Não incidência de IRRF nas remessas para pagamento de serviços sem transferência de tecnologia

 

por Andréa da Fonseca Santos Torres Magalhães
Advogada do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES. Formada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.

À tormentosa discussão acerca da incidência de Imposto de Renda sobre as remessas para pagamento de serviços sem transferência de tecnologia recentemente se acrescentou valiosíssima contribuição. Cuida-se do acórdão da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, que negou provimento ao REsp 1.161.467[i] com base no conceito de “lucro de empresas” previstos nas Convenções Internacionais contra a Bitributação celebradas com Alemanha e Canadá[ii]. Ao analisar a abrangência da rubrica e a prevalência das convenções internacionais em matéria tributária sobre a legislação interna, o tribunal considerou como lucro os rendimentos de não-residente decorrentes da prestação de serviços a empresa brasileira, adotando entendimento há muito esposado pela doutrina.

Impulsionada pela necessidade de expansão da capacidade arrecadatória face globalização da economia, há uma tendência mundial de se prestigiar o princípio da universalidade (worldwide income taxation) na tributação da renda de pessoas jurídicas, que, em contraste com o princípio da territorialidade, permite a tributação de rendimentos obtidos além das fronteiras nacionais. Essa universalidade pode desencadear a pluralidade de pretensões tributárias concorrentes, fenômeno em que consiste a bitributação internacional, que pode resultar em carga tributária confiscatória, que asfixia a capacidade contributiva e compromete a atividade empresarial.

Motivados a combater esse fenômeno, os países celebram Convenções para Evitar a Dupla Tributação. Nas Convenções firmadas pelo Brasil, que se baseiam no Modelo elaborado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, ora se prevê tributação exclusiva – seja pelo Estado da fonte, seja pelo da residência do beneficiário do rendimento – ora se minimiza os danos da tributação cumulativa por meio da limitação de alíquotas ou do regime de créditos, ora, ainda, se resvala ao campo residual do “rendimento não expressamente mencionado”, que, ao permitir a bitributação, compromete a aplicabilidade da Convenção.

Diante da abundância de tipos de rendimentos e da sutileza de sua distinção, lança-se um desafio hercúleo: determinar a ideal subsunção de determinado rendimento dentre as rubricas previstas nas Convenções, de modo a afastar a aplicação da previsão genérica “rendimentos não expressamente mencionados”. É que, enquanto a Convenção Modelo da OCDE prevê que os rendimentos não tratados nos artigos da Convenção só podem ser tributados no Estado de residência[iii], as Convenções celebradas pelo Brasil, em regra, permitem competências tributárias cumulativas, ao estabelecerem que os rendimentos de um residente de um Estado Contratante não mencionados nos Artigos anteriores da presente Convenção e provenientes do outro Estado Contratante podem ser tributados nesse outro Estado Contratante[iv]. Assim, esse conflito de qualificação implica, na prática, o afastamento das regras convencionais, admitindo a bitributação.

Especificamente no que tange à prestação de serviços, deve-se aventar a possibilidade de enquadramento nas categorias “royalties”, “profissões independentes”, “serviços técnicos e de assistência técnica”, “lucros” ou “rendimento não expressamente mencionados”, como se passa a analisar.

Quanto à diferenciação deprestação de serviços e royalties, com destaque para a limitação de alíquota aplicável apenas no segundo, esclarece a doutrina especializada que a prestação de informações baseadas na experiência adquirida (royalties)se diferencia de serviços pela aplicabilidade do conhecimento transmitido. Não serão considerados royalties os serviços em que o cedente interfira na aplicação da tecnologia ou garanta seu resultado, ao invés de se limitar à transmissão de informações tecnológicas preexistentes. Consoante as lições de Alberto Xavier, “pode-se concluir que os traços distintivos da convenção de know-how vis a vis do contrato de prestação de serviços são os seguintes: (i) tem por objeto a transmissão de informações, conhecimentos ou experiências próprias não divulgadas; (ii) o transmitente não intervém na aplicação da tecnologia cedida, de tal modo que a aplicação das informações pelo cessionário se efetua por conta própria; (iii) o transmitente não garante o resultado de tecnologia cedida; (iv) a remuneração da tecnologia não se baseia no custo demonstrado em função de horas de trabalho, mas é fixada por critérios relacionados com o faturamento, a produção ou o lucro”.[v]

O autor exemplifica como serviço sem transferência de tecnologia a elaboração de programa de informática adaptável às necessidades específicas do tomador de serviço. Semelhante serviço foi objeto da Solução de Consulta nº 3/2007. No caso, o serviço foi afastado do conceito de royalties, assim como defende a doutrina; no entanto, ao se qualificar como ‘rendimentos de assistência técnica e serviços técnicos’, afastou-se também qualquer aplicação da norma convencional: “caracterizam remuneração por serviços prestados, sendo incabível a aplicação da regra especial que atinge os royalties, sendo-lhe aplicável a lei interna brasileira”.

É comum, contudo, os rendimentos de serviços técnicos e de assistência técnica se considerarem abrangidos no conceito de royalties, por disposição expressa dos Protocolos anexos, que estabelecem Métodos de Aplicação da Convenção. É o que ocorre, por exemplo, nas Convenções celebradas com Canadá, Chile, China, Portugal e Noruega. A mera previsão não parece bastante, note-se bem. Para serem considerados royalties,a atividade tem que estar diretamente relacionada ao contrato de transferência de tecnologia, sendo o serviço técnico meramente instrumental à transmissão da informação nodal. A desconsideração da previsão em Protocolo se exemplifica na Solução de Consulta 150/2001, segundo a qual “as remessas como contraprestação por serviços técnicos sem transferência de tecnologia, feitas a beneficiária domiciliada em país com o qual o Brasil mantenha tratado para evitar a dupla tributação, enquadram-se na rubrica ‘outras rendas’, submetendo-se à tributação firmada pela legislação doméstica”. Novamente, a Receita Federal, ao afastar o enquadramento como royalties¸ condena os serviços técnicos e de assistência técnica, sem transferência de tecnologia, à vala comum dos rendimentos não expressamente mencionados.

Tal entendimento foi positivado no Ato Declaratório Normativo COSIT nº 01/2000. A norma, aplicável à generalidade das Convenções, é intensamente criticada pela doutrina por resultar na dupla-tributação desse rendimento.

Apesar da normatização desse entendimento, em 2006, a Receita editou o Ato Declaratório Interpretativo nº 04, que, embora se aplique apenas à Convenção Brasil-Espanha, traz regramento bastante inovador. Estabelece em seu artigo 3º que não se aplica, em nenhuma hipótese, o art. 22 da Convenção (“Rendimentos não expressamente mencionados”) aos serviços técnicos prestados por uma empresa de um Estado contratante no outro Estado contratante. O ADI suscita a possibilidade de serviços técnicos serem classificados como “profissões independentes”, o que reduziria o âmbito de aplicação do art. 7º da Convenção (“Lucros das empresas”).

A alusão a “profissões independentes” merece destaque. O artigo 14, a que geralmente corresponde tal rubrica, foi excluído do Modelo da OCDE em 29.04.2000 por não haver diferenças substanciais entre “serviços profissionais independentes” e “lucros de empresas”. Conforme divulgado pela OCDE no ‘Comentário ao Artigo 14 Relativo à Tributação de Serviços Pessoais Independentes’, o efeito da supressão do artigo 14 é que os rendimentos derivados de serviços profissionais ou de outras atividades de caráter independente são agora tratados no âmbito do Artigo 7 como os lucros das empresas[vi]. No mesmo sentido, entende Heleno Torres, que considera as disposições do artigo 14 análogas àquelas a que estão sujeitos os lucros das empresas e assentarem, de fato, nos mesmos princípios que servem de base ao art. 7º[vii].

Talvez por as Convenções frequentemente preverem que tais rendimentos serão tributáveis pelo Estado do tomador do serviço na hipótese de o pagamento ser devido por pessoa jurídica residente, talvez apenas por as disposições da OCDE não vincularem o Brasil, há exemplos recentes do enquadramento de serviços sem transferência de tecnologia nessa categoria – Soluções de Consulta nº 90/2010 e 85/2006 – que continua sendo inserida nas mais novas Convenções firmadas pelo Brasil.

Por sua vez, a subsunção do rendimento decorrente da prestação de serviços sem transferência de tecnologia à hipótese de “lucros de empresas”, que afasta a competência tributária do Estado do tomador do serviço, vem sendo defendida pela maioria da doutrina. Consoante defende Alberto Xavier, por o fenômeno ter natureza substancialmente idêntica à de uma importação de bens ou mercadorias, (…) os preços de venda de mercadorias e serviços constituem ‘rendimentos de empresa’ ou ‘rendimentos comerciais’, que só devem ser tributados de forma ‘sintética’ no país de domicilio do vendedor (salvo se este agir em outro país através de um estabelecimento permanente).[viii] Não é esse, no entanto, o entendimento que vem prevalecendo nos tribunais ou na esfera administrativa[ix]. Ao menos, não era.

Em decisão recente, a Segunda Turma do STJ entendeu que o rendimento decorrente da prestação de serviço por empresa não-residente não se sujeita à incidência de imposto de renda, quando amparado por Convenção para Evitar a Bitributação, por se inserir em “lucro das empresas”. Prevaleceu, para regozijo do empresariado brasileiro, o entendimento de que as Convenções não se referem a lucro real ou similar, mas a lucro, de modo abrangente. Ao incluir toda receita ou rendimento que o integra conceitualmente, a rubrica alcança o valor recebido por serviços, que é parte da receita operacional da empresa, “do contrário, não haveria materialidade possível sobre a qual incidir o dispositivo”.

A valiosíssima contribuição dos membros do Superior Tribunal de Justiça para a efetividade das Convenções não se esgota, no entanto, na interpretação dada ao rendimento “lucros das empresas”, como declarado. Deve-se acrescentar, ainda, o possível deslinde de outra controvérsia: a prevalência dos tratados sobre a legislação interna. Ao contrário da tese que tem prevalecido na jurisprudência, no recente acórdão reconheceu-se que a norma internacional impõe uma revogação funcional à legislação interna, em razão do critério da especialidade. Nas palavras do relator, o que ocorre é mera limitação da eficácia normativa: a norma interna perde a sua aplicabilidade naquele caso especifico, mas não perde a sua existência ou validade em relação ao sistema normativo interno.

Não se trata da superioridade hierárquica dos tratados internacionais em relação à lei ordinária, defendida ousadamente pelo Ministro Gilmar Ferreira Mendes, em 31.08.2011, por ocasião do julgamento do RE 460320/PR, ainda não concluído, mas atende aos mesmos anseios, sustentando-se igualmente no artigo 98 do Código Tributário Nacional. Procura-se evitar o afastamento oportunista da incidência de normas internacionais tributárias por meio de legislação ordinária, artifício ainda menos sofisticado que o enquadramento leviano de rendimentos na categoria residual das Convenções. Isso porque descumprimento unilateral dos acordos (treaty override) fere princípios internacionais fixados pela Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, com as exigências de cooperação, boa-fé, segurança e estabilidade.

Verifica-se, assim, à luz do precedente do Superior Tribunal de Justiça, uma forte tendência de se reverter a jurisprudência atual, que, tão temerosa do planejamento fiscal elisivo, compromete a efetividade das Convenções Internacionais para Evitar a Bitributação, trazendo profunda insegurança ao ordenamento jurídico. Diante da inegável expansão das operações transnacionais, a novidade é recebida como esperança de bonança a impulsionar o desempenho econômico nacional.



[i] RE nº 1.161.467/RS, Segunda Turma. Relator Min. Castro Meira. DJe: 01.06.2012

[ii] Respectivamente, aprovadas por meio dos Decretos Legislativos 92/75 e 28/85 e internalizadas em nosso ordenamento jurídico pelos Decretos 76.988/76 e 92.318/86. O Acordo Brasil-Alemanha deixou de ter vigência em 1º de janeiro de 2006, em virtude de sua denúncia, não se aplicando aos fatos geradores ocorridos a partir de então, conforme Ato Declaratório Executivo SRF nº 72/2005.

[iii] Article 21 OTHER INCOME 1.Items of income of a resident of a Contracting State, wherever arising, not dealt with in the foregoing Articles of this Convention shall be taxable only in that State.

[iv] Por todos: Artigo 22 da Convenção Brasil-México, internalizada pelo Decreto nº 6.000/2006.

[v] Xavier, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. Editora Forense. Rio de Janeiro, 2011. Pp 618-625

[vi]Commentary on Article 14 Concerning The Taxation of Independent Personal Services – Article 14 was deleted from the Model Tax Convention on 29 April 2000 on the basis of rhe report entitled Issues Related to Article 14 of the OECD Model Tax Convention  (…). That decision reflected the fact that there were no intended differences between the concept of permanent establishment, as used in Article 7, and fixed base, as used in Article 14, or between how profits were computed and tax was calculated according to which of Article 7 or 14 applied. In addiction, it was not always clear which activities fell within Article 14 as opposed to Article 7. The effect of the deletion of Article 14 is that income derived from professional services or other activities of an independent character is now dealt with under Artcicle 7 as business profits”. Comentários, 2008, disponível em www.oecd.org.

[vii] TORRES, Heleno. Pluritributação Internacional sobre as Rendas de Empresas. 2ª Edição. Ed. Revista dos Tribunais. São Paulo, 2001. Pp.  516.

[viii] Xavier, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. Editora Forense. Rio de Janeiro, 2011. Pp 566-569.

[ix] No mesmo sentido: Solução de Consulta nº 69, de 15 de Agosto de 2006,Solução de Consulta nº 12 de 14 de Abril de 2003, Solução de Consulta nº 136, de 13 de Abril de 2004, e Solução de Consulta nº 150, de 05 de Junho de 2001; AC 20045101003852-0/RJ, Relator Desembargador Federal José Antonio Lisboa Neiva, TRF2, Terceira Turma Especializada, DJ 06.11.2009 e AMS 200451030009770, Desembargador Federal Alberto Nogueira, TRF2 – 4ª Turma Especializada, E-DJF2R, data 20/07/2010.

 

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