A Necessidade da Expressa Renúncia de Ação Judicial para Adesão ao Parcelamento da Lei nº. 11.941/09
por Bruno Baruel Rocha
Graduado em Direito pela Universidade Paulista (Unip). Especialista em Direito Tributário pela PUC-SP. Pós-graduado em Estratégias Societárias, Sucessórias e Tributação pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-Gvlaw). Sócio do escritório Souza, Schneider, Pugliese e Sztokfisz Advogados.
por Júlio César Soares
Graduado em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Pós-Graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Advogado do escritório Souza, Schneider, Pugliese e Sztokfisz Advogados.
A Lei nº 11.941/2009, publicada 28/05/2009, instituiu benefícios para a quitação de débitos relativos a tributos e contribuições federais, permitindo o parcelamento de tais débitos em até 15 anos (180 meses), com redução de juros e multa de mora. O programa ficou conhecido como “REFIS da Crise”
O artigo 5º da mencionada lei estabelece que “A opção pelos parcelamentos de que trata esta Lei importa confissão irrevogável e irretratável dos débitos em nome do sujeito passivo na condição de contribuinte ou responsável” acrescentando ainda que a adesão aos termos da lei configura “confissão extrajudicial nos termos dos arts. 348, 353 e 354” do CPC[1].
Já em seu artigo 6º, a Lei nº. 11.941/2009 assentou que “O sujeito passivo que possuir ação judicial em curso, na qual requer o restabelecimento de sua opção ou a sua reinclusão em outros parcelamentos, deverá, como condição para valer-se das prerrogativas dos arts. 1º, 2º e 3º desta Lei, desistir da respectiva ação judicial e renunciar a qualquer alegação de direito sobre a qual se funda a referida ação, protocolando requerimento de extinção do processo com resolução do mérito, nos termos do inciso V do caput do art. 269” do CPC.
Perceba-se que a Lei nº. 11.941/2009 não estabeleceu como condição para a adesão aos benefícios fiscais por ela instituídos a desistência de eventual ação judicial na qual se discuta a constitucionalidade ou a legalidade de determinado tributo, ou a incorreção de determinada alíquota ou base de cálculo. A obrigatoriedade de desistência se refere apenas a ações judiciais nas quais o Contribuinte busque a inclusão ou reinclusão em parcelamentos anteriores.
Portanto, na prática, o contribuinte poderia incluir determinado tributo no parcelamento e, ao mesmo tempo, prosseguir em eventual discussão judicial que ao final lhe reconhecesse um crédito contra o Fisco[2]. Assim sendo, não há imposição legal à desistência nem tampouco à renúncia ao direito objeto de demandas judiciais para fins de adesão no parcelamento da Lei nº. 11.941/2009.
No entanto, ao regulamentar a referida lei, o Governo Federal editou a Portaria Conjunta PFN/RFB nº. 06/2009, afirmando em seu artigo 13 que “Para aproveitar as condições de que trata esta Portaria, em relação aos débitos que se encontram com exigibilidade suspensa, o sujeito passivo deverá desistir, expressamente e de forma irrevogável, da impugnação ou do recurso administrativos ou da ação judicial proposta e, cumulativamente, renunciar a quaisquer alegações de direito sobre as quais se fundam os processos administrativos e as ações judiciais, até 30 (trinta) dias após o prazo final previsto para efetuar o pagamento à vista ou opção pelos parcelamentos de débitos de que trata esta Portaria.(Redação dada pela Portaria PGFN/RFB nº 11, de 11 de novembro de 2009)”.
A nosso ver, a Portaria Conjunta PGFN/RFB nº 06/2009, ao exigir que o optante pelo parcelamento do REFIS da Crise desista de ação judicial e renuncie sobre o direito ali discutido, acabou por extrapolar o comando inserto no artigo 5º da Lei nº. 11.941/09, cuja exegese não autoriza amplitude maior do previsto no dispositivo legal, até porque na ação judicial o contribuinte busca o reconhecimento da ilegitimidade da tributação, pretensão diversa da estabelecida no art. 6º, caput desta Lei, que determina a desistência de ações que buscam a inclusão em outro parcelamento.
A Fazenda Nacional argumenta que a disposição contida no artigo 13 da Portaria nº. 06/2009 é decorrência lógica do artigo 5º da Lei nº. 11.941/2009, pois a confissão irrevogável e irretratável dos débitos inseridos no parcelamento ocasionaria o esvaziamento automático da demanda judicial, sendo imperiosa a extinção da ação com julgamento de mérito favorável à Fazenda Nacional.
Afirma ainda que a adesão a parcelamento não representa um é direito subjetivo, mas sim benefício fiscal cujo cumprimento deve fiel observância à lei, não podendo o Contribuinte alterar as regras estipuladas para os fins de possibilitar a sua inserção no Programa. Havendo o reconhecimento do débito por parte do Contribuinte e o conseqüente esvaziamento da ação judicial correlata ao débito, não haveria que se falar, no entender fazendário, em ilegalidade da Portaria nº. 06/2009 quanto à exigência de desistência ou renúncia de ação judicial.
Ora, tais argumentos não encontram amparo em nosso ordenamento jurídico.
Inicialmente é importante salientar que, conforme é sabido, portarias são normas infralegais em cujo campo material se busca apenas dar efetividade à lei. As portarias têm aplicação, portanto, apenas no campo da execução da lei estabelecida, não podendo inovar no mundo jurídico. A Constituição Federal é clara ao definir o campo material de atuação dos atos infralegais, determinando que tais normas, além de não poderem inovar a ordem jurídica – exclusividade das normas primárias –, também devem buscar a “fiel execução da lei”[3].
Essa impossibilidade das portarias resultarem em inovação jurídica encontra amparo no Princípio da Legalidade, introduzido em nossa Ordem Constitucional pelo art. 5º, II, da Constituição Federal de 1988, segundo o qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
Na lição do Professor Paulo de Barros Carvalho, “O princípio da legalidade é limite objetivo que se presta, ao mesmo tempo, para oferecer segurança jurídica aos cidadãos, na certeza de que não serão compelidos a praticar ações diversas daquelas prescritas por representantes legislativos, e para assegurar observância ao primado constitucional da tripartição de poderes. (…) Se do consequente da regra advier a obrigação de dar, fazer ou não fazer alguma coisa, sua construção reivindicará a seleção de enunciados colhidos apenas a tão-somente no plano legal”[4].
Por tais razões é que se afirma que a Portaria nº. 06/2009 está em confronto com a Lei nº. 11.941/2009 e não tem o condão de gerar obrigação, no sentido de ser devida a desistência ou renúncia expressa do direito em que se funda ação judicial na qual se discuta débito inserido no REFIS da Crise, para que a adesão surta todos os efeitos legalmente previstos.
No mais, importante salientar que a exigência contida na Portaria nº. 06/2009 encontra óbice também no artigo 5º, XXXV, da Carta Magna. O texto constitucional determina que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, sedimentando no ordenamento pátrio o Princípio da Inafastabilidade da Jurisdição. Nos termos da melhor doutrina, “Tem-se aqui, pois, de forma clara e inequívoca, a consagração da tutela judicial efetiva, que garante a proteção judicial contra lesão ou ameaça a direito”[5]
Ora, a tutela judicial efetiva pressupõe que o Contribuinte tenha o direito de que seu processo de desenvolva de maneira que reste assegurada a solução definitiva e justa do conflito submetido ao Poder Judiciário. Não é crível que a fruição de um benefício fiscal, ao qual o Contribuinte litigante tem direito assim como os demais Contribuintes, seja vedado sob o argumento de que não se possa adimplir o crédito tributário e litigar sobre ele ao mesmo tempo.
Nos dizeres o Ilustre Professor Leandro Paulsen, em doutrina perfeitamente adequada ao objeto do presente estudo, “Em matéria tributária, em que os atos do Fisco são revestidos de auto-executoriedade, constitui o seu próprio crédito e produzindo o título executivo, com mais razão ainda faz-se necessário atentar para a necessidade de resguardo do equilíbrio nas relações, reconhecendo, também nesta seara, a invalidade das eventuais abusividades, como as cláusulas que exigem do contribuinte que abra mão do direito constitucional de acesso ao Judiciário”[6].
Ora, nesse sentido, a exigência de apresentação, desistência ou renúncia ao direito objeto das ações judiciais em curso, para que a adesão ao parcelamento seja concretizada, representa arbitrariedade que não se harmoniza com as regras e princípios que regem o atual Estado Democrático de Direito.
Especificamente quanto ao argumento de que a extinção das ações judiciais em curso é decorrência lógica do reconhecimento ou da confissão extrajudicial do crédito tributário, importante enfatizar que o Poder Judiciário já se manifestou a esse respeito, no sentido de que a confissão da dívida produz efeitos somente na via administrativa.
É que o ato de confissão do crédito tributário se constitui ato de vontade praticado na esfera de disponibilidade e interesse do Contribuinte. As consequências de tal ato não se estendem à esfera judicial, pois a busca do reconhecimento do direito perante o Poder Judiciário em nada se assemelha ao ato administrativo. A Receita Federal e a Fazenda Nacional não têm competência para decidir sobre a constitucionalidade ou legalidade de tributos, razão pela qual o reconhecimento ou a confissão extrajudicial do crédito não tem influência nas demandas judiciais a ele correlatas.
O Superior Tribunal de Justiça, em julgamento submetido à sistemática dos Recursos Repetitivos[7], afirmou que “A confissão do débito em matéria tributária diz respeito aos fatos que legitimam o lançamento ou à existência da própria dívida; o contribuinte pode confessar que deve, nada impedindo, todavia, que discorde das alíquotas incidentes ou que demonstre que faz jus à isenção; enfim, que questione o direito aplicado naquela situação de fato”.
Dessa forma, resta patente que a adesão ao parcelamento e às anistias instituídas pela Lei nº. 11.941/09 deve produzir os efeitos previstos no referido diploma legal independente da desistência ou da renúncia ao direito almejado nas ações judiciais que eventualmente discutam a legitimidade dos créditos tributários parcelados, em razão da clara inconstitucionalidade e ilegalidade contida no artigo 13 da Portaria Conjunta RFB/PFN nº. 06/2009.
[1]Art. 348. Há confissão, quando a parte admite a verdade de um fato, contrário ao seu interesse e favorável ao adversário. A confissão é judicial ou extrajudicial.
Art. 353. A confissão extrajudicial, feita por escrito à parte ou a quem a represente, tem a mesma eficácia probatória da judicial; feita a terceiro, ou contida em testamento, será livremente apreciada pelo juiz.
Parágrafo único. Todavia, quando feita verbalmente, só terá eficácia nos casos em que a lei não exija prova literal.
Art. 354. A confissão é, de regra, indivisível, não podendo a parte, que a quiser invocar como prova, aceitá-la no tópico que a beneficiar e rejeitá-la no que lhe for desfavorável. Cindir-se-á, todavia, quando o confitente lhe aduzir fatos novos, suscetíveis de constituir fundamento de defesa de direito material ou de reconvenção.
[2]A interpretação é razoável, pois ocorrendo o desfecho favorável da demanda judicial que tenha por objeto tributo adimplido por meio do parcelamento, verificar-se-á um crédito em favor do Contribuinte, como em qualquer outra ação de repetição de indébito.
[3] É o que verifica, por exemplo, no artigo 84, inciso IV, da Carta Magna, ao afirmar que “Compete privativamente ao Presidente da República sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução”
[4] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário – Linguagem e Método. 2ª Ed. São Paulo: Editora Noeses, 2008. 282-283 p.
[5] MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Mártires. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2ª Ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2008. 494 p.
[6] PAULSEN, Leandro. Direito Tributário – Constituição e Código Tributário à Luz da Doutrina e da Jurisprudência. 10ª Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008. 1041 p.
[7]Recurso Especial Repetitivo nº. 1.124.420/MG, Relator Ministro Napoleão Maia Nunes Filho, DJ de 14/03/2012.