Querem pôr a culpa nos advogados
por Sacha Calmon
Presidente da ABDF
Duas instâncias não bastam e os agravos são necessários
Somos uma sociedade acostumada a experiências autoritárias de governança, desde o período colonial sob o guante português, passando pela época do Império Unido de Portugal, Brasil e Algarves, tendo o Rio de Janeiro como capital (inversão colonial), com a metrópole relegada a zona periférica, por isso que aqui ficavam a Coroa, o Governo e as decisões. O autoritarismo continuou depois da separação do Brasil do império português, tornando-se nação independente, sob a forma de uma monarquia constitucional, após 7 de setembro de 1822. Nessa época, passamos a adotar a tripartição dos poderes, sob um peculiar regime parlamentarista de Governo, a governar um país imenso, mas unitário, onde as províncias espalhadas num imenso território não tinham autonomia político-administrativa, curvando-se ao cetro real. O monarca tinha domínio sobre os ramos executivo e legislativo. O rei podia derrubar e erguer os gabinetes parlamentaristas de governo e dominava o Judiciário. Os magistrados eram indicados por atos de Sua Majestade.
Proclamada a República em 1889, adotamos, teoricamente, o modelo norte-americano: presidencialismo, federação e controle difuso da constitucionalidade das leis (judicial review). Na prática persistia o autoritarismo do Poder Executivo.
No Brasil os entes políticos (Legislativo e Executivo) são responsáveis por 81% dos recursos que sobrecarregam as pautas dos Tribunais Superiores. Não exercem o controle “interna corporis” de constitucionalidade das leis e atos normativos, muito pelo contrário. Tampouco são apenados por essas atitudes autoritárias, antidemocráticos e não-republicanos. Os advogados públicos recorrem por recorrer, quase não sofrem condenações em honorários e raramente são multados pelos recursos protelatórios, não se podendo omitir, nesse trabalho, a existência desse déficit civilizatório a exacerbar o trabalho da Corte Suprema Brasileira.
Vê-se então que nos encerros do controle difuso as súmulas vinculantes e os recursos extraordinários de repercussão geral possuem efeitos “erga omnes” e vinculam os poderes públicos e os particulares no tocante aos casos iguais. Procuram dar eficácia as decisões da Suprema Côrte, na esteira do “stare decisis” do Direito Norte-Americano. Não é despiciendo notar que a Suprema Côrte de lá julga 180 casos por ano, a brasileira oito mil processos (REs), sem falar na ações diretas (controle concentrado) e habeas-corpus. A razão de ser dessa discrepância parece assentar-se em três premissas.
“Primus” – A Constituição Americana e suas poucas emendas é sintética, breve, não oferecendo o flanco a desobediências claras enquanto a brasileira é pletórica, abundante, analítica, quase um supercódigo de normas jurídicas de todos os ramos do Direito, ofertando ocasião a inúmeros desrespeitos e ofensas, ampliando como em lugar algum da terra o contencioso Constitucional.
“Secundus” – Noutras latitudes o Legislativo e o Executivo primam por respeitar a Constituição, como em França, onde o controle de constitucionalidade dá-se na última etapa do processo Legislativo, pelo Conselho Constitucional, órgão respeitado da Assembléia Nacional da República Francesa e os atos da Administração são severamente analisados em face da Constituição pelo Conselho de Estado, órgão materialmente jurisdicional mas integrante, formalmente falando, do aparato do Estado- Administração, daí falar-se ali em dualidade de jurisdição. No Brasil, ao revés o controle de constitucionalidade das leis e atos normativos e o controle da legalidade dos atos administrativos constam do “ordo juris” mas não é feito no Legislativo e no Executivo, por causa da vocação autoritária a que nos referimos no início dessa explanação. Estes vezos históricos e culturais se sobrepõem as boas práticas republicanas, ocasionando seguidas estocadas ao corpo da Constituição e de suas numerosas emendas. É a Constituição mais emendada do mundo no curto espaço de vinte e poucos anos, a trazer enorme instabilidade constitucional.
“Tertius”- As competências do Supremo Tribunal Brasileiro superam vigorosamente as das Côrtes Constitucionais da Europa e da Suprema Côrte Americana, que se ocupam exclusivamente de questões constitucionais.
Sem negar a necessidade de reformar o processo recursal mas sem desarmar, a nós advogados, por primeiro os juízes deveriam entender os processos que julgam, rever suas competências e coibir a gana litigiosa dos Poderes Políticos.
Duas instâncias não bastam. Temos outros instrumentos atuando e trarão resultados.
Seja lá como for, a intensa ocupação do nosso STF abarrotado de temas relevantíssimos e miuçalhas jurídicas que lhe deveriam ser estranhas, o botaram em crise. O tema da “repercussão geral” encarta-se neste panorama. Ex facto oritur jus. É uma tentativa de travar a sobrecarga de recursos extraordinários. No passado já tivemos o anteposto da relevância da questão federal.
Há mais. A Constituição de 1988 constitucionalizou exageradamente o Direito comum, na esperança de vê-lo respeitado. Deu-se o contrário. A litigiosidade cresceu exponencialmente, trazendo no bojo dos processos matéria constitucional atraindo a competência do STF. Por este ângulo, a questão da relevância do direito discutido ou, noutras palavras, o instituto da repercussão geral avisa que não basta a matéria ostentar cunho constitucional, é necessário que o seu desate tenha repercussão geral, o que é, por vários motivos, paradoxal. Primus – Toda questão constitucional é relevante e necessariamente tem repercussão geral. É estranho que a Constituição, em certos casos, não tenha garante. Secundus – A repercussão geral é um, a priori, por isso que integra o juízo de admissibilidade do recurso. A admissão tem cariz subjetivo e, portanto, arbitrário. O juiz da Suprema Corte decide se a questão constitucional deve ou não ser conhecida com perda evidente de eficácia da Lei Maior. Tertius – Estabelece-se por este sendeiro uma diminuição material da Constituição. Ela só é Constituição se o seu alegado desrespeito tiver repercussão geral. Se tal não ocorrer é como se não existisse.
O recurso extraordinário só será apreciado pelo Supremo caso ultrapasse os interesses das partes. A sistemática de julgamento é: 1) escolhe-se um, ou alguns, recursos; 2) paralisa-se o julgamento de todos os casos que tratem da matéria; 3) o STF julga o recurso escolhido; 4) todo o Judiciário aplica aquela decisão aos casos semelhantes. É o stare decisis do Direito norte-americano? Não mas nele inspira-se. A demonstração pela parte da relevância recursal tem parencença com o “writ a certiorari” do Direito norte-americano. É possível identificar algumas consequências: (a) esvaziamento das discussões nas turmas; (b) debates mais qualificados no Plenário; (c) harmonia das decisões judiciais; (d) debate de “teses” e não de “processos”; (e) projeção da Suprema Corte e de seus precedentes; (f) consolidação da interpretação com a participação dos amici curiae; (g) articulação dos interessados nos julgamentos; (h) muitas vezes, os juízes aplicarão o precedente a casos que diferem do que foi decidido. Essas divergências entre o Supremo e os demais tribunais podem trazer problemas não só às partes mas ao próprio STF; (i) a repercussão geral implica o instituto da avocatória, ainda que indiretamente. Em tese, todos os processos iguais ao que será julgado são avocados, ficam paralisados e são julgados, justamente por serem iguais.
As formas de conferir efeitos “erga omnes” às decisões do Supremo Tribunal Federal Brasileiro.
No que concerne ao controle concentrado que é exercido principalmente por meio de ações diretas de constitucionalidade e inconstitucionalidade, sem entrar em pormenores relativos aos sujeitos competentes para aforar ditas ações, que são muitos, bem como a outras formas de acesso à Suprema Côrte Constitucional, como por exemplo, pela arquição de descumprimento de preceito fundamental, diga-se “brevitates causa” que no controle direto e abstrato de constitucionalidade das leis, os acórdãos da Côrte possuem efeitos “erga omnes” e vinculam o Executivo, o Legislativo, o Judiciário e a sociedade como um todo (art. 102 § 2 da Constituição Federal). É um ditado sobre o sentido da Constituição. Mesmo em face de norma proveniente de EMENDA À CONSTITUIÇÃO, afazer do Poder Constituinte Derivado, a via direta, portanto, é mais lépida bem como a resposta que é cortante. Muito embora sejam capacitados para aforar ações diretas diversos sujeitos, elas não estancam a pletora de recursos extraordinários que enfartam a Suprema Côrte Brasileira. Confira-se a LEI MAIOR:
Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
- I – o Presidente da República;
- II – a Mesa do Senado Federal;
- III – a Mesa da Câmara dos Deputados;
- IV – a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
- V – o Governador de Estado ou do Distrito Federal; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
- VI – o Procurador-Geral da República;
- VII – o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;
- VIII – partido político com representação no Congresso Nacional;
- IX – confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
§ 1º – O Procurador-Geral da República deverá ser previamente ouvido nas ações de inconstitucionalidade e em todos os processos de competência do Supremo Tribunal Federal.
§ 2º – Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias.
§ 3º – Quando o Supremo Tribunal Federal apreciar a inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo, citará, previamente, o Advogado-Geral da União, que defenderá o ato ou texto impugnado.
Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)(Vide Lei nº 11.417, de 2006).
§ 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.
§ 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade.
§ 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso.”
Dir-se-á que temos, doutra forma, o stare decisis. Sim, à nossa maneira, mas nem as súmulas vinculantes nem as reclamações ou queixas Constitucionais conseguem desobstruir as artérias do STF. Os recursos extraordinários devido a existência do controle difuso enfartam as artérias da Côrte, sem falar que ocupam – por etapas – o Poder Judiciário. Começam as ações perante os juízes monocráticos estaduais e federais, chegam aos Tribunais Estaduais e Federais de Apelação e finalmente adentram o Tribunal de Justiça (STJ), Tribunal Superior de Trabalho (TST) e por último o Supremo Tribunal Federal (STF), que é um Tribunal Constitucional.
A Repercussão geral, outra técnica de dar efetividade – não porém rapidez – às declarações do STF sobre o significado da Constituição
O leito da matéria em exame está na Constituição. Não Constitui demasia expor o inteiro teor do Instituto em respeito aos leitores daqui e d’alhures.
CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Art. 102. (…).
§ 3º. No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros. (parágrafo incluído pela EC nº 45, de 30 de dezembro de 2004)
LEI Nº 11.418, DE 19 DE DEZEMBRO DE 2006
Acrescenta à Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil, dispositivos que regulamentam o § 3o do art. 102 da Constituição Federal.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1o Esta Lei acrescenta os arts. 543-A e 543-B à Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil, a fim de regulamentar o § 3º do art. 102 da Constituição Federal.
Art. 2o A Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 543-A e 543-B:
“Art. 543-A O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário, quando a questão constitucional nele versada não oferecer repercussão geral, nos termos deste artigo.
§ 1o Para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa.
§ 2o O recorrente deverá demonstrar, em preliminar do recurso, para apreciação exclusiva do Supremo Tribunal Federal, a existência da repercussão geral.
§ 3o Haverá repercussão geral sempre que o recurso impugnar decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal.
§ 4o Se a Turma decidir pela existência da repercussão geral por, no mínimo, 4 (quatro) votos, ficará dispensada a remessa do recurso ao Plenário.
§ 5o Negada a existência da repercussão geral, a decisão valerá para todos os recursos sobre matéria idêntica, que serão indeferidos liminarmente, salvo revisão da tese, tudo nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.
§ 6o O Relator poderá admitir, na análise da repercussão geral, a manifestação de terceiros, subscrita por procurador habilitado, nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.
§ 7o A Súmula da decisão sobre a repercussão geral constará de ata, que será publicada no Diário Oficial e valerá como acórdão.”
(omissis)
REGIMENTO INTERNO DO STF
“Art. 13. São atribuições do Presidente:
V – despachar:
c) como Relator (a), nos termos dos arts. 544, § 3º, e 557 do Código de Processo Civil, até eventual distribuição, os agravos de instrumento e petições ineptos ou doutro modo manifestamente inadmissíveis, bem como os recursos que não apresentem preliminar formal e fundamentada de repercussão geral, ou cuja matéria seja destituída de repercussão geral, conforme jurisprudência do Tribunal.
Art. 21. São atribuições do Relator:
§ 1º Poderá o(a) Relator(a) negar seguimento a pedido ou recurso manifestamente inadmissível, improcedente ou contrário à jurisprudência dominante ou à Súmula do Tribunal, deles não conhecer em caso de incompetência manifesta, encaminhando os autos ao órgão que repute competente, bem como cassar ou reformar, liminarmente, acórdão contrário à orientação firmada nos termos do art. 543-B do Código de Processo Civil.
Art. 322. O Tribunal recusará recurso extraordinário cuja questão constitucional não oferecer repercussão geral, nos termos deste capítulo.
Parágrafo único. Para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões que, relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, ultrapassem os interesses subjetivos das partes.
(omissis)