A tributação dos lucros de controladas e coligadas no exterior – julgamento no STF e tratados internacionais
por José Roberto Pisani
Sócio da área tributária do escritório Pinheiro Neto Advogados. Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo e especialista em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
por Diego Caldas R. De Simone
Associado da área tributária do escritório Pinheiro Neto Advogados. Graduado pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Mestre em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Doutorando em Direito Tributário e Financeiro pela Universidade de Barcelona.
I. INTRODUÇÃO
O artigo 74 da Medida Provisória nº 2.158-35/01 (“MP nº 2.158-35/01”) prevê que os lucros auferidos por controlada ou coligada no exterior serão considerados disponibilizados para a controladora ou coligada no Brasil na data do balanço em que tiverem sido apurados. Desde a sua publicação, esta disposição legal tem gerado discussões acaloradas no meio jurídico brasileiro.
A doutrina pátria se debruçou à exaustão sobre tal dispositivo com o intuito de discutir a sua duvidosa constitucionalidade, na medida em que implica indevida e inaceitável tributação pelo IR e pela CSL sem que haja a efetiva distribuição dos lucros auferidos por controlada ou coligada no exterior à controladora no Brasil e, portanto, sem a ocorrência do fato gerador destes tributos.
Por outro lado, vale lembrar que se encontra em trâmite no STF a ADI n.º 2.588, ajuizada pela Confederação Nacional da Indústria para questionar a constitucionalidade deste dispositivo. Até o presente momento, foram proferidos nove votos no STF, sendo que quatro Ministros votaram pela improcedência da ação e quatro pela sua procedência, enquanto a relatora (Ministra Ellen Gracie), votou pela procedência parcial. O resultado do julgamento seria definido, em tese, pelo voto do Ministro Joaquim Barbosa.[1]
Não obstante, considerando que o voto do Ministro Joaquim Barbosa poderia empatar o julgamento e provocar indefinição quanto a questão sub judice, bem como que parte significativa da atual composição do Tribunal não votou nesse julgamento, é possível que o STF reinicie o julgamento da questão em outro caso.
Nesse sentido, vale notar que, recentemente e mesmo na pendência do julgamento definitivo da ADI acima mencionada, o STF reconheceu a repercussão geral do RE nº 611.586, sinalizando que o tema poderá ser novamente discutido pela Corte. A conclusão sobre a constitucionalidade do dispositivo, portanto, segue em aberto.
II. INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 74 DA MP 2158-35/01
Conforme exaustivamente apontado pela doutrina majoritária, o artigo 74 da MP nº 2.158-35/01 determina a tributação pelo IRPJ e pela CSL de valores que, como ainda não foram disponibilizados, não são renda ou lucro da pessoa jurídica brasileira, em violação aos artigos 153, III e 195, I, “c”, da Constituição Federal e aos artigos 43 e 44 do Código Tributário Nacional (“CTN”), que definem o fato gerador destes tributos.
Os defensores da tese de que o artigo 74 da MP nº 2.158-35/01 é válido, por outro lado, entendem que a determinação presuntiva do momento de disponibilização encontraria guarida no § 2º do artigo 43 do CTN, introduzido pela LC 104/01.
Nada mais descabido. O pressuposto da incidência tributária na hipótese de que ora se cuida é que haja DISPONIBILIDADE, o que evidentemente somente ocorre com o ato de direito privado da controlada ou coligada no exterior que determine a distribuição dos lucros para a controladora brasileira.
Deve-se observar que o legislador complementar, ao adicionar o § 2º ao artigo 43 do CTN, em momento algum pretendeu outorgar à lei ordinária competência para dizer quando há ou não a disponibilidade de renda, mesmo porque, se assim procedesse, estaria dispondo de competência constitucional que não detém.
A faculdade concedida ao legislador ordinário pelo §2º do artigo 43 para estabelecer o momento em que se consideram disponibilizados os lucros apurados por sociedades controladas estrangeiras é limitada pelo caput à existência de rendimento disponível. Assim, é totalmente descabido declarar que o IR/CSL são devidos no Brasil quando os lucros são tão-somente retratados no balanço, uma vez que tal fato não implica, sob qualquer perspectiva, disponibilização de renda.
A disponibilização é evento futuro e incerto, que depende da deliberação dos sócios ou acionistas da empresa sediada no exterior que produziu o lucro, razão pela qual a mera apuração de lucros pelas controladas não pode ser considerada como hipótese de disponibilização, seja jurídica ou econômica, em favor da controladora.
É preciso diferenciar o poder de decidir do efetivo exercício desse poder. A doutrina pátria vem advertindo para essa distinção e afirmando que apenas o efetivo exercício do poder de decisão é que tem o condão de caracterizar a disponibilização dos lucros para efeitos de tributação da renda no Brasil: “disponibilidade jurídica sobre a renda não é o poder de decidir adquirir o direito à renda; é ter o direito à renda por ter exercido o poder de decidir, mesmo sem ter disponibilidade econômica pelo acesso atual e direto a ela” [2].
Nesse exato sentido, aliás, o Supremo Tribunal Federal decidiu, ao julgar a inconstitucionalidade do ILL no RE 172.058-1/SC, que os lucros apurados por controlada ou coligada no exterior somente podem ser tributados pelo IRPJ e pela CSL quando efetivamente distribuídos/percebidos pela matriz, controladora ou coligada no Brasil.
Em síntese, os lucros auferidos por controlada no exterior serão computados na base de cálculo do IRPJ e da CSL da controladora no Brasil na data do balanço no qual tiverem sido apurados se (e somente se) tiverem sido disponibilizados no mesmo ano-calendário da sua geração. Do contrário, havendo simples apuração de lucros sem que haja a respectiva disponibilização, não haverá renda tributável.
III. (IN)DISPONIBILIDADE JURÍDICA E EQUIVALÊNCIA PATRIMONIAL
Outro aspecto que tem sido levantado em prol da validade do artigo 74 da MP nº 2.158-35/01 se refere à adoção do método de avaliação de investimentos pela equivalência patrimonial, como se tal método contábil fosse suficiente para repercutir no patrimônio da controladora de tal forma a configurar a aquisição de disponibilidade jurídica ou econômica da renda.
Esta interpretação foi influenciada pelo voto do então Ministro Nelson Jobim na ADI 2.588 que, defendendo a constitucionalidade do artigo 74 da MP nº 2.158-35/01, entendeu que o lucro auferido no exterior por empresa controlada ou coligada, refletido no balanço da investidora brasileira em função da adoção do método de equivalência, representaria acréscimo patrimonial imediato à controladora, independentemente de sua distribuição.
A adoção deste método de avaliação contábil, no entanto, não altera o momento de tributação para efeitos de incidência do IRPJ e da CSL, que somente ocorrerá por ocasião da disponibilização dos lucros no exterior para a controladora no Brasil, quando se verificará a “disponibilidade jurídica ou econômica” da renda.
O lucro retratado no balanço da pessoa jurídica investidora por equivalência patrimonial não pode ser considerado disponibilizado no país uma vez que tal método, entre outros motivos, (i) é mero critério contábil de avaliação do valor de investimento (art. 248 da Lei nº 6.404/76 e artigo 25, § 6º, da Lei nº 9.249/95); (ii) não representa direito adquirido sobre os lucros da controlada ou coligada; e (iii) não é definitivo, revelando por antecipação mera expectativa de direito, já que os acréscimos ou diminuições do valor do patrimônio líquido das investidas são meramente potenciais e variáveis. Tal método de avaliação de investimento, portanto, não pode ter o efeito de provocar ou antecipar a ocorrência do fato gerador. Inexistem, pois, reflexos tributários advindos da sua adoção.
Aliás, maiores dúvidas não deveriam existir a esse respeito, uma vez que a legislação em vigor prevê expressamente que os resultados da avaliação de investimentos no exterior pelo método de equivalência patrimonial não devem ser computados na determinação do lucro real (artigo 25, § 6º, da Lei nº 9.249/95 c/c artigo 23, § único, do Decreto-Lei nº. 1.598/77, na redação dada pelo Decreto-Lei nº. 1648/78).
IV. TRATADOS INTERNACIONAIS E O ARTIGO 74 DA MP 2158-35/01
Em que pese a inconstitucionalidade e ilegalidade do artigo 74 da MP nº 2.158-35/01, caso tal disposição venha a ser julgada constitucional pelo Tribunal Supremo, ainda ficará pendente de análise a sua constitucionalidade/legalidade face aos Tratados Internacionais para Evitar a Dupla Tributação firmados pelo Brasil com diversos países, circunstância que não é objeto da ADI nº 2.588 nem do leading case em relação ao qual foi recentemente reconhecida a repercussão geral pelo STF.
A esse respeito, é importante notar que os lucros acumulados no exterior por sociedades situadas em países que celebraram tratados internacionais para evitar a bitributação com o Brasil não podem ser tributados pela empresa brasileira, na medida em que tais tratados, em sua maioria celebrados de acordo com o modelo da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (“OCDE”), estabelecem que os lucros devem ser tributados no Estado de domicílio da empresa que os gerou, exceto se esta exercer atividades no outro Estado Contratante (i.e., no Brasil) por meio de um estabelecimento permanente (artigo 7º do modelo OCDE).
Não obstante, a par da clareza da regra do artigo 7º, as autoridades fiscais brasileiras têm tentado argumentar que os Tratados Internacionais não podem ser aplicados ao presente caso, na medida em que a legislação brasileira não estaria tributando o lucro da empresa estrangeira, mas sim o lucro (resultado de equivalência) do contribuinte controlador no Brasil.
Porém, à toda evidência, o que o artigo 74 da MP nº 2.158-35/01 busca tributar não é o lucro da controladora ou o resultado de equivalência patrimonial (que, como vimos, é expressamente declarado como não tributado pela legislação de regência), mas sim o lucro da empresa estrangeira. Tanto é assim que o artigo 25, § 2º, II, da Lei nº 9.249/95 manda adicionar ao lucro líquido da controladora no Brasil o lucro apurado pela sociedade estrangeira.
Assim, a sistemática prevista pelo artigo 74 da MP 2.158-35/01 acaba por tributar rendimentos da empresa estrangeira que ainda não foram distribuídos à empresa brasileira e, por tal motivo, viola claramente o artigo 7º do modelo OCDE. Vale recordar, por oportuno, que as disposições dos Tratados Internacionais firmados pelo Brasil deverão prevalecer sobre a legislação interna (RE 460.320/PR).
Finalmente, a discussão em relação à prevalência dos Tratados sobre o disposto no artigo 74 da MP 2.158-35/2001 poderá ser reforçada dependendo do país onde esteja estabelecida a empresa estrangeira controlada ou coligada. Isto porque alguns tratados prevêem (i) que o Estado de residência do sócio ou acionista não está autorizado a tributar lucros não distribuídos (e.g. Dinamarca); ou (ii) a isenção da distribuição de dividendos (e.g. Áustria). Num ou noutro caso, inaplicáveis serão as disposições da legislação interna, seja pela aplicação do artigo 7º, seja pela aplicação dos dispositivos específicos que vedam a tributação sem distribuição ou que isentam a distribuição de dividendos.
[1]Gilmar Mendes, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Luiz Fux e Rosa Weber não votaram. O primeiro por estar impedido, os demais, por sucederem os que já se pronunciaram no caso.
[2]ÀVILA, Humberto. Indisponibilidade Jurídica da renda por poder de decisão ou por reflexo patrimonial. Revista Fórum de Direito Tributário – RFDT, Belo Horizonte, n. 53, p. 9-23, set/out. 2011.