ICMS em operações interestaduais de bens destinados a emprego em atividade não sujeita ao imposto – repercussões e consequências do entendimento do Estado de São Paulo, conforme a Decisão Normativa CAT n. 01/2013

 por Julio M. de Oliveira
Mestre e Doutor em Direito Tributário pela PUC/SP. Ex-Juiz do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo. Professor nos cursos de Direito Tributário do IBET, COGEAE (PUC/SP) e da GVLaw. Advogado em São Paulo
 por André Luiz dos Santos Pereira

Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo
Advogado em São Paulo. Membro do IBDT

 

1. Introdução 

Em 14/06/2013, foi publicada no Diário Oficial a Decisão Normativa da Coordenadoria da Administração Tributária da Secretaria de Fazenda do Estado de São Paulo (“CAT”) nº 1, de 13/06/2013, explicitando o entendimento da Administração Tributária do Estado de São Paulo a respeito das alíquotas do ICMS incidentes em operações interestaduais com bens destinados a emprego em atividade não sujeita ao imposto, no caso de contribuintes com “atividades mistas” (desenvolvimento de atividades sujeitas tanto ao ICMS quanto não sujeitas a esse imposto).

 Segundo a referida Decisão Normativa, as alíquotas aplicáveis nas operações interestaduais de aquisição de mercadorias por contribuinte nessas condições deverá ser (a) a interna da Unidade da Federação do remetente da mercadoria, relativamente aos bens adquiridos para serem utilizados em atividades não sujeitas ao ICMS, e (b) a interestadual, relativamente à aquisição de mercadorias para utilização em atividade sujeita ao imposto.

 Relativamente aos procedimentos a serem adotados, a Decisão Normativa recomendou que os contribuintes paulistas solicitem aos seus fornecedores que segreguem as remessas, conforme a destinação a ser empregada aos bens. E, na eventualidade de “movimentação entre os estoques do sujeito passivo”, deveriam ser adotados os seguintes procedimentos:

 (I)              bens adquiridos para serem utilizados em atividade não sujeita ao ICMS, posteriormente destinada a atividades sujeitas a esse imposto: o contribuinte poderá se creditar do ICMS correspondente a essa entrada, limitado à aplicação da alíquota interestadual; e

 (II)             bens adquiridos para serem utilizados em atividade sujeita ao ICMS, posteriormente destinada a atividades não sujeitas a esse imposto: o contribuinte deverá estornar o crédito porventura escriturado quando da entrada no estabelecimento, não devendo recolher o diferencial de alíquotas.

 Feitas essas breves considerações gerais a respeito das novas disposições trazidas pela referida Decisão Normativa, passamos abaixo a tecer algumas considerações a respeito da juridicidade do entendimento nela veiculado, apontando, ainda, algumas consequências de ordem prática decorrentes de sua aplicação.

 2. As alíquotas do ICMS nas operações interestaduais

 Uma primeira controvérsia em relação à referida Decisão Normativa diz respeito à sua própria validade jurídica. A controvérsia consistiria em determinar se a interpretação nela veiculada se ajusta ou não à previsão constitucional de incidência das alíquotas nas operações interestaduais.

 De acordo com a disciplina atinente à repartição do ICMS nas operações interestaduais, a Constituição Federal (art. 155, §2º, VII e VIII)[1] adotou o seguinte modelo: quando as operações destinarem mercadorias a consumidor final, será adotada a alíquota interestadual, se o adquirente for contribuinte do imposto, e a alíquota interna, quando o adquirente não o seja, recolhendo-se o tributo em favor da Unidade da Federação de origem, cabendo ao Estado (ou Distrito Federal) de destino o ICMS correspondente à diferença entre as alíquotas interna e interestadual (quando se tratar de adquirente final que seja contribuinte do imposto). Ora, no caso de contribuintes com atividades mistas, a alíquota da operação interestadual seria determinada a partir da condição jurídica do adquirente (consumidor final contribuinte do ICMS) ou da destinação a ser dada?

 Pela inconstitucionalidade da Decisão Normativa CAT nº 1/2013, poder-se-ia afirmar que as alíneas “a” e “b” do inciso VII do §2º do art. 155 da Constituição Federal adotam como critério para determinação da alíquota aplicável um fator estritamente subjetivo: ser contribuinte ou não do ICMS. Sob essa perspectiva, um consumidor final que exerce atividades mistas (algumas sujeitas ao imposto estadual e outras não) é um contribuinte do ICMS, de modo que descaberia a criação de um “terceiro gênero” (baseado em um critério “finalístico” – o uso do bem) não previsto constitucionalmente.

 Ainda se poderia sustentar a validade deste entendimento com base em um apelo de origem “federativa”, ao fundamento de melhor promover a redistribuição da arrecadação do ICMS entre as Unidades da Federação[2]. Acolhendo esse entendimento citamos decisão do STJ no Recurso em Mandado de Segurança nº 24.552-MT (Rel. Min. ELIANA CALMON, 2ª Turma, DJ 17/08/2010), no qual se concluiu que o contribuinte que exerce atividades mistas deve se sujeitar ao pagamento do diferencial de alíquotas (e, portanto, à alíquota interestadual do ICMS).

 Por outro lado, em favor da referida Decisão Normativa, poder-se-ia sustentar que as empresas com atividades mistas sofreriam tratamento tributário isonômico (art. 150, II, da Constituição Federal), quando atuassem como não-contribuintes do ICMS. Com efeito, quando adquirentes de mercadorias para prestação de serviços, por exemplo, essas empresas teriam tratamento fiscal semelhante a empresas exclusivamente prestadoras, sujeitando-se ao regime jurídico aplicável aos contribuintes do ICMS quando adquirissem bens para esta finalidade.

 Seja como for, a questão nos parece relativamente polêmica, não estando descartada a possibilidade de questionamentos judiciais relativamente a essa matéria. Sob essa ponderação, passamos abaixo a indicar algumas das possíveis repercussões decorrentes da referida Decisão Normativa.

 3. Dos possíveis desdobramentos da aplicação da Decisão Normativa CAT nº 1/2013

 O primeiro questionamento que nos vem à mente diz respeito à aplicação dessa Decisão Normativa aos fatos geradores ocorridos antes de seu advento, o que poderia ensejar, em tese, tanto a exigência do ICMS pela alíquota interna por parte das Unidades da Federação dos remetentes das mercadorias quanto a pretensa restituição do ICMS por quem eventualmente tenha recolhido o “diferencial de alíquotas”.

 Embora haja o registro de outras hipóteses em que interpretações veiculadas por meio de Decisões Normativas da CAT tenham sido aplicadas retroativamente – inclusive para apenar contribuintes[3] – somos da opinião de que a Decisão Normativa CAT nº 1/2013 promove uma mudança de paradigma normativo, diante da existência de interpretações diversas adotadas pela Administração Tributária.

 Com efeito, o preâmbulo da Decisão Normativa CAT nº 1/2013 cita, como fundamento, a Resposta à Consulta nº 271/2010, que apreciou questão envolvendo contribuinte que promove recondicionamento e recauchutagem de pneus (promovendo industrialização e prestação de serviços), determinando-se a adoção da solução constante da aludida Decisão Normativa. Anteriormente, porém, a SEFAZ/SP já houvera respondido – em 2010 – uma consulta envolvendo empresa que promovia reforma de pneumáticos usados, concluindo que “como contribuinte do ICMS, no que se refere à aquisição interestaduais de mercadoria destinada à utilização em prestação de serviço inerente exclusivamente ao imposto municipal (Imposto Sobre Serviço de Qualquer Natureza – ISSQN), a Consulente deverá submeter-se ao recolhimento do diferencial de alíquota, nos moldes previstos pelos artigos 2º, inciso VI e § 5º, e 117 do RICMS/2000”[4]. Isso torna, ao nosso sentir, imperiosa a observância do art. 146 do Código Tributário Nacional, por representar uma modificação dos critérios jurídicos norteadores do lançamento por homologação[5], não havendo que se falar em exigência do ICMS em desfavor do sujeito passivo pelo Estado de São Paulo, ainda que eventualmente possa ensejar a restituição em favor do contribuinte quando ao “diferencial de alíquotas”.

 Dúvidas remanesceriam quanto à compatibilização deste entendimento com o disposto no art. 117 do RICMS/SP, que prevê o pagamento do diferencial de alíquotas “em caso de entrada, real ou simbólica, de mercadoria oriunda de outro Estado, destinada a uso, consumo ou integração no ativo imobilizado, ou de utilização de serviço cuja prestação se tiver iniciado fora do território paulista e não estiver vinculada a operação ou prestação subseqüente alcançada pela incidência do imposto”.

 Segundo nos parece, o contribuinte que adquirir bens para seu ativo imobilizado para uso em sua atividade (hipótese em que poderá aproveitar os respectivos créditos) ainda deverá adotar a alíquota interestadual, recolhendo o diferencial de alíquotas. A Decisão Normativa CAT nº 1/2013, cabe frisar, somente terá aplicação na aquisição de bens utilizados em atividades não sujeitas ao ICMS. Este ponto exigirá muitas cautelas do contribuinte, mormente porque a falta de pagamento do “diferencial de alíquotas” é apenada com multa de 150% sobre o valor básico atualizado do tributo inadimplido (art. 527, I, “l”, do RICMS/SP).

 Considerando a particularidade de que esta interpretação também será adotada pelo Estado de São Paulo em relação às remessas de bens a destinatários localizados em outras Unidades da Federação, não descartamos a possibilidade de divergências de interpretação por parte das autoridades fiscais em que domiciliado o destinatário das mercadorias. Uma consequência de ordem prática seria a exigência do diferencial de alíquotas em face dos adquirentes das mercadorias, já onerados com a tributação da operação pela alíquota interna do Estado de São Paulo, o que recomendaria uma definição desse entendimento em âmbito nacional.

 Por fim, um aspecto também relevante diz respeito à eventual ausência de discriminação das informações por parte do remetente das mercadorias, em decorrência de orientações conflitantes porventura exaradas pela Unidade da Federação de domicílio do fornecedor. Em casos tais, entendemos que o contribuinte paulista deverá se acautelar de outros meios de prova de que (a) solicitou ao fornecedor os pertinentes ajustes na documentação e (b) que, efetivamente, não utilizou os bens em atividades tributadas pelo ICMS.



[1] “Art. 155. (…) VII – em relação às operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final localizado em outro Estado, adotar-se-á: a) a alíquota interestadual, quando o destinatário for contribuinte do imposto; b) a alíquota interna, quando o destinatário não for contribuinte dele; VIII – na hipótese da alínea “a” do inciso anterior, caberá ao Estado da localização do destinatário o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual; (…)”

[2] Para maiores considerações a respeito do federalismo fiscal nas relações horizontais entre Estados-membro, especialmente no ICMS, vide TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário, vol. IV, Rio de Janeiro, Renovar: 2007, p. 237 e ss.

[3] Citamos, a respeito, a Decisão Normativa CAT nº 3/2009, relativamente à cobrança do ICMS nas operações de importação por conta e ordem de terceiros.

[4] Resposta à Consulta nº 301/2010, de 20 de setembro de 2010.

[5] No tocante à aplicação do art. 146 do CTN ao lançamento por homologação, e sua relação com o princípio da segurança jurídica, recomendamos a leitura de DERZI, Misabel Abreu Machado (Modificações da Jurisprudência no Direito Tributário, São Paulo, Noeses, 2009).

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