O Princípio da Seletividade no ICMS sobre a Energia Elétrica

por Ricardo Quadros
Advogado
Associado do Escritório Gaiga Advocacia Empresarial
Especialista em Direito Tributário pela UFRGS

 

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo estudar os efeitos, através da compreensão do texto constitucional, da doutrina e da jurisprudência, quanto à aplicação do princípio da seletividade no ICMS, nos casos da cobrança do tributo nas operações de fornecimento de energia elétrica, demonstrando os conflitos gerados em torno do desrespeito legislativo dos Poderes Executivos e Assembleias Legislativas locais, que comumente ultrapassam o limite constitucional estabelecido, tributando por alíquotas maiores aqueles produtos considerados essenciais.

 Palavras-chave: direito tributário; icms ; principio da seletividade; essencialidade, energia elétrica.

 1. O PRINCÍPIO DA SELETIVIDADE NO ICMS

 O Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) é o principal meio de arrecadação dos Estados e do Distrito Federal, e encontra seu fundamento de cobrança na Constituição Federal de 1988, no artigo 155, II e deve atender ao disposto no §2º, como: não cumulatividade (inciso I), compensabilidade (inciso I), e seletividade em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços (inciso III), permitindo-se que cada Estado possa instituir livremente as alíquotas do tributo, desde que obedecidos os seus parâmetros Constitucionais. Logo, em razão dessa delegação de competência, cada Estado trata diferentemente o ICMS, aplicando-lhe incidências, alíquotas e privilégios de isenção distintos.

Não obstante nossa Carta Magna permitiu que o ICMS recaísse sobre as operações previstas no §3º, dentre elas as operações relativas à energia elétrica, que de acordo com a interpretação do texto constitucional e da LC 87/96 (Lei Kandir), se equipara a uma mercadoria.

O Princípio da Seletividade é aquele que determina que o tributo deve obedecer ao critério de essencialidade do produto ou serviço, sendo inversamente proporcional a sua importância, isto significa que quanto mais essencial for o produto para a coletividade menor será a alíquota imposta sobre sua base de cálculo. Permite desta forma, criar faixas de alíquotas que devem, obrigatoriamente, respeitar este critério.

A Constituição Federal de 1988 foi expressa em dizer que, no caso do ICMS, o tributo poderá ser seletivo, porém, a doutrina e jurisprudência definiram, que no caso de diversidade de alíquotas pelo Estado instituidor do tributo, sua aplicação será obrigatória, devendo-se respeitar a essencialidade dos produtos na definição destas alíquotas.

Luis Eduardo Schoueri ensina que “a seletividade está vinculada à essencialidade, indicando que os referidos impostos — aqui ele se refere ao IPI e ICMS — podem ter alíquotas variadas, não em função da base de cálculo, como na progressividade, mas em função dos próprios produtos”, indicando que existe uma estreita relação entre o princípio e os bens (produtos ou serviços) afetados pela incidência do tributo.[1]

Para Ricardo Lobo Torres o princípio da seletividade “se subordina ao princípio da capacidade contributiva e significa que o tributo deve incidir progressivamente na razão inversa da essencialidade dos produtos”[2], ideia esta com a qual ouso discordar em parte, já que a capacidade contributiva parece estar mais relacionada à disponibilidade econômica, o que é uma condição pessoal de quem pode dispor economicamente, do que exatamente ao custo de um bem ou serviço.

De certo que aparentemente as duas coisas estão relacionadas, pois é a capacidade contributiva que irá servir de liame entre a capacidade pessoal e o bem ou serviço em circulação. Entretanto, a essencialidade de um bem ou serviço está relacionada com a importância que ela tem para a sociedade. Logo, estaria afastada a pessoalidade a qual está intrinsecamente ligada à capacidade contributiva.

Assim sendo, trata-se de determinar a essencialidade dos bens e serviços de modo a saber se o princípio da seletividade está sendo respeitado, assim, valem as lições de José Eduardo Soares de Melo[3] que buscam elucidar as razões para classificarmos bens como essenciais, servindo, portanto, como premissa para identificá-la em produtos ou serviços os quais estariam sob o manto do princípio constitucional.

“Decorre de valores colhidos pelo constituinte, como é o caso do salário mínimo, que toma em consideração as necessidades vitais básicas, como moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência (art. 7º, IV).
É certo que sempre hão de ser tomadas em conta a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88), o desenvolvimento nacional (ar. 5º, II, da CF/88), a erradicação da pobreza, da marginalização e redução das igualdades sociais (art. 5º, III, da CF/88).”

Na mesma obra o autor cita Henry Tilbery que tratou do conceito de essencialidade.

“12.6 – o conceito de ‘essencialidade’ não deve ser interpretado estritamente para cobrir apenas as necessidades biológicas (alimentação, vestuário, moradia, tratamento médico), mas deve abranger também aquelas necessidades que sejam pressupostos de um padrão de vida mínimo decente, de acordo com o conceito vigente da maioria.
12.7 – Consequentemente, os fatores que entram na composição das necessidades essenciais variam de acordo com o espaço (conforme países e regiões) e o tempo (grau de civilização e tecnologia).”

 No entanto, é Aliomar Baleeiro que nos trás umas das melhores definições sobre a essencialidade, concluindo que a essencialidade é um critério relacionado a mercadorias e produtos que são mais necessários à vida civilizada e ao maior numero de habitantes do país, o que reforça a tese de que se trata de um conceito aplicado à sociedade, devendo, portanto, ser tratadas mais suavemente no campo da tributação.

“a seletividade significa discriminação ou sistema de alíquotas diferenciadas por espécies de mercadorias, como adequação do produto à vida do maior número de habitantes do país. As mercadorias essenciais à existência civilizada deles devem ser tratadas mais suavemente, ao passo que as maiores alíquotas devem ser reservadas aos produtos de consumo restrito, isto é, o supérfluo das classes de maior poder aquisitivo.”[4]

Calha esclarecer que o termo poderá,presente no inciso II, §2º, do Art. 155, da CF/88, deve ser interpretado como deverá, porquanto a Constituição Federal, ao traçar as regras do Sistema Tributário Nacional, não propõe recomendações aos entes tributantes, mas estabelece determinações a eles. E em razão desta força cogente imiscuída à seletividade constitucional, que com ela inclusive se confunde, o ICMS deve sempre ser utilizado como um mecanismo de perseguição de objetivos que estão além do abastecimento do Erário. Assim a doutrina de Roque Antonio Carrazza[5] caminha nessa trilha:

“(…) Convém salientarmos, desde logo, que, a nosso ver, este singelo ‘poderá’ equivale, na verdade, a um peremptório ‘deverá’”. Não se está diante de uma mera faculdade do legislador, mas de uma norma cogente, de observância obrigatória.
Ademais, quando a Constituição confere a uma pessoa política um “poder”, ela, ipso facto, lhe impõe um “dever”. É por isso que se costuma falar que as pessoas políticas têm poderes deveres.”

Percebe-se que o Princípio da Seletividade serve de garantia ao contribuinte, protegendo-o da (in) competência do ente tributante na tributação de produtos e serviços atingidos pela incidência tributária, logo, não se fala em capacidade contributiva ou princípio da igualdade.

Não se trata de restringir o consumo aos mais ricos e garantir aos mais pobres, em uma espécie de igualdade material, trata-se é de um conceito universalizador, que garante a toda a sociedade manter-se dignamente no mundo civilizado. Destarte, o princípio da seletividade deve ser respeitado a fim de permitir o acesso universal aos bens mais necessários à sobrevivência.

 2. O EXEMPLO DOS ESTADOS DO RIO DE JANEIRO E DO RIO GRANDE DO SUL

 Nos Estados do Rio de Janeiro e do Rio Grande dos Sul, como exemplo, as legislações que tratam sobre a incidência de ICMS sobre as operações de fornecimento de energia elétrica estão dispostas, respectivamente, no Art. 14, inciso VI, da Lei Ordinária Estadual nº 2.657/96, alterada pelo DECRETO Nº 27.427/2000 (Regulamento do ICMS) que majorou a alíquota do imposto para 25%, e no art. 27, do DECRETO Nº 37.699, de 26/08/1997, cujo fornecimento de energia elétrica é relacionada no Apêndice I.

Não obstante estes Estados optaram tacitamente por adotar o princípio da seletividade em sua legislação tributária, no que diz respeito ao ICMS, já que resolveram por aplicar diferentes alíquotas a diferentes espécies de produtos e serviços, o que impõe a aplicação do referido princípio.

 A legislação fluminense, a despeito do referido princípio, estabelece alíquotas menores para produtos como bebidas alcoólicas, razão pela qual esta incoerência foi alvo de ações que culminaram com a arguição de inconstitucionalidade nº 27/2005, junto ao Órgão Especial do TJRJ, que julgou inconstitucional a majoração da alíquota de 25% sobre as operações com energia elétrica.

“Todavia, em relação ao Decreto 27.427/2000, ao fixar alíquota de 25% sobre os serviços de energia elétrica e telecomunicações, verifica-se que não foram observados os princípios da seletividade e da essencialidade, dispostos no Artigo 155, § 2°, III da CRFB, mormente quando estipula alíquotas menores a produtos supérfluos, como bebidas alcoólicas.
É certo que a seletividade do ICMS é facultativa, mas não pode ser muito ampla, devendo, por imposição constitucional, atender aos critérios da gradação determinada.
Assim, deve ser maior a alíquota relativa às mercadorias supérfluas e suntuosas, entre as quais não se enquadram os serviços de energia elétrica e de telecomunicações, que, a contrario senso, são considerados de essencial importância à sociedade.”

 Não obstante o reconhecimento da inconstitucionalidade pelo pleno do Tribunal de Justiça local, o Estado continua aplicando a referida alíquota, perpetuando a afronta à Carta Magna.

 3. CONCLUSÃO

Por fim, denota-se que o Estado do Rio de Janeiro e o Estado do Rio Grande do Sul instituíram cobrança inconstitucional de tributo, quando estabeleceram a alíquota de ICMS incidente sobre o fornecimento de energia elétrica em 25%, já que a regra imposta no inciso III, do §2º, do Art. 1555, da CF/88, determina a observância de taxar os bens e serviços à razão inversa de sua essencialidade, logo, quanto mais essencial, menor será a alíquota.

Note-se que é certo que a energia elétrica está para a civilização assim como a água está para o corpo humano, pois toda a sociedade atual é dependente da energia elétrica para a realização de seus objetivos e manutenção da própria vida.

Não se trata de exagero dizer que vidas dependem do bem energia elétrica, já que em UTIs/CTIs de hospitais, várias vidas dependem diretamente da energia elétrica para poderem sobreviver, já que é ela que alimenta as máquinas que dão suporte à vida do paciente enfermo, sem a qual certamente não se sustentariam. Impossível imaginar o mundo sem a energia elétrica! 

Mesmo as tentativas de burla criada por estes Estados, que estabeleceram faixas de consumo de energia elétrica, as quais as alíquotas são mais baixas quanto menor o consumo, ferem o princípio insculpido na Carta Magna. As alíquotas “seletivas” em relação à energia elétrica são mais baixas para residências que consomem até 50Kw(RS) e 300Kw (RJ) por mês, inferindo que famílias que têm este consumo são de baixa renda, merecendo um benefício.

Com isto, surgem dois gigantescos equívocos. O primeiro diz respeito ao fato de que a seletividade é em relação ao bem ou serviço e não em relação a pessoas de determinada classe social. Quando se utiliza a renda como critério de seletividade está dizendo que aquela classe social é essencial e não o bem. O segundo erro é que nem a parcela considerada de baixa-renda é atendida igualitariamente, pois imaginemos duas famílias de baixa renda, uma constituída por um casal e um filho pequeno e outra por um casal e três filhos adolescentes. A primeira família consome menos de 50kw por mês e paga 12% de ICMS em sua conta de energia elétrica, a segunda, embora tenha renda per capta até menor, consome 60kw por mês e paga 25% de ICMS em sua fatura de energia elétrica. 

Percebe-se, inclusive, que as faixas de consumo que supostamente caracterizariam famílias de baixa renda não encontram nenhuma lógica.  Ou será que o pobre do RJ é mais rico que o pobre do RS?

Segundo o autor SACHA CALMON NAVARRO COELHO, em seus Comentários à Constituição de 1988 – Sistema Tributário:

“No ICMS a seletividade não poderá ser nem será muito ampla. Espera-se que três alíquotas sejam suficientes. Uma de 25% mais ou menos para as mercadorias supérfluas ou suntuárias, outra de 17% mais ou menos para o grosso das mercadorias e outra de 9% a 12%, por aí, para as mercadorias de grande consumo popular, gêneros de primeira necessidade, como se costuma dizer.”

Destarte, a lógica demandaria que a prestação de serviços de fornecimento de energia elétrica fosse tributada sob as menores alíquotas destes Estados e não pela mais alta, como ocorre atualmente, logo, tratam-se de cobranças inconstitucionais, cujo vício de constitucionalidade encontra-se no desrespeito da regra, tida como princípio, imposta na Carta Magna, mas que, por falta de interesse em razão do benefício econômico que esta arrecadação traz aos Estados, se mantém, ferindo a Lei Maior mesmo após julgados já terem decidido pela inconstitucionalidade da respectiva cobrança, assim como acontece no Rio de Janeiro. 

 REFERÊNCIAS

 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 14ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2013.

CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 19ª. ed. rev. ampl. São Paulo: Malheiros, 2003.

_______. ICMS. 10ª Ed. São Paulo: Malheiros Editores. 2005

CARVALHO, Paulo Barros. Curso de direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 1995

MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 25ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Malheiros Editores, 2004.

MELO, José Eduardo Soares. ICMS: Teoria e Prática. 12ª ed. São Paulo: Dialética, 2012.

_______. Teoria da Igualdade Tributária. 2ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2009.

_______. Sistema Constitucional Tributário. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos: Contributo para a compreensão constitucional do estado fiscal contemporâneo. 1ª ed. Coimbra: Almedina, 2009.

SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 13ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

 


[1] SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p 397.

[2] TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 13ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p 387.

[3] MELO, José Eduardo Soares. ICMS: Teoria e Prática. 12ª ed. São Paulo: Dialética, 2012. p 358.

[4] BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. Forense, Rio de Janeiro, 1984, p 206.

[5] CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 10ª Ed. São Paulo: Malheiros Editores. 2005. p. 361.

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