida em outubro de 2011 direcionou a interpretação das disposições concernentes à responsabilidade tributária, disciplinadas no artigo 135 do Código Tributário Nacional (CTN), ou ao menos a forma adjetiva para que seja aferida a sua aplicação. Tal entendimento, a propósito, vem na linha do que já propugnava o STF, no sentido de não se admitir aplicação larga e irrestrita da responsabilização dos sócios, como se percebe no julgado em sede de repercussão geral nos autos do RE 562276/PR.
De acordo com o preceito do CTN, os diretores, gerentes ou representantes das pessoas jurídicas de Direito privado são pessoalmente responsáveis pelos créditos tributários resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social e estatutos.
No julgamento de outubro de 2011, proferido nos autos do RE 608.426/PR, restou consignado que os princípios do contraditório e da ampla defesa aplicam-se plenamente à constituição do crédito tributário em favor de qualquer sujeito passivo.
Obviamente, não pode a empresa ser isoladamente responsabilizada por atos cometidos através da subversão das atribuições que foram outorgadas a determinado representante, sendo plenamente justificável a norma estatuída no artigo 135 do CTN. O mesmo ocorre com aquele que age além dos limites estatutários e legais, justificando a responsabilização atribuída. No entanto, o ato deflagrador da responsabilidade tributária é decorrente de dolo, fraude ou excesso de poderes, aspectos que exigem prova contundente de sua ocorrência nos autos do processo tributário. A prova deve ser produzida de maneira a atender o estabelecido no artigo 5º, inciso LV da Constituição Federal, que assegura aos litigantes, em processo judicial ou administrativo e aos acusados em geral, o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos inerentes a esta.
Fundamental, portanto, a ampla oportunidade para produzir provas, requerer, defender e contrapor ao longo de todo o processo administrativo e judicial.
A fundamentação do STF trouxe alívio aos que atuam na seara tributária, uma vez que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, órgão responsável pela interpretação da lei federal, tem se firmado de maneira distinta acerca da matéria.
Nas circunstâncias normais de mercado, e agindo dentro dos limites estabelecidos por lei e estatutos, não deve o sócio ser responsabilizado por dívidas tributárias, tema que inclusive é objeto de súmula do Superior Tribunal de Justiça[1].
Assim, é abusiva a tentativa da Fazenda Pública de redirecionar a execução fiscal para os sócios quando não se comprova a existência de atos irregulares, mas tão somente o inadimplemento de obrigação tributária.
Entretanto, com a dissolução irregular da pessoa jurídica, a mesma Corte Especial tem admitido o redirecionamento da execução fiscal para os sócios e gerentes. Nesta hipótese, o ônus da prova é invertido, ou seja, havendo dissolução irregular, não é exigido da Fazenda Pública prova da prática de atos com excesso de poderes ou infração à lei ou estatutos[2]. O sócio é quem deverá provar que não agiu com dolo, culpa, fraude ou excesso de poderes. Ou seja, é exigida prova negativa, rechaçada pelo ordenamento jurídico brasileiro, ante a dificuldade de ser produzida.
É plenamente possível à Fazenda Pública comprovar que um dos atos foi efetuado, mas impossível ao contribuinte comprovar que não foram, sendo indubitável que a “negativa non sunt probanda”[3]. A presunção de veracidade que milita quase sempre em favor do Fisco, deveria resguardar o interesse público; todavia está ocasionando distorções inadmissíveis no Estado Democrático de Direito.
Nos termos do artigo 37 da Constituição Federal, a Administração Pública deve atender ao princípio da legalidade, que determina a obrigatoriedade desta fazer somente o que a lei autoriza, já que os diplomas normativos são elaborados por representantes da vontade da coletividade, democraticamente eleitos.
Neste contexto, as prerrogativas da Fazenda Pública que extrapolam a defesa dos direitos da coletividade, não atendem ao princípio da legalidade. São, na verdade, subversão da função para a qual o Estado foi constituído.
Assim, impor ao contribuinte prova cuja demonstração é um martírio ou se que demonstra praticamente impossível, não atende ao interesse da coletividade (interesse primário da Fazenda Pública). Pelo contrário, as reiteradas investidas por parte do Fisco, se não impedidas pela atuação do Poder Judiciário, revelará relação de vassalagem, na medida em que o interesse perseguido seja unicamente o arrecadatório (interesse secundário), a custo da supressão de direitos e garantias fundamentais do sujeito passivo.
Na mesma situação encontram-se os sócios cujos nomes constam na Certidão de Dívida Ativa (CDA), já que o STJ julgou em sede de recurso repetitivo que ainda que a execução tenha sido ajuizada apenas contra a pessoa jurídica, incumbe ao sócio o ônus da prova de que não ficou caracterizada nenhuma das circunstâncias previstas no artigo 135 do CTN, ou seja, a ausência da prática de atos com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos [4].
A presunção de legitimidade da CDA, entretanto, não persiste se considerarmos que o artigo 135 do CTN exige dolo ou culpa, que obviamente devem ser provados. Assim, o entendimento de que a exceção de pré executividade não se adequa à apuração da responsabilidade dos sócios somente tem justificativa dentro de um contexto em que já no âmbito administrativo tenha se dado ao contribuinte a oportunidade de se defender de forma ampla, inequívoca e desembaraçada.
Desse modo, a superestimação das presunções que militam em favor da Fazenda Pública revela-se uma erística schopenhauriana – construção do raciocínio por intermédio de circunstâncias fortuitas e psicológicas que se destinam a vencer determinado debate –, já que ao cobrar o tributo dos sócios e gerentes, a Fazenda Pública se apropria apenas das circunstâncias de seu interesse, sem buscar a verdade efetiva, mas sim a tentativa de comprovação a qualquer custo de sua “razão”, que esmaga as garantias do contribuinte em prol dos interesses arrecadatórios.
Pode haver situações em que, de fato, por ocorrência de dissolução irregular, os sócios e a sociedade não tenham sido encontrados. Não vai daí, entretanto, que de ato ultra vires por parte dos sócios decorra, necessariamente, o ato ou fato (anterior à dissolução irregular) que tenha dado ensejo à obrigação tributária; como poderá haver obrigação tributária nascida de atos praticados com excesso de poderes, ainda que não tenha havido a dissolução irregular, ao contrário, no curso contínuo das atividades da empresa.
Por isso a importância do contraponto assegurado pela manifestação da Corte Suprema – que enseja até mesmo a revisão da Súmula 435 do STJ, ou a sua aplicação cum granu salis, caso a caso –, com força no sistema constitucional e processual vigentes, que visa assegurar o princípio do contraditório e da ampla defesa, já que propicia participação do contribuinte no processo e resguarda garantia fundamental, que é interesse maior da coletividade.
Por óbvio que a participação do contribuinte fica prejudicada nos casos em que não foi encontrado, mas ainda para tais casos, há de se ter evidente a diligência do Fisco, por todos os meios – ou no mínimo nos termos da legislação processual vigente –, em encontrar o devedor, sem que do desencontro decorra, necessária e automaticamente, a extensão da responsabilidade por ato ou fato anterior.
Neste sentido, a aproximação da verdade não seria apenas o apurado pelo órgão público, acatado sem contraponto pelo órgão julgador, mas exige processo dialético, tomado em seu sentido mais genérico, de confronto de argumentos e ideias. Se a aproximação da verdade exige argumentação dialética, no âmbito do processo civil é no contraditório e na ampla defesa que estas se efetivam.
Acertada, portanto, a decisão do Supremo Tribunal Federal, assegurando que, para a atribuição da responsabilidade tributária, o sujeito passivo tenha oportunidade de defender-se de maneira inequívoca e desimpedida.
Por fim, a discussão não se encerra, mas se inicia por outros campos, agora com a decisão do STF. Haverá de se considerar, por exemplo, as discussões que dela decorrem quanto à aplicação do princípio da verdade material no processo administrativo tributário (que é sempre processo administrativo), bem como aquelas relativas ao empréstimo de provas entre processo civil e penal (no âmbito tributário), dado que, como também já decidiu o STF[5], não se tipifica crime contra a ordem tributária antes do lançamento definitivo (do que não decorre, necessariamente, que com o fim deste o delito fique tipificado). Essas questões, entretanto, poderão ser abordadas oportunamente.
Bibliografia
- RE 608426 AgR, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, julgado em 04/10/2011, DJe-204 divulgação 21-10-2011 Publicação 24-10-2011 Ementa Vol-02613-02 PP-00356).
- RE 562276, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Tribunal Pleno, julgado em 03/11/2010, Repercussão Geral – mérito dje-027 divulg 09-02-2011 public 10-02-2011 ement vol-02461-02 pp-00419 RDDT n. 187, 2011, p. 186-193 rt v. 100, n. 907, 2011, p. 428-442.
- SCHOPENHAUER (2000), Arthur. A Arte de Ter Razão: exposta em 38 estratagemas. São Paulo, Martins Fontes.
- CHAUÍ, Marilena (1995). Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática.
- MELLO, Celso Antônio Bandeira (2011). Curso de Direito Administrativo. 28ª ed. São Paulo. Editora Malheiros.
- COELHO, Fábio Ulhoa (2008). Manual de Direito Comercial. 21ª edição. São Paulo. Editora Saraiva.
[1] STJ, Súmula 430: “O inadimplemento da obrigação tributária pela sociedade não gera, por si só, a responsabilidade solidária do sócio-gerente”.
[2] STJ, Súmula 435: “Presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente”.
[3] A expressão evidencia que os fatos negativos não devem ser provados, compatibilizando a interpretação do sistema jurídico com o artigo 333, parágrafo único do Código de Processo Civil, que dispõe ser nula a convenção que dispõe de maneira diversa o ônus da prova quando este tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito.
[4]STJ – Recurso Especial nº. 1.110.925 /SP.
[5] Súmula vinculante 24.