A Proposta de Declaração Obrigatória de Planejamentos Fiscais: Compatibilidade com o Projeto BEPS e com a Legislação Brasileira

por João Henrique Salgado Nobrega
Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo – USP
Master of Laws (LL.M.) in International Tax Lax pela Leiden Universiteit – Holanda
Advogado do Stocche Forbes Advogados
Renato Souza Coelho
Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP e em Economia pela Faculdade de Economia
Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo – FEA-USP
Pós-graduado direito tributário pela PUC-SP
Master of Laws (LL.M.) in International Tax Lax pela Leiden Universiteit – Holanda
Membro do  Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT)
Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) e International Fiscal Association (IFA)
Professor da FGV-SP e do Instituto Educacional BMF&BOVESPA, no curso de tributação no mercado financeiro
Advogado do Stocche Forbes Advogados

 

1. INTRODUÇÃO

Publicada em 22 de agosto de 2016, a Medida Provisória nº 685 (“MP 685/15”) instituiu, em seu artigo 7º e seguintes, a obrigatoriedade de apresentação de declaração de planejamentos fiscais (“Declaração”). Desde que o texto em questão venha a ser convertido em lei, contribuintes que praticarem conjunto de operações que acarretarem supressão, redução ou diferimento de tributos, quando incorrerem em hipótese prevista pela própria medida e/ou por posterior regulamentação, deverão fornecer à Secretaria da Receita Federal do Brasil (“RFB”) detalhes dos respectivos atos ou negócios jurídicos praticados. 

Proposta pelo Ministério da Fazenda, a medida teria o objetivo de instruir a administração tributária com informação tempestiva a respeito dos planejamentos tributários praticados pelo contribuinte, possibilitando assim resposta rápida aos riscos de perda de arrecadação tributária por meio de fiscalização ou de mudança na legislação; bem como conferir segurança jurídica à empresa que revela a operação. Conforme detalhado na exposição de motivos apresentada à Presidência da República,[1] a iniciativa seria uma resposta a recomendações emitidas no “Plano de Ações para o Combate à Erosão da Base Tributária e à Transferência de Lucros”,[2] publicado pela Organização para Cooperação de Desenvolvimento Econômico (Organisation for Economic Co-operation and Development – “OECD”) no âmbito do Projeto BEPS. 

Tão logo publicada, a MP 685/15 desencadeou grande debate, não só entre os estudiosos do Direito Tributário, mas também entre o público em geral. Nesse contexto, o presente estudo tem o objetivo de realizar uma breve análise de alguns pontos específicos da norma em questão, levando em consideração sua compatibilidade com o Projeto BEPS e com a legislação brasileira, mas sem a pretensão de esgotar a discussão jurídica envolvendo a medida. 

2. CONTEXTO INTERNACIONAL: O PROJETO BEPS

Existe hoje o consenso na comunidade internacional de que as regras domésticas relativas à tributação internacional, bem como os princípios que norteiam as normas internacionais sobre o tema, não foram capazes de acompanhar as mudanças decorrentes da acelerada integração econômica ocorrida entre os países nos últimos anos. Diante de tal conclusão, com o objetivo de se desenhar medidas capazes compatibilizar as regras domésticas de tributação com as atuais práticas comerciais, bem como coibir o abuso das normas tributárias atualmente vigentes, em encontro realizado em 2012, o G20 solicitou à OECD[3] a elaboração de relatório sobre os principais avanços dos trabalhos relacionados ao tema em questão, para que suas conclusões e sugestões fossem discutidas pelo grupo no ano seguinte. Tal iniciativa passou a ser conhecida internacionalmente por “Projeto BEPS”. 

Atendendo a tal pedido, a OCDE publicou estudo intitulado “Combate à Erosão da Base Tributária e à Transferência de Lucros[4] (“Relatório”), por meio do qual identificou uma série de pontos de atenção a serem observados na elaboração de novas políticas fiscais. Na sequência, a entidade publicou também seu Plano, sugerindo metodologia de trabalho a ser seguida para continuidade do Projeto. 

Conforme conceitua o Relatório, entende-se por erosão da base tributária a transferência artificial de lucros tributáveis do país em que efetivamente auferidos (local em que ocorrem atividades comerciais ou investimentos) para jurisdições com nenhuma/reduzida tributação da renda. O estudo aponta ainda que, as estratégias fiscais atreladas à erosão da base costumam englobar: 

(A)        “Minimização da tributação no país de origem ou no país estrangeiro em que a empresa está implantada (em geral uma jurisdição de média a alta tributação) seja com a transferência dos lucros brutos por meio de estruturas comerciais ou com a redução dos lucros líquidos por meio da maximização das deduções ao nível do contribuinte”;
(B)    “Retenção de imposto baixa ou nula na fonte”;
(C)    “Tributação baixa ou nula ao nível do destinatário (que pode ser conseguida em jurisdições de baixa tributação, regimes preferenciais ou instrumentos híbridos) com a possibilidade de auferir lucros excepcionais consideráveis quase sempre obtidos a partir de acordos no âmbito do grupo”; e
(D)    “Nenhuma tributação corrente dos lucros com baixa tributação (obtida por via das três primeiras etapas) ao nível da  controladora final”.

Note-se, portanto, que a erosão da base fiscal e a transferência de lucros são problemas de natureza internacional. O relatório da OCDE conclui que “não é a legislação fiscal de um país em particular que cria a possibilidade de erosão da base tributária e transferência de lucros, mas sim o modo pelo qual as regras de vários países interagem entre si”. De tal forma, a elaboração de uma reforma legislativa unilateral, ou seja, sem observância dos novos padrões internacionais a serem definidos nos próximos anos, pode ter como resultado a redução da eficácia da legislação doméstica no combate à erosão da base fiscal.

Diante de tal constatação, a OECD indica ser necessária a elaboração de um plano de ação de alcance mundial, concebido rapidamente em colaboração com todas as partes interessadas, e com foco nas principais áreas críticas apontadas no Relatório.

No plano de ações divulgado, a organização estipulou um cronograma de trabalho envolvendo 15 ações prioritárias para os próximos anos, tais como o aprimoramento das regras CFC, revisão de diretrizes de preço de transferência e a elaboração de modelo de tratado multilateral. Dentre tais medidas, a Ação 12 tinha como objetivo desenvolver recomendações relativas à elaboração de normas de declaração obrigatória de planejamentos tributários agressivos ou abusivos.

Conforme indicou o próprio Plano, o trabalho seria focado “em esquemas tributários internacionais, onde se procura definir de forma abrangente o conceito de ‘benefício tributário’, que possa englobar essas transações”. De acordo com o Plano, a publicação das conclusões desse trabalho estaria prevista para setembro de 2015.

3. ACTION 12 – MANDATORY DISCLOUSURE RULES

Em 11 de maio de 2015, a OCDE divulgou versão preliminar do relatório relativo à Ação 12 – Mandatory Disclousure Rules (Minuta), submetendo seu conteúdo à consulta pública. Tendo se encerrado o período para envio de comentário, até a data de elaboração da presente análise a versão final do documento não havia sido publicada pela OECD.

De forma sumarizada, a Minuta traçou os principais objetivos dos mecanismos de mandatory disclousure, quais sejam: (a) obtenção rápida de informações a respeito de planejamentos fiscais; e (b) identificar planejamentos fiscais, seus beneficiários e colaboradores; (c) desestimular a estruturação de planejamentos tributários agressivos.

Ainda, apesar de reconhecer que, dependendo dos cenários em que inseridos, os diferentes regimes de mandatory disclousure podem trazer peculiaridades, o documento recomendou a observância de princípios comuns na elaboração de tais regras. Assim, a Minuta aponta princípios chave a serem seguidos:

(a) as regras devem ser claras e fáceis de entender;
(b) os custos de compliance relacionados às regras devem ser compatíveis com os benefícios auferidos pela administração tributária;
(c) as regras devem ser eficazes e possibilitar a identificação de planejamentos abusivos; e
(d) as informações coletadas devem ser de fato utilizadas.

Com base em tais princípios e objetivos, a Minuta traz recomendações específicas a serem adotadas pelos legisladores ao elaborarem suas regras domésticas. 

4. MP 685/15

Da forma como proposta, a MP 685/15 prevê a obrigatoriedade de reporte do conjunto de operações que acarretem supressão, redução ou diferimento de tributo quando os atos ou negócios jurídicos praticados não possuírem razões extratributárias relevantes (artigo 7º, I); a forma adotada não for usual, utilizar-se de negócio jurídico indireto ou contiver cláusula que desnature, ainda que parcialmente, os efeitos de um contrato típico (artigo 7º, II); ou tratar de atos ou negócios jurídicos específicos previstos em ato da Secretaria da Receita Federal do Brasil (artigo 7º, III). 

Note-se que a regra apresenta condições alternativas. Assim, uma vez ocorrida uma das hipóteses previstas, o contribuinte deverá apresentar à RFB declaração para cada conjunto de operações executadas de forma interligada, nos termos da regulamentação. No caso de a RFB não reconhecer, para fins fiscais, as operações declaradas, emitirá intimação para que contribuinte recolha os tributos alegadamente devidos, acrescidos somente de juros de mora (artigo 9º).

Por fim, a MP 685 estipula que no caso de descumprimento da obrigação de reporte pelo contribuinte, ou caso a declaração apresentada seja ineficaz, será caracterizada missão dolosa do sujeito passivo com intuito de sonegação ou fraude e os tributos devidos serão cobrados acrescidos de juros de mora e da multa agravada de 150%. Trata-se, portanto, de hipótese de presunção absoluta de dolo do contribuinte, não cabendo qualquer prova em sentido contrário (artigo 12). 

5. DA COMPATIBILIDADE DA MP 685 COM O PROJETO BEPS

Indiscutivelmente, a iniciativa do Governo Brasileiro de adotar medidas voltadas à modernização do sistema tributário nacional é louvável, especialmente quando envolve a adoção de práticas voltadas ao fomento da boa-fé na relação fisco/contribuinte. Nesse cenário, a adesão brasileira ao Projeto BEPS, bem como a adoção de recomendações resultantes de tal processo, se mostra um caminho interessante e louvável para a consecução de tais objetivos. Entretanto, assim como já ocorreu no passado com diversas iniciativas bem intencionadas, a incorporação descuidada da Ação 12 do BEPS pode produzir resultados negativos para os contribuintes e sua relação com o Fisco brasileiro.

O primeiro ponto que merece destaque não é técnico, mas conceitual. Conforme já mencionado, é premissa básica do Projeto BEPS a atuação coordenada dos países participantes, de modo a corrigir incompatibilidades existentes entre seus sistemas tributários domésticos. Tal conceito, porém, não tem sido obervado a risca pelo Brasil. 

Assim como ocorrido no processo de revisão das regras de tributação de lucros no exterior (CFC), o Governo Brasileiro novamente se antecipou às conclusões do grupo de estudos G20/OECD e iniciou reforma unilateral de sua legislação. Ao propor as regras de mandatory disclousure trazidas pela MP 685/15, o governo brasileiro adota parcialmente e de certa maneira de forma distorcida as recomendações preliminares da Ação 12 do BEPS, sem que as conclusões finais do grupo tenham sido divulgadas. Tal conduta mostra uma postura contrária à premissa adotada – coordenação –, mas também pode resultar em norma incompatível com o padrão final adotado no Projeto. 

Eventuais dúvidas em relação ao comprometimento do governo brasileiro com o Projeto BEPS surgem também na forma como as recomendações do grupo são adotadas. Conforme veremos, a MP 685/15 tem nitidamente a Minuta como base, mas acaba por adotar suas recomendações de forma parcial e, em alguns casos, até mesmo contrária aos princípios definidos pelo trabalho. 

Ao estipular pré-requisitos para obrigação de reporte, a MP 685/15 aparenta estar alinhada com as recomendações (preliminares) do Projeto BEPS. Para identificar transações sujeitas a reporte obrigatório (“what has to be reported”), a Minuta recomenda a definição de marcos (“hallmarks”) capazes de indicar situações alcançadas pela obrigação. Esse é o papel dos incisos do artigo 7º da medida provisória. Uma análise mais cuidadosa da Minuta, porém, nos permite identificar falhas na proposta brasileira. 

Ao tratar dos princípios gerais das regras de mandatory disclousure, a Minuta alerta que essas regras devem ser elaboradas da forma mais clara possível, a fim de garantir ao contribuinte certeza sobre o que é exigido. Tal medida não só tem o objetivo de fornecer segurança jurídica ao contribuinte, mas também evitar que a administração tributária receba informações de pouca qualidade ou irrelevantes. É justamente com tal espírito que o documento recomenda a definição de “marcos”; ou seja, os parâmetros previstos não devem deixar dúvidas em relação à existência ou não de obrigação de reporte.

É fato que, ao tratar dos marcos, a Minuta faz a distinção entre os genéricos e os específicos. No entanto, mesmo no caso de marcos genéricos, adota requisito de fácil identificação, tais como a existência de acordos de confidencialidade, remuneração de assessores com base em êxito e repetição de estruturas massificadas. Os marcos específicos, por sua vez, trazem transações previamente identificadas pelas autoridades e sujeita a reporte. 

Nesse contexto, ao adotar nos incisos “i” e “ii” do seu artigo 7º requisitos de reporte extremamente subjetivos, a MP 685/15 contraria um dos princípios fundamentais trazidos pela Ação 12. Em outras palavras, o modelo brasileiro, contrariando a recomendação do Projeto BEPS, não oferece ao contribuinte a clareza necessária em relação à qualificação das operações sujeitas a reporte, fugindo assim do padrão discutido internacionalmente.

Vale observar, ainda, que a própria compatibilidade da proposta de declaração obrigatória trazida pela MP 685/15 com ordenamento brasileiro também gera dúvida. Dentre alguns pontos passíveis de questionamento, chama a atenção o conteúdo do artigo 9º da medida provisória. Conforme estipula o dispositivo em questão, caso não concorde com a qualificação conferida pelo contribuinte à operação declarada, a RFB pode não reconhecer os respectivos atos e negócios jurídicos para fins ficais. Em outras palavras, pode desconsiderar a operação. 

A desconsideração de atos jurídicos pelas autoridades fiscais é assunto polêmico e tem produzido grande embate doutrinário e jurisprudencial, especialmente após a promulgação da Lei Complementar (“LC”) nº. 104/2001. 

Em síntese, a LC n° 104/2001 introduziu o “parágrafo único” no artigo 116 do CTN: “Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.” 

Em tese, após a promulgação da LC n° 104/2001 – e a criação da chamada “norma geral anti-elisiva” –, as autoridades fiscais teriam legitimidade para descaracterizar atos praticados pelos contribuintes com o intuito único de elidir a cobrança de tributos. 

O “parágrafo único” do artigo 116 do CTN, porém, não é auto-aplicável. Conforme expressamente previsto na última frase do referido dispositivo, o legislador condicionou a aplicação da norma à observância de critérios a serem determinados por lei ordinária. 

Nesse contexto, em 29.08.2002, foi editada a MP n° 66/2002, que regulamentou a LC n° 104/01, estipulando os critérios necessários para a desconsideração de negócios jurídicos. O texto da referida MP, no entanto, não foi convertido em lei e perdeu sua eficácia. 

Com fundamento na jurisprudência predominante, pode-se dizer que a norma geral anti-elisiva permanece inaplicável por falta de regulamentação, razão pela qual é altamente questionável procedimento que pretenda desconsiderar estruturas fiscais implementadas por atos lícitos, ainda que com o objetivo de reduzir a carga tributária. 

Assim, diante da inexistência de norma procedimental que regulamente o parágrafo único do artigo 116 do CTN, não pode o fisco federal desconsiderar para fins fiscais atos praticados pelos contribuintes, inclusive aqueles que eventualmente vierem a ser reportados à RFB em razão da MP 685/15. Nesse contexto, somente seria eficaz o artigo 9º da medida provisória, caso trouxesse previsão expressa do procedimento a ser adotado para descaracterização da operação, atendendo a exigência prevista no CTN. 

6. CONCLUSÃO

A iniciativa do Governo de incorporar ao ordenamento pátrio novas normas de caráter fiscal elaboradas com base nas orientações do Projeto BEPS é louvável e demonstra uma intenção de aperfeiçoamento das regras fiscais brasileiras. No entanto, seja por incompatibilidades com o próprio trabalho conduzido pela OECD, seja por conflito com o ordenamento pátrio, a proposta de declaração obrigatória de planejamentos fiscais trazida pela MP 685/15 está longe do modelo ideal a ser adotado.



[1]     EM nº 00080/2015 MF, de 07 de julho de 2015.

[2] OECD (2013), Action Plano on Base Erosion and Profit Shifting, OECD Publishing. http://dx.doi.org/10.1787/9789264202719-en.   

[3]     Nos últimos anos, a OECD tem se destacado pela elaboração de estudos voltados ao desenvolvimento de políticas fiscais capazes de mitigar a erosão da base tributária e as transferências artificiais de lucros.

[4]     OECD (2013), Addressing Base Erosion and Profit Shifting, OECD Publishing. http://dx.doi.org/10.1787/9789264192744-en.

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