Preços de transferência nas operações “back to back” – legalidade e retroatividade

Por Allan Sigg
Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e Mestre em Direito Tributário pela Université Jean Moulin – Lyon III.

1. Introdução

A Receita Federal do Brasil (“RFB”) já há alguns anos vem manifestando seu entendimento controverso em relação à qualificação e consequente tributação das operações de Back to Back (“BTB”), os pormenores desta interpretação serão analisado no item 2 e 3 abaixo.

De fato, não só a aplicação das normas de preço de transferência nas operações de BTB, mas também a incidência do PIS/COFINS nas mesmas vêm sofrendo pesadas críticas de juristas e contribuintes.

O ponto central desta discussão é a ausência de uma base legal apropriada que fundamente o posicionamento da RFB. A fim de suprir tal lacuna, a mesma incluiu em seu repertório de atos administrativos, através da Instrução Normativa 1.312/12 (“IN 1312”), a previsão para a aplicação das regras de arbitramento às operações de BTB.

O objetivo do presente trabalho é discutir o posicionamento da RFB com base na legislação atualmente em vigor no País e os efeitos jurídicos de uma eventual autuação da RFB neste sentido.

2. Princípio da Legalidade e Entendimento do Fisco

O princípio da legalidade está inserido em nossa Constituição[1] e na legislação tributária[2]. Seu conceito e sua aplicação são fundamentais para compreender a aplicação das normas sobre preço de transferência em nosso país pelo Fisco e sua relação conflituosa com os contribuintes.

De fato, nem sempre a metodologia de cálculo adotada pela RFB respeitou o balizamento da Lei 9430/96. A Instrução Normativa 243/02 (IN 243), alterou o método de cálculo previsto na referida lei no método de importação denominado Preço de Revenda menos o lucro (PRL), através da retirada do valor agregado no produto para a revenda. Isso, na prática, diminuiu o limite de descontos na apuração dos tributos e, consequentemente, aumentou o montante a ser recolhido.  

Em relação a legalidade da IN 243, nota-se que as decisões proferidas no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais ainda não garantem a segurança jurídica que os contribuintes, notadamente multinacionais, necessitam para consolidar e expandir suas atividades[3].

A adequação entre o posicionamento do Fisco e a legislação vigente foi, sem dúvida, um dos principais motivadores do governo ao editar a Medida Provisória 563 (“MP 563”), cuja conversão na Lei 12715/12 alterou de forma considerável a sistemática de preço de transferência no País.

De fato, ao reconhecer na exposição de motivos da referida MP que era necessário diminuir a litigiosidade Fisco-Contribuinte e atualizar a legislação vigente, o governo reconheceu o descolamento entre a norma administrativa e o princípio da legalidade já que o texto da MP retoma basicamente a metodologia de cálculo presente na IN 243.

A promulgação da Lei 12715/12 e da Lei 12766/12 certamente não colocará um ponto final aos litígios motivados pela atuação administrativa sem fundamento legal, já que mesmo sem qualquer previsão legislativa neste sentido, a RFB incluiu na IN 1312 dispositivos específicos à aplicação da legislação de preço de transferência nas operações de BTB.

Neste sentido, vale a pena rever alguns posicionamentos da RFB em relação ao seu entendimento do que é BTB. Primeiramente cumpre definir o que uma operação de BTB para fins do presente estudo. A própria RFB a define como: “as operações back to back são aquelas em que a compra e a venda dos produtos ocorrem sem que esses produtos efetivamente ingressem ou saiam do Brasil. O produto é comprado de um país no exterior e vendido a terceiro país, sem o trânsito da mercadoria em território brasileiro[4].

Esta definição não difere substancialmente de outras emitidas por outras instituições do governo[5], de modo que nos ateremos a ela.

O que chama a atenção é a qualificação jurídica dada pelo Fisco a este tipo de operações, vejamos:

A receita decorrente de operação de back to back credits , termo este utilizado para definir a operação de natureza cambial destinada a amparar a compra e venda de produto estrangeiro, realizada n o exterior por empresa estabelecida no Brasil, sem que a mercadoria transite fisicamente pelo território brasileiro, não caracteriza exportação. Portanto, não cabe a aplicação da isenção da Cofins relativa à exportação de mercadorias[6].” 

Não temos notícia, seja na doutrina, seja na legislação de outros países que o BTB seja considerado como uma operação financeira de natureza cambial como pretende o Fisco Nacional[7]. De fato, entendemos que a receita derivada das operações de BTB tem natureza comercial-financeira derivada da diferença do preço de compra e venda obtida pela empresa nacional. Obviamente é necessário o fechamento de um ou mais contratos de câmbio, estes, no entanto, são operações acessórias e alheias ao contrato de BTB em si.

Ao refutar o entendimento manifestado por um contribuinte acerca das operações de BTB como exportação, a RFB manifestou-se da seguinte forma:

 “OPERAÇÃO BACK TO BACK. INCIDÊNCIA. BASE DE CÁLCULO. A operação de back to back, isto é, a compra e venda de produtos estrangeiros, realizada no exterior por empresa estabelecida no Brasil, sem que a mercadoria transite fisicamente pelo território brasileiro, não caracteriza importação nem exportação de mercadoria, por conseguinte, quanto à compra não há a incidência da contribuição para o PIS/Pasep, prevista para a importação, quanto à venda não cabe a exoneração da mesma contribuição, referente a exportação. A base de cálculo da contribuição para o PIS/Pasep é o faturamento que corresponde o total das receitas auferidas pela pessoa jurídica. Sendo assim, a base de cálculo da citada contribuição em operação de back to back corresponde ao valor da fatura comercial emitida para o adquirente da mercadoria, domiciliado no exterior[8].”

Assim, além de negar o direito ao creditamento nos bens adquiridos para revenda, a RFB também inova ao aplicar a metodologia do preço de transferência em operações comerciais que não são nem importação, nem exportação.

Neste sentido, cumpre investigar se a operação de BTB pode ser enquadrada em alguma categoria contratual ou negocial prevista na legislação comercial brasileira ou se seria necessária uma regulamentação específica para regular tais operações no âmbito tributário.

3. Natureza jurídica do Back to Back

Conforme visto, ao caracterizar o BTB como operação cambial, a RFB confunde a operação principal com um contrato acessório indispensável à remessa de numerário ao exterior bem como o seu recebimento no Brasil.

Muitos contribuintes comparam a operação a uma importação seguida de uma exportação. Ambas fictas. As receitas restariam, deste modo, amparadas pela imunidade prevista no artigo 149, § 2º, I para o PIS/COFINS, da Constituição Federal.

O conceito de importação/exportação para fins tributários normalmente é previsto na legislação dos impostos incidentes nestas operações como o ICMS, IPI, II e o IE e prevê sempre como fato gerador o desembaraço aduaneiro, razão pela qual nenhum deles incide nas operações de BTB.

De fato, sem uma legislação específica não se pode falar de comércio exterior de mercadorias sem desembaraço aduaneiro. Também nos parece que o intuito do legislador foi de conceder imunidade às exportações para desenvolver a indústria nacional e promover a entrada de recursos externos. Nada disso ocorre nas operações de BTB, de forma que é juridicamente inviável, atualmente, a equiparação do BTB a uma exportação.

Outra corrente defende a equiparação das operações de BTB à uma intermediação comercial, nos termos dos artigos 710 e ss. do Código Civil. Nestas operações, o intermediador age por conta e ordem de outrem e tem como função aproximar as partes na realização de um determinado negócio. Não nos parece, igualmente, que este seja o caso do BTB, no qual o agente nacional efetivamente compra e vende mercadorias em seu próprio nome, apenas se sujeitando em alguns casos a especificações técnicas do comprador final, caracterizando uma operação de revenda e não de intermediação.

A operação de BTB é, em nosso entendimento, uma variação das operações de venda à ordem prevista nas legislações estaduais de ICMS, com a diferença que aquela ocorre num contexto de comércio exterior.

De fato, o BTB no exterior, principalmente no contexto comunitário, são conhecidas como operações triangulares, triangulação, transações ABC ou ainda operações em cadeia, no mesmo formato que uma venda à ordem.

No julgamento do caso EMAG Handel Eder OHG vs Finanzlandesdirektion für Kärnten (CJCE – Caso C-245/04), as conclusões da advogada geral foram exatamente neste sentido em relação a natureza da operação:

uma operação triangular nada mais é que, uma forma particular de operação em cadeia, à diferença que a cadeia de entregas é constituída de empresas localizadas em, pelo menos, três estados membros[9]”.

De fato, a legislação comunitária relativa ao imposto sobre valor agregado exigiu diversas alterações na legislação de base deste tributo[10], a fim de corrigir distorções fiscais nas operações triangulares entre estados membros[11], evitando a glosa de créditos e a necessidade de registrar-se como contribuinte em cada um dos países onde as empresas operam o BTB, mas acima de tudo, de interpretações divergentes sobre a natureza das operações de BTB, consolidando a regra matriz da operação.

É interessante notar que, no direito comparado, as operações BTB atraem basicamente uma tributação aduaneira e indireta, restando a aplicação do preço de transferência restrita às importações/exportações clássicas.

4. Conclusão

Conforme analisado acima, não há no Brasil uma legislação específica que regule ou defina a regra matriz de incidência nas operações de BTB, a exemplo do que ocorre na Comunidade Europeia e a consequente tributação de IVA (Imposto sobre Valor Agregado).

É certo que não se trata de uma operação cambial conforme entendimento do RFB, muito menos uma operação de importação ou exportação de mercadorias. Os rendimentos auferidos pelas empresas nacionais neste tipo de operação não tem vocação para gozar da imunidade tributária conferida pela Constituição em operações de exportação, devendo os rendimentos ser contabilizados como outros rendimentos ou outras receitas.

Ajustes relativos a preço de transferência, no entanto, carecem de uma previsão específica no âmbito legislativo regulando a aplicação de tais regras às operações de BTB. De fato, a regulamentação sobre preço de transferência só se aplica a importação ou exportação de mercadorias, serviços e direitos, o que não é o caso do BTB como a própria RFB reconhece.

Nada impede que uma legislação superveniente equipare a operação de BTB a uma importação seguida de exportação, ambas fictas, mas aptas a gerar efeitos em relação ao preço de transferência.

Tal solução, no entanto iria à contramão dos regulamentos internacionais, que equiparam as operações de BTB a uma venda à ordem internacional, sendo certo que tal instituto já é previsto nas legislações internas do ICMS e do IPI e poderia ser adaptada a operações de comércio exterior para ser aplicada as operações de BTB.

Sendo certo, que na falta de legislação específica que regule os efeitos das operações de BTB em relação ao preço de transferência, todos os atos da RFB neste sentido, incluído aí o artigo 37da IN 1312, são manifestamente ilegais.



[1] De modo geral, o princípio da legalidade está inserido no art. 5º, II : “II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Especificamente no âmbito tributário o comando é reforçado: Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;

[2] Código Tributário Nacional: Art. 97. Somente a lei pode estabelecer:

        I – a instituição de tributos, ou a sua extinção;
        II – a majoração de tributos, ou sua redução, ressalvado o disposto nos artigos 21, 26, 39, 57 e 65;
        III – a definição do fato gerador da obrigação tributária principal, ressalvado o disposto no inciso I do § 3º do artigo 52, e do seu sujeito passivo;
        IV – a fixação de alíquota do tributo e da sua base de cálculo, ressalvado o disposto nos artigos 21, 26, 39, 57 e 65;
        V – a cominação de penalidades para as ações ou omissões contrárias a seus dispositivos, ou para outras infrações nela definidas;
        VI – as hipóteses de exclusão, suspensão e extinção de créditos tributários, ou de dispensa ou redução de penalidades.
        § 1º Equipara-se à majoração do tributo a modificação da sua base de cálculo, que importe em torná-lo mais oneroso.

[3] Embora a maioria dos casos julgados pelo referido Órgão desde 2010 tenham sido favoráveis a RFB, ex.: LG e Sanofis, houve alguns casos em que o ganho do causa foi do contribuinte, ex. Pfizer e Delphi.

[4] IN 1312, art. 37, § 1º.

[5]Operação em que a compra e a venda de mercadoria ocorre sem sua efetiva entrada ou saída do Brasil. Não há mais necessidade de autorização do Banco Central para a realização de referida operação (Glossário – Banco Central do Brasil)

[6]Solução de Consulta nº 202 – 16 de outubro de 2003.

[7] De fato, podemos encontrar uma definição da legal do BTB no art. 141 da Diretiva Comunitária 2006/112/CE, que define a mesma como uma operação de compra e revenda:

[8] Solução de Consulta Nº 398 – 23 de novembro de 2010

[9] CONCLUSIONS DE L’AVOCAT GÉNÉRAL Mme JULIANE Kokott présentées le 10 novembre 2005 “65.  “ Le fait que la solution proposée est conforme à l’économie du titre XVI bis de la sixième directive ressort d’une comparaison avec les dispositions particulières prévues à l’article 28 quater, E, paragraphe 3, pour ce que l’on appelle les opérations triangulaires. Une opération triangulaire n’est finalement rien d’autre qu’une forme particulière de l’opération en chaîne, à ceci près que la chaîne de livraison est constituée d’entreprises d’au moins trois États membres.”

[10] A Diretiva 2006/112/CE, consolidou e racionalizou o ordenamento sobre a matéria substituindo a Diretiva 77/388/CEE em relação ao IVA.

[11] A Diretiva 91/680/CEE trata especialmente do tratamento fiscal das operações triangulares e prevê diversas situações em que as especifidades desta operação devem ser consideradas.

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