Da irretroatividade da lei complementar nº 118/2005 e a possibilidade de revisão da orientação do STF
por Mônica Pimenta Júdice
Associada no Fraga, Bekierman & Pacheco Neto Advogados www.fblaw.com.br
O Plenário do Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, firmou entendimento no julgamento do RE nº 566.621, submetido à sistemática da repercussão geral, que o prazo para o contribuinte pleitear a repetição de indébitos tributários relativamente a tributos sujeitos a lançamento por homologação seria de 10 (dez) anos para as ações ajuizadas até 09 de junho de 2005.
O Recurso Extraordinário discute a (in) constitucionalidade da segunda parte do artigo 4º da Lei Complementar 118/2005, que determinou a aplicação retroativa do seu artigo 3º – norma que, ao interpretar o artigo 168, I, do CTN, fixou em cinco anos, desde o pagamento indevido, o prazo para o contribuinte buscar a repetição de indébitos tributários relativamente a tributos sujeitos a lançamento por homologação.
De acordo com o Informativo STF nº 634, prevaleceu o voto proferido pela Min. Ellen Gracie, relatora, que assentara a ofensa ao princípio da segurança jurídica — nos seus conteúdos de proteção da confiança e de acesso à Justiça, com suporte implícito e expresso nos artigos 1º e 5º, XXXV, da CF — e considerara válida a aplicação do novo prazo de 05 anos tão-somente às ações ajuizadas após o decurso da vacatio legis de 120 (cento e vinte dias) dias, ou seja, a partir de 09.06.2005.
Não por outra razão é que os Ministros Celso de Mello e Luiz Fux dissentiram apenas no tocante ao art. 3º da LC 118/2005 e afirmaram que ele seria aplicável aos próprios fatos (pagamento indevido) ocorridos após o término do período de vacatio legis, encampando, portanto, a mesma posição do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por ocasião do julgamento do Recurso Especial n.º 1.002.932 – SP (2007/0260001-9), submetido ao rito de recursos repetitivos.
Isso porque é evidente que este mesmo princípio impõe a aplicação da LC aos pagamentos indevidos realizados após a sua vigência e “não às ações propostas posteriormente ao referido diploma legal, posto norma referente à extinção da obrigação e não ao aspecto processual da ação” [1].
O Ementário Eletrônico do Supremo Tribunal Federal registrava, em agosto de 2003, trinta e sete decisões indexadas pela expressão “segurança jurídica”, que catalogadas por Judith Martins-Costa[2], identificou os seguintes focos de significação:
- a segurança jurídica está no fundamento do instituto da decadência;
- a segurança jurídica fundamenta o instituto da prescrição;
- a segurança jurídica fundamenta o instituto da preclusão;
- a segurança jurídica fundamenta a intangibilidade da coisa julgada;
- a segurança jurídica é o valor que sustenta a figura dos direitos adquiridos;
- a segurança é o valor que sustenta o princípio do respeito ao ato jurídico perfeito;
- a segurança jurídica está na base da inalterabilidade, por ato unilateral da Administração, de certas situações jurídicas subjetivas previamente definidas em ato administrativo;
- a segurança jurídica está na ratio da adstrição às formas processuais;
- a segurança jurídica está na ratio do princípio da irretroatividade da lei, quando gravosa ao status libertatis das pessoas ou afrontosa às situações mais favoráveis, consolidadas pelo tempo ou resguardadas pela lei.
Da mesma forma sugerida na letra (i), o princípio da segurança jurídica no caso em questão terá por escopo o próprio princípio da irretroatividade da lei.
De fato, o artigo 3º da Lei Complementar nº 118/2005 cria direito novo, “não configurando lei meramente interpretativa, cuja retroação é permitida” [3], consoante apregoa doutrina abalizada, trazida no bojo do Recurso Especial n.º 1.002.932 – SP (2007/0260001-9), submetido ao rito de recursos repetitivos:
“Denominam-se leis interpretativas as que têm por objeto determinar, em caso de dúvida, o sentido das leis existentes, sem introduzir disposições novas. {nota: A questão da caracterização da lei interpretativa tem sido objeto de não pequenas divergências, na doutrina. Há a corrente que exige uma declaração expressa do próprio legislador (ou do órgão de que emana a norma interpretativa), afirmando ter a lei (ou a norma jurídica, que não se apresente como lei) caráter interpretativo. Tal é o entendimento da AFFOLTER (Das intertemporale Recht, vol. 22, System des deutschen bürgerlichen Uebergangsrechts, 1903, pág. 185), julgando necessária uma Auslegungsklausel, ao qual GABBA, que cita, nesse sentido, decisão de tribunal de Parma, (…) Compreensão também de VESCOVI (Intorno alla misura dello stipendio dovuto alle maestre insegnanti nelle scuole elementari maschili, in Giurisprudenza italiana, 1904, I,I, cols. 1191, 1204) e a que adere DUGUIT , para quem nunca se deve presumir ter a lei caráter interpretativo – “os tribunais não podem reconhecer esse caráter a uma disposição legal, senão nos casos em que o legislador lho atribua expressamente” (Traité de droit constitutionnel, 3a ed., vol. 2o, 1928, pág. 280). Com o mesmo ponto de vista, o jurista pátrio PAULO DE LACERDA concede, entretanto, que seria exagero exigir que a declaração seja inseri da no corpo da própria lei não vendo motivo para desprezá-la se lançada no preâmbulo, ou feita noutra lei. Encarada a questão, do ponto de vista da lei interpretativa por determinação legal, outra indagação, que se apresenta, é saber se, manifestada a explícita declaração do legislador, dando caráter interpretativo, à lei, esta se deve reputar, por isso, interpretativa, sem possibilidade de análise, por ver se reúne requisitos intrínsecos, autorizando uma tal consideração .
(…)
… SAVIGNY coloca a questão nos seus precisos termos, ensinando: “trata-se unicamente de saber se o legislador fez, ou quis fazer uma lei interpretativa, e, não, se na opinião do juiz essa interpretação está conforme com a verdade” (System dês heutigen romischen Rechts, vol. 8o, 1849, pág. 513). Mas, não é possível dar coerência a coisas, que são de si incoerentes, não se consegue conciliar o que é inconciliável. E, desde que a chamada interpretação autêntica é realmente incompatível com o conceito, com os requisitos da verdadeira interpretação (v., supra, a nota 55 ao n° 67), não admira que se procurem torcer as conseqüências inevitáveis, fatais de tese forçada, evitando-se-lhes os perigos. Compreende-se, pois, que muitos autores não aceitem o rigor dos efeitos da imprópria interpretação. Há quem, como GABBA (Teoria delta retroattività delle leggi, 3a ed., vol. 1o, 1891, pág. 29), que invoca MAILHER DE CHASSAT (Traité de la rétroactivité des lois, vol. 1o, 1845, págs. 131 e 154), sendo seguido por LANDUCCI (Trattato storico-teorico-pratico di diritto civile francese Ed italiano, versione ampliata del Corso di diritto civile francese, secondo il metodo dello Zachariæ, di Aubry e Rau, vol. 1o e único, 1900, pág. 675) e DEGNI (L’interpretazione della legge, 2a ed., 1909, pág. 101), entenda que é de distinguir quando uma lei é declarada interpretativa, mas encerra, ao lado de artigos que apenas esclarecem, outros introduzido novidade, ou modificando dispositivos da lei interpretada. PAULO DE LACERDA (loc. cit.) reconhece ao juiz competência para verificar se a lei é, na verdade, interpretativa, mas somente quando ela própria afirme que o é. LANDUCCI (nota 7 à pág. 674 do vol. cit.) é de prudência manifesta: “Se o legislador declarou interpretativa uma lei, deve-se, certo, negar tal caráter somente em casos extremos, quando seja absurdo ligá-la com a lei interpretada , quando nem mesmo se possa considerar a mais errada interpretação imaginável. A lei interpretativa, pois, permanece tal, ainda que errônea, mas, se de modo insuperável, que suplante a mais aguda conciliação, contrastar com a lei interpretada, desmente a própria declaração legislativa. “Ademais, a doutrina do tema é pacífica no sentido de que:
“Pouco importa que o legislador, para cobrir o atentado ao direito, que comete, dê à sua lei o caráter interpretativo. É um ato de hipocrisia, que não pode cobrir uma violação flagrante do direito” (Traité de droit constitutionnel, 3ª ed., vol. 2º, 1928, págs. 274-275).” (Eduardo Espínola e Eduardo Espínola Filho, in A Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, Vol. I, 3a ed., págs. 294 a 296).
Nesse viés, a certeza da norma jurídica a ser aplicada aos fatos já realizados garantiria o passado (irretroatividade), de modo que as ações ajuizadas após a vigência da lei, cujos pagamentos foram realizados anteriormente, também deveriam ser respeitadas e incluídas no julgamento.
Não obstante, cumpre relembrar que princípios – como linhas diretivas – têm por escopo a compreensão das normas, razão pela qual seja qual for o entendimento do STF no tocante as hipóteses fáticas que não se enquadraram no RE nº 566.621 (rectius: ações ajuizadas após a vigência da lei para restituição dos dez últimos anos), caberá ao Poder Judiciário somente após decisão definitiva aplicar o decidido nas causas pendentes.
Até porque resta ainda pendente o julgamento dos embargos infringentes opostos em razão da ausência de quórum para fixação da repercussão geral, bem como o esclarecimento das “questões de ordem” suscitadas, não havendo fundamento jurídico que justifique que qualquer magistrado de piso, neste presente momento, aplique o entendimento nas causas ajuizadas posteriormente a vigência da lei.
Conclui-se, portanto, que, apesar do princípio da segurança jurídica apontar para a extensão do entendimento do STF para as ações ajuizadas após a vigência da LC nº 118/2005, deve se respeitar a ordem jurídica evitando a extinção de causas apressadamente sob a justificativa de suposto precedente da Suprema Corte Brasileira (relembre-se, contrária a Corte de Justiça Brasileira) que sequer transitou em julgado. Daí, atendida a função do sistema jurídico: a estabilização de expectativas.
[1]Recurso Especial n.º 1.002.932 – SP.
[2] Texto integrante de obra coletiva em homenagem ao Professor Almiro do Couto e Silva, sob a coordenação do Professor Humberto B. Ávila, com o título Almiro do Couto e Silva e a Re-significação do Princípio da Segurança Jurídica na Relação entre o Estado e os Cidadãos (a segurança como crédito de confiança).
[3]Recurso Especial n.º 1.002.932 – SP.