A modulação temporal dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade em matéria de direito fiscal e a escassez de novas teses tributárias
por Barbara C. Prado
Pós-Graduada em Direito Fiscal pela PUC-RJ
Advogada da Petrobras Distribuidora
bprado@br-petrobras.com.br/ barbaraprado@oi.com.br
I – INTRODUÇÃO
Com o advento da Lei n 9.868, de 10 de novembro de 1999[1], o ordenamento jurídico pátrio passou a prever expressamente a possibilidade de modulação temporal dos efeitos de decisão declaratória de inconstitucionalidade, proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da ação prevista pelo art. 102, I, a, da Constituição da República.
Procuraremos, então, nas linhas seguintes, traçar o histórico da positivação dessa técnica em nosso ordenamento, apontando o contexto de sua inserção, para que assim seja possível analisar em que medida a utilização indiscriminada da modulação temporal pelo STF pode prejudicar a elaboração de novas teses jurídicas tributárias.
II – MODULAÇÃO DE EFEITOS – CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE A TÉCNICA
A inconstitucionalidade de uma norma é vício aferido no plano da validade.[2] Com efeito, toda norma inconstitucional é inválida e a conseqüência atribuída a essa invalidade, por nosso ordenamento, é a nulidade de pleno direito.
Nesse sentido, em regra, verificando-se determinada lei incompatível com o ordenamento constitucional, sua inconstitucionalidade deve ser declarada e todas as relações jurídicas advindas de sua aplicação deverão voltar ao status quo ante.
Podemos então afirmar que, em regra, a decisão que declara a inconstitucionalidade de uma norma possui efeitos ex tunc, fato que exclui referida norma do ordenamento desde o momento de seu ingresso no mundo jurídico.
Pondera Luís Roberto Barroso [3]que a tese da nulidade da norma inconstitucional prevalece em quase todos os países que adotam o modelo de controle judicial de constitucionalidade[4], a exceção da Áustria que, por adotar a teoria positivista de Kelsen[5], concebe a lei inconstitucional como anulável, possuindo a decisão que reconhece dito vício efeito meramente prospectivo (ex nunc).
Segundo o Autor, inclusive, embora a nulidade constitua a regra das Constituições de Portugal, Espanha, Alemanha e Itália, de alguma forma tais países admitem, seja expressa ou tacitamente, excepcioná-la.[6]
Cumpre-nos informar que, por duas vezes, sem êxito, tentou-se inserir no atual texto constitucional uma norma que conferisse ao STF o poder de determinar a retroação da decisão declaratória da inconstitucionalidade. A primeira tentativa deu-se com proposta apresentada na Assembléia Constituinte ; a segunda, em 1994, durante o processo de revisão constitucional.[7]
Todavia, somente em 1999, o art. 27, da Lei 9.868, veio temperar o princípio da nulidade, em nome de valores da justiça e da segurança jurídica, deixando a cargo de nossa Suprema Corte Constitucional a incumbência de modular os efeitos de determinada decisão. [8]
Apesar de essa inovação não ter sido veiculada por meio de norma constitucional[9], mas sim por lei ordinária, é fato que veio satisfazer aos anseios de parte da doutrina constitucionalista que clamava pela edição de medida que previsse a possibilidade de, em casos excepcionais, estabelecer-se limites à eficácia de declaração de inconstitucionalidade, tal como o Professor Zeno Veloso.[10]
Outrossim, insta esclarecer que a jurisprudência da Suprema Corte, antes da edição da lei 9.868/1999, já havia, em alguns casos concretos, limitado temporalmente os efeitos de suas decisões.[11]
III – OS EFEITOS DA DECISÃO DECLARATÓRIA DE INCONSTITUCIONALIDADE NA SEARA FISCAL
Pois bem, na seara do Direito Fiscal, consideremos: a decisão declaratória de inconstitucionalidade da lei de incidência possui o condão de, em regra, obrigar a Administração a devolver os valores cobrados a título de tributos, que foram pagos indevidamente pelos contribuintes.
Caso, todavia, o STF[12] entenda que o julgamento da norma envolve excepcional interesse social, ou mesmo venha comprometer a segurança jurídica, ao declarar a inconstitucionalidade da norma de incidência, poderá, desde que o faça por maioria de dois terços de seus membros, atribuir efeitos prospectivos a tal decisão, impedindo, assim, a repetição dos valores recolhidos indevidamente.
Portanto, no momento em que o STF confere efeitos prospectivos à decisão que declara a inconstitucionalidade de uma norma, em última análise, são convalidadas as relações jurídico-tributárias inconstitucionais por determinado período, legitimando tudo o que foi recolhido aos cofres públicos indevidamente.
Segundo o STF, a atribuição de efeitos prospectivos decorre da ponderação entre o princípio da nulidade (que não se impõe de forma absoluta) e o os demais princípios constitucionais. No julgamento do RE 197.917/SP, inclusive, o Ministro Gilmar Mendes chega a afirmar que a modulação é fruto de “processo de complexa ponderação”, descartando qualquer sorte de discricionariedade.
Todavia, entendemos que a decisão de atribuição de efeitos prospectivos na seara fiscal possui, acima de tudo, caráter político, atendo-se o STF à análise do prejuízo do Estado, frente à necessidade de atendimento das políticas públicas mais fundamentais.
V – A TÉCNICA DA MODULAÇÃO DE EFEITOS PARA O FUTURO E A QUESTÃO DO EMBOBRECIMENTO DAS TESES JURÍDICAS
Partindo, então, da premissa de que a modulação temporal também possui natureza de decisão política (a despeito do entendimento do STF em sentido contrário), infere-se que a mesma não se coaduna com a análise de teses jurídicas, vez que, na verdade, nessas hipóteses, a tomada da decisão não parte de uma fundamentação para uma conclusão, mas sim da própria decisão para sua justificação.
Diante dessa situação, temos que admitir ser possível a ocorrência de certo desestímulo para elaboração de teses jurídicas. Afinal, por mais brilhantes que sejam, o que está em jogo é apenas o risco que o dever de restituição pode ocasionar às finanças públicas do Estado.
Sobre a questão, elucida-nos, Ricardo Lodi[13], no sentido de que “(…) não tendo o Estado capitalista recursos próprios, nem adicionais disponíveis para devolução do tributo a todos os seus contribuintes, deverá optar entre duas alternativas sombrias: ou estabelece a moratória no atendimento das prestações públicas essenciais para população, o que acaba sempre prejudicando mais os extratos de subsistência que dependem das ações estatais para subsistência, ou busca novas receitas na criação ou majoração da mesma ou de outras exações, o que torna inócua a devolução.”
Portanto, se a medida se mostra inevitável, desde que sua aplicação se dê “com todos os temperamentos e contrafortes possíveis e imagináveis e para situações absolutamente excepcionais (…)”.[14],entendemos que a simples introdução da técnica da modulação para o futuro não é capaz de , por si só, desestimular a criação de novas teses jurídicas tributárias.
Por outro lado, o empobrecimento das teses jurídicas tributárias é realidade anterior à edição da Lei 9.868/99 e, ao nosso sentir, também ocorre como resposta ao excessivo apego ao princípio da estrita legalidade, pela doutrina tributarista brasileira, que simplesmente despreza o princípio da capacidade contributiva que constitui expressão do princípio da igualdade e, em última análise, limita do poder de tributar.
Todavia, há que se ressaltar: a aplicação da medida da modulação temporal pressupõe que a mesma possa ser aplicada, inclusive, em prol do jurisdicionado, desde que estejam sendo sacrificados princípios constitucionais.
Desta forma, embora a lei autorize apenas a modulação temporal para o futuro nos julgamentos de ações declaratórias de inconstitucionalidade,[15] considerando que a jurisprudência de nossa Suprema Corte também admite a utilização da técnica no sistema difuso, defendemos, em nome dos princípios da isonomia e da confiança legítima do contribuinte, seja admitida a modulação para o futuro também nos julgamentos em que a declaração da constitucionalidade da lei de incidência possa de alguma forma prejudicar o contribuinte de boa-fé.[16]
Do contrário, o empobrecimento das teses jurídicas certamente acontecerá… E antes disso, algo muito pior já terá ocorrido: além do estímulo à inconstitucionalidade, ficará constatado que o Direito, que deveria servir para transformar, não passa de mero instrumento de conformação.
[1] Lei que dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal.
[2] Como sabido, o gênero atos jurídicos (que incluem as espécies atos legislativos) são analisados sob os planos da existência, da validade e da eficácia.
[3] BARROSO, Luís Roberto. Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 2ª Ed. – São Paulo: Saraiva, 2006, pg. 17.
[4] O controle de constitucionalidade pode ser político ou judicial. Embora no Brasil o controle das normas seja eminentemente judicial, ele também é realizado politicamente por meio do veto ou da rejeição de determinado Projeto de Lei pela Comissão de Constituição e Justiça do Legislativo.
[5] Para Kelsen, uma lei é válida até que decisão de Corte Constitucional venha dizer em sentido contrário. Nesse sentido, a decisão constitutiva negativa produzirá efeitos tão logo emitida, não podendo alcançar as relações jurídicas anteriormente disciplinadas pela lei tida por inconstitucional.
[6] BARROSO, Luís Roberto. Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro, pp.17.
[7] BARROSO, Luís Roberto. Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro, pp.23.
[8] Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
[9] Muito embora na Constituição não haja qualquer dispositivo que regule a eficácia temporal que deve ser atribuída às decisões do STF em controle concentrado.
[10] Apud in BARROSO, Luís Roberto (O Controle de Constitucionalidade …, cit., p.25).
[11] A título de exemplo, confira-se: (RE 78.533/SP e (RE 122.202/MG).
[12] Insta salientar que embora o art. 27, da Lei 9.868, permita que a modulação se dê no julgamento de Ação Declaratória de Inconstitucionalidade, há decisões que modulam efeitos também nos processos subjetivos (por ex., RE 197.917/SP e 559.943/RJ). O Ministro Gilmar Ferreira Mendes, inclusive, no voto-vista relativo ao julgamento do RE 197.917, manifestou-se, de forma expressa, favoravelmente a essa possibilidade, alegando que o modelo difuso se mostra compatível com a doutrina de limitação de efeitos.
[13] (RIBEIRO, Ricardo Lodi. A Segurança Jurídica do Contribuinte. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 254).
[14]Conforme já preceituava o Ministro Sepúlveda Pertence, muito antes da edição da Lei nº 9.868/1999, no voto de julgamento da ADI nº 1102, de 17/11/1995.
[15] Bem como de ações de descumprimento de preceitos fundamentais (art. 11, da Lei nº 9.882/1999
[16] ´No julgamento da constitucionalidade de lei que revogou a isenção da COFINS para as sociedades civis, o STF, por maioria, rejeitou o pedido de modulação de efeitos da decisão, prejudicando inúmeros contribuintes de boa-fé (RE 377.457.