Medida Provisória n.º 563/12 e O Princípio do Não Favoritismo (Arm’s Length) Marcela de Mello Pedreiro
por Marcela de Mello Pedreiro
sócia (in pectore) de AMARAL GURGEL Advogados, da área Financeira, Bancária, Mercado de Capitais e M&A.
A Medida Provisória n.º 563 de 03 de abril de 2012 (“MP 563/12) buliu em determinadas regras sobre Preço de Transferência ou Transfer Pricing.
Resumidamente, entende-se por preço de transferência o valor cobrado na venda ou transferência de bens, serviços ou propriedade intangível a empresa a ela relacionada residente ou domiciliada no exterior. Essa vinculação[1] engloba a participação direta ou indireta no controle, no capital ou na administração, bem como relacionamento comercial exclusivo (representações ou agenciamento), bem como pessoas ou entidades vinculadas sediadas em países com tributação favorecida[2] (os ditos paraísos fiscais).
As regras de preço de transferência tentam evitar a prática abusiva de transferência de recursos para o exterior, a partir da manipulação dos preços nas importações ou exportações de bens, serviços ou direitos (intangíveis) com pessoas vinculadas, residentes ou domiciliadas no exterior. Sumariamente, nestas operações, os custos, despesas e encargos relativos a tais operações serão dedutíveis desde que não excedam os preços determinados pelos métodos previstos na legislação corrente, impactando diretamente o recolhimento de Imposto de Renda e Contribuição Social Sobre Lucro Líquido daquelas entidades.
No nosso entendimento, apesar da nomenclatura similar à utilizada nos métodos previstos na Convenção Modelo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, que trata da matéria, a diferença à essência e principalmente ao respeito ao princípio do não favoritismo (“Arm’s Length”) é significativa.
A matéria é regulada no Brasil pelo Decreto-Lei n.º 1.598, de 26 de dezembro de 1977 (“DL 1598/77”), Decreto-Lei n.º 2.065, de 26 de outubro de 1983 (“DL 2065/83”), Lei Ordinária n.º 9.430, de 27 de dezembro de 1996 (“Lei 9430/96”) e, atualmente pela MP 563/12.
Apesar do texto da MP 563/12 trazer melhorias quanto à definição dos métodos utilizados para o cálculo da margem de lucro utilizada para cômputo do imposto nas importações de insumos utilizados na industrialização de produtos farmacêuticos, fumo, instrumentos óticos e fotográficos, máquinas e aparelhos hospitalares, inclusive odontológicos, bens para a extração de petróleo e gás ou fabricação de derivados do petróleo, dentre outros, o engessamento das margens estabelecidas pela legislação brasileira ou dos critérios continua o mesmo.
A maioria das empresas de grande porte aplica o método de cálculo do preço de transferência chamado de Preço de Revenda menos Lucro – PRL. As empresas pelo método da comparação devem aplicar a média aritmética dos preços de revenda dos bens ou dos direitos, pactuados com os compradores não vinculados, deduzindo-se os descontos incondicionalmente concedidos, além de impostos e contribuições incidentes sobre vendas, comissões e corretagens pagas e margem de lucro de 20% sobre o preço do produto, margem essa calculada sobre o preço de revenda.
Para bens importados aplicados na produção no Brasil, a margem de lucro aplicada era de 60%. Por conta da edição da MP 563/12 a margem aplicável passa a ser única nas duas situações acima descritas.
Em geral, esse percentual passa a ser de 20%. Porém, excepcionalmente 40% para os setores de:
- fabricação de produtos farmoquímicos e farmacêuticos;
- fabricação de produtos do fumo;
- fabricação de equipamentos e instrumentos ópticos, fotográficos e cinematográficos;
- comércio de máquinas, aparelhos e equipamentos para uso odonto-médico-hospitalar;
- extração de petróleo e gás natural; e
- fabricação de produtos derivados do petróleo.
E de 30% para os setores de:
- fabricação de produtos químicos;
- fabricação de vidros e de produtos do vidro;
- fabricação de celulose, papel e produtos de papel; e
- metalurgia.
Ou seja, o imposto aplicável nessas operações tende a ser menor, pois quanto maior a margem, maior o imposto.
Na hipótese em que a pessoa jurídica desenvolva atividades enquadradas em mais de um inciso acima mencionado, deverá ser adotada para fins de cálculo do PRL a margem correspondente ao setor da atividade para o qual o bem importado tenha sido destinado. Sendo que, na hipótese de um mesmo bem importado ser revendido e aplicado na produção de um ou mais produtos, ou na hipótese de o bem importado ser submetido a diferentes processos produtivos no Brasil, o preço parâmetro final será a média ponderada dos valores encontrados mediante a aplicação do método PRL, de acordo com suas respectivas destinações. Confuso não?
O intuito da edição desta MP, segundo fontes da Secretaria da Receita Federal do Brasil, era o de modernizar as regras de preço de transferência do país e diminuir as disputas judiciais sobre o cálculo do preço de transferência, uma vez que a legislação anterior estava defasada quanto à fixação de tais margens por setor de forma clara e expressa.
Nos termos do artigo 39 da MP 563/12, que altera o artigo 20 da Lei 9430/96, “ O Ministro de Estado da Fazenda poderá, em circunstâncias justificadas, alterar, de ofício, os percentuais de margem de lucro.” Entendemos que pelo princípio da legalidade, essas margens poderiam apenas ser alteradas por lei. Notadamente, o Princípio do Não Favoritismo não é observado no ordenamento brasileiro.
A referida MP cria também o Método do Preço sob Cotação na Importação – PCI, na hipótese de importação de commodities sujeitas à cotação em bolsas de mercadorias e futuros internacionalmente reconhecidas e o Método do Preço sob Cotação na Exportação – PECEX na hipótese de exportação de commodities sujeitas à cotação em bolsas de mercadorias e futuros internacionalmente reconhecidas, conforme os parâmetros estabelecidos na própria MP, ambos ainda sujeitos à normatização inferior quanto à sua aplicação.
Com relação aos juros pagos ou creditados a pessoa vinculada, juros esses relativos a contratos de mútuo, somente serão dedutíveis para fins de determinação do lucro real até o montante que não exceda ao valor calculado com base na taxa London Interbank Offered Rate – LIBOR, para depósitos em dólares dos Estados Unidos da América pelo prazo de seis meses, acrescida de margem percentual a título de spread, a ser definida anualmente por ato do Ministro de Estado da Fazenda com base na média de mercado, proporcionalizados em função do período a que se referirem os juros. Anteriormente, o spread utilizado era fixo e de 3% ao ano. Notadamente, novamente o princípio do Arm’s Length tão consagrado nas regras da OCDE sobre Preço de Transferência não é consagrado na legislação brasileira, uma vez que os juros a serem utilizados no cômputo do preço de transferência deveria ser o praticado à época do surgimento do débito entre partes relacionadas em circunstâncias similares, tendo em vista os valores e vencimentos, moedas envolvidas, riscos no mercado do mutuante e/ou mutuário (pode ser levado em consideração apenas o mercado do mutuante ou do mutuário).
Cabe lembrar que não há previsão legislativa ainda sobre os preços de transferência de ativos intangíveis (royalties, assistência técnica, científica e administrativa). Essa lacuna é relevante principalmente por conta do crescimento do mercado do luxo no Brasil e, pode sim impactar negativamente o desenvolvimento deste mercado por conta da insegurança jurídica neste aspecto.
Bibliografia
- Decreto-Lei n.º 1.598, de 26 de dezembro de 1977.
- Decreto-Lei n.º 2.065, de 26 de outubro de 1983.
- Lei Ordinária n.º 9.430, de 27 de dezembro de 1996.
- Medida Provisória n.º 563, de 03 de abril de 2012.
- BARRETO, Paulo Ayres, in “Imposto sobre a Renda e Preços de Transferência,” São Paulo, Dialética, 2001.
- OLIVEIRA, Ricardo Mariz de, in “Fundamentos do Imposto de Renda,” São Paulo, Quartier Latin, verão de 2008, p. 790-804 e p. 834-856.
- SCHOUERI, Luís Eduardo, in “Preços de Transferência no Direito Tributário Brasileiro,” São Paulo, Dialética, 2006.
[1] De acordo com o artigo 23 da Lei 9430/96 “será considerada pessoa vinculada à pessoa jurídica domiciliada no Brasil: I – a matriz desta, quando domiciliada no exterior; II – a sua filial ou sucursal, domiciliada no exterior; III – a pessoa física ou jurídica, residente ou domiciliada no exterior, cuja participação societária no seu capital social a caracterize como sua controladora ou coligada, na forma definida nos parágrafos 1º e 2º do artigo 243 da Lei n.º 6.404, de 15 de dezembro de 1976; IV – a pessoa jurídica domiciliada no exterior que seja caracterizada como sua controlada ou coligada, na forma definida nos §§ 1º e 2º do art. 243 da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976; V- a pessoa jurídica domiciliada no exterior, quando esta e a empresa domiciliada no Brasil estiverem sob controle societário ou administrativo comum ou quando pelo menos dez por cento do capital social de cada uma pertencer a uma mesma pessoa física ou jurídica; VI – a pessoa física ou jurídica, residente ou domiciliada no exterior, que, em conjunto com a pessoa jurídica domiciliada no Brasil, tiver participação societária no capital social de uma terceira pessoa jurídica, cuja soma as caracterizem como controladoras ou coligadas desta, na forma definida nos §§ 1º e 2º do art. 243 da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976; VII – a pessoa física ou jurídica, residente ou domiciliada no exterior, que seja sua associada, na forma de consórcio ou condomínio, conforme definido na legislação brasileira, em qualquer empreendimento; VIII – a pessoa física residente no exterior que for parente ou afim até o terceiro grau, cônjuge ou companheiro de qualquer de seus diretores ou de seu sócio ou acionista controlador em participação direta ou indireta; IX – a pessoa física ou jurídica, residente ou domiciliada no exterior, que goze de exclusividade, como seu agente, distribuidor ou concessionário, para a compra e venda de bens, serviços ou direitos; X – a pessoa física ou jurídica, residente ou domiciliada no exterior, em relação à qual a pessoa jurídica domiciliada no Brasil goze de exclusividade, como agente, distribuidora ou concessionária, para a compra e venda de bens, serviços ou direitos.”
[2] De acordo com o artigo 24 da Lei 9430/96, “as disposições relativas a preços, custos e taxas de juros, constantes dos artigos 18 a 22, aplicam-se, também, às operações efetuadas por pessoa física ou jurídica residente ou domiciliada no Brasil, com qualquer pessoa física ou jurídica, ainda que não vinculada, residente ou domiciliada em país que não tribute a renda ou que a tribute a alíquota máxima inferior a vinte por cento. § 1º Para efeito do disposto na parte final deste artigo, será considerada a legislação tributária do referido país, aplicável às pessoas físicas ou às pessoas jurídicas, conforme a natureza do ente com o qual houver sido praticada a operação. § 2º No caso de pessoa física residente no Brasil: I – o valor apurado segundo os métodos de que trata o art. 18 será considerado como custo de aquisição para efeito de apuração de ganho de capital na alienação do bem ou direito; II – o preço relativo ao bem ou direito alienado, para efeito de apuração de ganho de capital, será o apurado de conformidade com o disposto no art. 19; III – será considerado como rendimento tributável o preço dos serviços prestados apurado de conformidade com o disposto no art. 19; IV – serão considerados como rendimento tributável os juros determinados de conformidade com o art. 22. § 3º Para os fins do disposto neste artigo, considerar-se-á separadamente a tributação do trabalho e do capital, bem como as dependências do país de residência ou domicílio. § 4o Considera-se também país ou dependência com tributação favorecida aquele cuja legislação não permita o acesso a informações relativas à composição societária de pessoas jurídicas, à sua titularidade ou à identificação do beneficiário efetivo de rendimentos atribuídos a não residentes.” Ainda, de acordo com o Artigo 24-A: “Aplicam-se às operações realizadas em regime fiscal privilegiado as disposições relativas a preços, custos e taxas de juros constantes dos artigos 18 a 22 desta Lei, nas transações entre pessoas físicas ou jurídicas residentes e domiciliadas no País com qualquer pessoa física ou jurídica, ainda que não vinculada, residente ou domiciliada no exterior.” Parágrafo único. Para os efeitos deste artigo, considera-se regime fiscal privilegiado aquele que apresentar uma ou mais das seguintes características: I – não tribute a renda ou a tribute à alíquota máxima inferior a 20% (vinte por cento); II – conceda vantagem de natureza fiscal a pessoa física ou jurídica não residente: (a) sem exigência de realização de atividade econômica substantiva no país ou dependência; (b) condicionada ao não exercício de atividade econômica substantiva no país ou dependência; III – não tribute, ou o faça em alíquota máxima inferior a 20% (vinte por cento), os rendimentos auferidos fora de seu território; IV – não permita o acesso a informações relativas à composição societária, titularidade de bens ou direitos ou às operações econômicas realizadas. De acordo com o artigo 24-B da mesma lei, “O Poder Executivo poderá reduzir ou restabelecer os percentuais de que tratam o caput do art. 24 e os incisos I e III do parágrafo único do art. 24-A, ambos desta Lei. Parágrafo único. O uso da faculdade prevista no caput deste artigo poderá também ser aplicado, de forma excepcional e restrita, a países que componham blocos econômicos dos quais o País participe.”