Da Ilegalidade da Aplicação das Regras de Preços de Transferência nas Operações “Back to Back”
por Wilson Rodrigo Vieira da Silva
Graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Especialista em Direito Tributário pela mesma Universidade. Advogado do Escritório Souza, Schneider, Pugliese e Sztokfisz Advogados.
No intuito de otimizar a lucratividade das operações internacionais, as pessoas jurídicas buscam as melhores formas de distribuição de seus produtos com o menor custo atrelado possível. Com base nessa premissa, surgem operações como as chamadas “back to back”.
Tais operações são definidas pelo Banco Central do Brasil como aquelas em que a compra e a venda dos produtos ocorrem sem que esses produtos efetivamente ingressem ou saiam do Brasil. Ou seja, o produto é comprado de um país no exterior e vendido a terceiro país, sem o trânsito da mercadoria em território brasileiro.
Dessa forma, as operações “back to back” são, em muito, diferentes de operações de importação e exportação comuns, por conta de dois motivos principais, quais sejam:
- (i)O fechamento da operação ocorre mediante simples fechamento de contrato de câmbio. Assim, utilizando-se dos canais de recebimento e remessa de moeda estrangeira previstos pelo Regulamento do Mercado de Câmbio e Capitais Internacionais[1], a pessoa jurídica poderá concretizar a operação sem a necessidade de formalização por meio do SISCOMEX e, por conseguinte, sem necessidade de gerar Declarações de Importação ou Registros de Exportação; e
- (ii)Por não ocorrer a nacionalização dos produtos importados, não há a incidência dos tributos normalmente incidentes sobre o desembaraço aduaneiro (como, por exemplo, Imposto de Importação, Imposto sobre Produtos Industrializados, Contribuição ao PIS – Importação, e COFINS – Importação)[2].
Portanto, conclui-se que as operações “back to back” não são, em seu conteúdo material e formal, operações de importação e exportação, sendo transações de intermediação resolvidas no âmbito cambial.
Não obstante isso, a Secretaria da Receita Federal do Brasil (“RFB”), por meio de Soluções de Consulta, vinha expondo seu entendimento no sentido de que tais operações deveriam sujeitar-se ao controle das regras de preços de transferência.
Nessa esteira, importante mencionar a Solução de Consulta nº 5, proferida pela Coordenação-Geral do Sistema de Tributação (“COSIT”), abaixo transcrita:
“Ementa: Transação descrita pela interessada como “back to back credits”, deverá sujeitar-se à legislação de preço de transferência prevista pela Lei nº 9.430, de 1996. Como a transação envolve duas operações de compra e de venda, ambas com empresas vinculadas, a interessada deverá demonstrar, utilizando-se a legislação de preço de transferência, uma margem de lucro de toda a transação que não divirja da margem que seria praticada se as operações houvessem sido realizadas com empresas independentes, para isso a interessada deverá apurar dois preços parâmetros, uma para a operação de compra e outro para a de venda.
DISPOSITIVOS LEGAIS: Arts.. 18 e 19 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996 e Instrução Normativa SRF nº 243, de 11 de Novembro de 2002.
LUIZ TADEU MATOSINHO MACHADO – Coordenador-Geral” (D.O.U. de 10.07.2009) (g.n)
Assim, o Fisco promoveu interpretação distorcida das regras de preços de transferência contidas na Lei nº 9.430/96 e alterações posteriores, aplicando-as como se houvesse, de fato, operações de importação e exportação, quando nas operações “back to back” não há registros de importação e exportação.
Contudo, não bastasse o entendimento equivocado acima exposto, o qual, no âmbito do processo administrativo de consulta, vincularia somente as partes interessadas, recentemente a RFB publicou a Instrução Normativa nº 1.312/12, a qual, com o intuito inicial de refletir as alterações promovidas nas leis que disciplinam os preços de transferência no Brasil, acabou positivando o malsinado entendimento de que as operações “back to back” estão sujeitas ao controle dos preços de transferência, in verbis:
“(…) DAS OPERAÇÕES BACK TO BACK
Art. 37. Estão sujeitas à aplicação da legislação de preços de transferência as operações back to back, quando ocorrer:
I – aquisição ou alienação de bens à pessoa vinculada residente ou domiciliada no exterior; ou
II – aquisição ou alienação de bens à pessoa residente ou domiciliada em país ou dependência com tributação favorecida, ou beneficiada por regime fiscal privilegiado, ainda que não vinculada.
§ 1º Para fins do disposto no caput, as operações back to back são aquelas em que a compra e a venda dos produtos ocorrem sem que esses produtos efetivamente ingressem ou saiam do Brasil. O produto é comprado de um país no exterior e vendido a terceiro país, sem o trânsito da mercadoria em território brasileiro.
§ 2º Deverá ser demonstrado que a margem de lucro de toda a transação, praticada entre vinculadas, é consistente com a margem praticada em operações realizadas com pessoas jurídicas independentes.
§ 3º Deverão ser apurados 2 (dois) preços parâmetros referentes a operação de compra e a operação de venda, observando-se as restrições legais quanto ao uso de cada método de apuração.”
Ora, por força do artigo 150, inciso I da Constituição Federal[3] é vedado aos entes federativos exigir tributo sem lei que o estabeleça. Tal norma cuidou de limitar o poder de tributar do Estado, limitação também observada no artigo 146, inciso II, da Carta da República e no artigo 97 do Código Tributário Nacional, que trazem disposições semelhantes[4].
O que pretendeu a Receita Federal do Brasil com a edição dessa Instrução Normativa foi, sem que exista sequer uma única lei que assim estabeleça, criar a obrigatoriedade de aplicação de regras de preços de transferência, exclusivas para operações de importação e exportação, onde não há nem importação, tampouco exportação!
Ressalte-se, inclusive, que a própria Receita Federal do Brasil já manifestou idêntico entendimento, qual seja, de que as operações “back to back” não caracterizam operações de importação e exportação[5].
Note-se, ainda, que em casos onde a instrução normativa extrapolou os limites legais, tanto os tribunais administrativos[6] quanto o Poder Judiciário[7] já decidiram pela ilegalidade do ato infralegal.
Além disso, nem se cogite qualquer intuito da Receita Federal do Brasil em aplicar tal norma de forma retroativa, com base no art. 106, I, do Código Tributário Nacional (“CTN”). Isso porque, em primeiro lugar, o normativo do CTN é claro ao dispor que “a lei aplica-se a ato ou fato pretérito em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa (…)”, o que não é o caso.
E em segundo lugar, como já visto anteriormente, tal comando normativo da Instrução Normativa difere do disposto na Lei nº 9.430/96 e alterações, sendo que, mesmo que a aplicação das regras de preços de transferência estivesse contida em lei, somente poderia produzir efeitos a partir do exercício seguinte a que foi instituído, por força do art. 150, III, “b” da Constituição Federal[8].
Portanto, diante do exposto, forçoso concluir pela ilegalidade da IN nº 1.312/12 no que tange à determinação da aplicação das regras de preços de transferência em operações “back to back”, uma vez que não há mandamento legal que determine a aplicação de tais regras sem a existência de operações de importação e exportação.
[1] Os contratos de câmbio deverão ser celebrados nas seguintes naturezas: Exportação – tipo 01 – código da natureza 10447 e o de importação – tipo 02 – código da natureza 15442, seguindo as orientações do RMCCI, Título 1 – Mercado de Câmbio, Capítulo 8 – Codificação de Operações de Câmbio, Seção 2 – Natureza de Operação, na subseção 2, de Exportação e na subseção 3, de Importação. Por meio desses códigos de natureza, os contratos de câmbio são identificados como operações “back to back”.
[2]Neste sentido, vide a Solução de Consulta nº 49, proferida pela Superintendência Regional da Receita Federal da 9ª Região Fiscal, publicada no D.O.U. de 14.04.2007.
[3] “Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça; (…)”
[4] Com relação a esse tema, não é outra a lição do Professor Luís Eduardo Schoueri, segundo o qual “ (…) a ordem constitucional pátria veda-se expressamente a invasão pelo Executivo, quando do exercício de sua faculdade regulamentar, da esfera de atribuições do Legislativo. Nesse sentido, o texto da Constituição Federal vincula a Administração Pública ao ‘princípio da legalidade’ (artigo 37), bem como exige que os decretos regulamentares sejam expedidos apenas para prover a ‘fiel execução da lei’ (artigo 84, IV)”. (SCHOUERI, Luís Eduardo. “Preços de Transferência no Direito Tributário Brasileiro”. Ed. Dialética: São Paulo, 2º Ed., 2006, pág. 176)
[5] Nesse sentido, confira-se a Solução de Consulta nº 398, proferida pela Superintendência Regional da Receita Federal da 8ª Região Fiscal, segundo a qual “a operação de back to back, isto é, a compra e venda de produtos estrangeiros, realizada no exterior por empresa estabelecida no Brasil, sem que a mercadoria transite fisicamente pelo território brasileiro, não caracteriza importação nem exportação de mercadoria (…)” (D.O.U. de 28.12.2010 – g.n.)
[6] “(…) PREÇO DE TRANSFERÊNCIA – PRL 60% – IN SRF 243/02 – ILEGALIDADE A IN 243/02 buscou interpretar a Lei, porém excedeu seus limites ao presumir, sem autorização legal ou suporte fático, o valor agregado no Brasil por uma regra de proporcionalidade. Para não resultar em ajuste, tal valor teria que ser no mínimo custo incorrido no Brasil agregado à margem de 150% (60% do preço). As margens fixas determinadas pela Lei 9.430/96 aplicam-se apenas aos custos importados de determinadas partes ou aos respectivos preços de revenda, não aos custos ou preços de itens nacionais e nem à margem ou ao valor agregado no Brasil. A IN 243/02 não está de acordo nem com o texto ou com o contexto da Lei.” (Ac. CARF 1302-00915, Sessão de 10.04.2012)
[7] “TRIBUTÁRIO. APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA. TRIBUTAÇÃO EM TRANSAÇÕES INTERNACIONAIS ENTRE PESSOAS JURÍDICAS VINCULADAS. METODOLOGIA DO PREÇO DE REVENDA MENOS LUCRO – PRL. IN Nº 243/2002. ILEGALIDADE. RECURSO PROVIDO.
– Tratando-se de transações internacionais entre pessoas jurídicas vinculadas, a tributação dá-se através do conceito “preço de transferência”, sob a metodologia, no caso da impetrante, do “Preço de Revenda menos Lucro” (art. 18 da Lei nº 9.430/1996).
– À guisa de complementar a disposição legal regente do assunto, sobrevieram instruções normativas da Secretaria da Receita Federal, incluindo a de nº 243/2002, que extrapolou o poder regulamentar que lhe é imanente, daí se avistando ofensa ao princípio da reserva da lei formal.
– Necessidade de se garantir à impetrante a utilização dos critérios de apuração do preço de transferência pelo método PRL, conforme art. 18 da Lei nº 9.430/1996, afastadas as alterações trazidas pela IN nº 243/2002.
– Recurso provido.” (AMS 0034048-52.2007.4.03.6100, TRF 3ª Região, Rel. Juiz Conv. Roberto Jeuken, DJ de 13.09.2010)
[8] Interessante mencionar que a RFB, na Solução de Consulta Interna nº 19/11, emanou o seguinte entendimento: “Quanto à natureza jurídica das instruções normativas, são atos que têm por função complementar e normatizar a legislação tributária, enquadrando-se no art. 100, inciso I do CTN. Têm, também, esses atos, natureza interpretativa, explicitando o sentido e alcance dos atos legais. Nessa acepção, embora se enquadre na categoria de atos normativos, não possuem natureza de ato constitutivo, uma vez que não se revestem do poder de criar, modificar ou extinguir relações jurídico-tributárias, em razão, precisamente, de seu caráter meramente interpretativo”. (g.n.) Nesse sentido, conclui-se que, no presente caso, ainda que o entendimento seja que a Instrução Normativa nº 1.312/12 seja interpretativa, ela nunca poderia exceder o disposto em lei.