Cobrança de contribuição previdenciária sobre plano de saúde concedido pelas empresas aos dependentes dos seus empregados
por André Fittipaldi Morade
sócio e advogada da área trabalhista e previdenciária de TozziniFreire Advogados
Carolina Benedet Barreiros Spada
advogada da área trabalhista e previdenciária de TozziniFreire Advogados
1. Introdução
Está para ser julgado no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (“CARF”) recurso voluntário contra decisão que julgou procedente autuação da Receita Federal do Brasil instituindo a cobrança de contribuição previdenciária sobre plano de saúde concedido aos dependentes de empregados (Processo 13971.004294/2009-50).
Neste caso, a Receita Federal entendeu que o artigo 458, §2º da Consolidação das Leis do Trabalho (“CLT”) dispõe sobre exclusão da natureza salarial do plano de saúde quando concedido apenas aos empregados e não aos seus dependentes, de forma que valor correspondente ao custeio do plano dos dependentes deve ser considerado como “salário utilidade” e enquadrado no conceito de salário-de-contribuição previsto na legislação previdenciária (Lei 8.212/91).
O assunto em questão é de extrema relevância não apenas financeira, mas também política e social. Isto porque, a concessão deste e de outros benefícios deve ser analisada não apenas com base no conceito literal de remuneração previsto na legislação trabalhista, ou de salário de contribuição previsto nas leis previdenciárias, mas também sob a ótica social da concessão de saúde pelo particular uma vez que o próprio Estado falha em garantir este direito aos trabalhadores.
Assim, faz-se importante analisar os conceitos legais de saúde, remuneração e salário de contribuição estabelecidos na Constituição Federal, na Consolidação das Leis do Trabalho (“CLT”) e nas leis previdenciárias que regem o tema.
2. Análise jurídica
A Constituição Federal estabelece o direito à saúde como um dos direitos sociais garantidos aos cidadãos, bem como um direito dos trabalhadores, além de outros que visem à melhoria de sua condição social. Neste contexto, a promoção da saúde dos trabalhadores e de suas famílias certamente representa melhoria em sua condição social, na medida em que são poucos os trabalhadores que poderiam dispor da sua jornada de trabalho para acompanharem os seus dependentes nas longas filas dos hospitais públicos, até mesmo dispor de recursos para custear plano de saúde para seus dependentes.
A Constituição ainda estabelece como pilares da seguridade social – além da própria previdência social – a saúde e a assistência social. Logo, qualquer legislação a ser criada pelo Estado brasileiro deveria observar, sempre, os princípios que norteiam a sua necessidade e elaboração.
Pela análise do artigo 28 da Lei 8.212/91 (Lei de Custeio da Previdência Social), todos valores pagos pelo empregador para retribuir o trabalho prestado por seus empregados integram o denominado salário-de-contribuição:
Art. 28. Entende-se por salário-de-contribuição:
I – para o empregado e trabalhador avulso: a remuneração auferida em uma ou mais empresas, assim entendida a totalidade dos rendimentos pagos, devidos ou creditados a qualquer título, durante o mês, destinados a retribuir o trabalho, qualquer que seja a sua forma, inclusive as gorjetas, os ganhos habituais sob a forma de utilidades e os adiantamentos decorrentes de reajuste salarial, quer pelos serviços efetivamente prestados, quer pelo tempo à disposição do empregador ou tomador de serviços nos termos da lei ou do contrato ou, ainda, de convenção ou acordo coletivo de trabalho ou sentença normativa
Temos, acima, o conceito literal do salário de contribuição que norteia o custeio da Previdência Social. Apesar da legislação previdenciária ter se utilizado de conceito próprio de remuneração, faz-se necessário o socorro aos preceitos trabalhistas para melhor avaliar o conceito exato de remuneração.
Isto porque, o artigo 7º da Constituição Federal, bem como os artigos 195 e 201 do mesmo diploma legal trazem o mesmo vocábulo – remuneração – de forma que estes artigos devem ser complementados pelas leis infraconstitucionais que os regulamentam, resultando assim na análise correta e aprofundada sobre o tema.
Neste sentido, o artigo 458 da CLT traz o conceito de remuneração na esfera trabalhista, destacando quais verbas pagas pelo empregador não teriam natureza salarial e não são consideradas parte da remuneração. Vejamos:
Art. 458 – Além do pagamento em dinheiro, compreende-se no salário, para todos os efeitos legais, a alimentação, habitação, vestuário ou outras prestações “in natura” que a empresa, por forca do contrato ou do costume, fornecer habitualmente ao empregado. Em caso algum será permitido o pagamento com bebidas alcoólicas ou drogas nocivas. (Redação dada pelo Decreto-lei nº 229, de 28.2.1967)
(…)
§ 2o Para os efeitos previstos neste artigo, não serão consideradas como salário as seguintes utilidades concedidas pelo empregador:
(…)
II – educação, em estabelecimento de ensino próprio ou de terceiros, compreendendo os valores relativos a matrícula, mensalidade, anuidade, livros e material didático; (Incluído pela Lei nº 10.243, de 19.6.2001)
(…)
IV – assistência médica, hospitalar e odontológica, prestada diretamente ou mediante seguro-saúde; (Incluído pela Lei nº 10.243, de 19.6.2001)
V – seguros de vida e de acidentes pessoais; (Incluído pela Lei nº 10.243, de 19.6.2001)
VI – previdência privada; (Incluído pela Lei nº 10.243, de 19.6.2001)
VIII – o valor correspondente ao vale-cultura. (Incluído pela Lei nº 10.243, de 19.6.2001)
Destacamos, dentre os parágrafos e incisos do artigo 458, aqueles que tratam especificamente dos direitos básicos do cidadão estabelecidos na própria Constituição Federal e que, quando concedidos pelo empregador, não deverão ser tratadas como salário justa e obviamente pelo caráter eminentemente social da sua concessão.
A exposição de motivos do projeto de lei 3.523/00, que motivou a criação da Lei 10.243/01, que incluiu boa parte dos incisos acima, demonstra que a intenção do legislador foi justamente a de afastar a suposta natureza salarial destes benefícios, especialmente porque o empregador, neste caso, faz as vezes do Estado na garantia de condições mínimas dos direitos sociais. Vejamos:
“A proposta modifica, ainda, o § 2º do art. 458, da CLT, que dispõe sobre o salário in natura, para determinar que os benefícios, concedidos pelo empregador, relativos a educação, transporte, assistência médica, hospitalar, e odontológica, seguros de vida e de acidentes pessoais e previdência privada, não integram o salário. A carência de serviços e benefícios sociais indica a conveniência de estimular as empresas a concederem benefícios que proporcionem aos trabalhadores maior segurança e satisfação, sem ônus subseqüente de outra natureza. A proposta atende a essas expectativas desvinculando tais benefícios do salário.”
Ora, se a intenção do legislador com a previsão celetista era justamente excluir a natureza salarial desta verba, porque então não avaliar o conceito de salário-de-contribuição em conjunto com o artigo 458 da CLT?
Esta questão já foi, inclusive, debatida pelo Supremo Tribunal Federal por ocasião do julgamento do no Recurso Extraordinário 166.772/RS. Embora este caso trate da necessidade de lei complementar para a instituição de contribuições previdenciárias, o Ministro Celso de Mello, em seu voto, destacou a necessidade das leis trabalhistas e previdenciárias serem analisadas em conjunto, de forma a complementar o entendimento acerca do conceito de salário e remuneração:
“(…) Dentro deste contexto, a existência do poder de direção jurídica – que remanesce na esfera do organismo empresarial – traduz, na especificidade de que se reveste esse conceito, um dos elementos essenciais e determinantes da caracterização formal das relações individuais de trabalho.
Firmada esta premissa básica – que, consoante ressalta o magistério da doutrina (…) identifica, na subordinação jurídico-disciplinar do empregado, o caráter de nota tipificadora do contrato individual de trabalho -, e tendo presente, ainda, que o salário constitui noção legal revestida de significado próprio, qualificável como expressão econômico-financeira da contraprestação do serviço realizado sob o regime de execução subordinada, torna-se evidente que a locução constitucional “folha de salários”, inscrita no art. 195, I, da Carta Política, há de ser definida em função dos critérios estritamente técnicos, a serem considerados na exata e usual dimensão que lhes confere o Direito do Trabalho.
Isso significa, portanto, que a expressão “folha de salários” refere-se ao conjunto de valores remuneratórios pagos pela empresa às pessoas que lhe prestam serviços com vínculo de subordinação jurídica.
(…) A expressão constitucional “folha de salários” reveste-se do sentido técnico e possui significado conceitual que não autoriza sua utilização em desconformidade com a definição, o conteúdo e o alcance adotados pelo direito do trabalho.
A transcrição acima dispõe claramente que não pode o magistrado esquivar-se de analisar determinada situação em conformidade com o conjunto de normas que lhe são afetas.
Na situação objeto deste estudo, a autuação da Receita Federal decorreu da análise restritiva do conceito insculpido no artigo 458, §2º – entendeu o Auditor Fiscal que o artigo em questão apenas diz que o plano de saúde concedido não tem natureza salarial, mas é silente com relação ao pagamento aos dependentes; logo, o pagamento do plano aos dependentes deve integrar o conceito de salário. Da mesma forma, restringe a literalidade do conceito previsto no artigo 28, §9º, “q” da Lei 8.212/91, que dispõe que o plano de saúde concedido aos empregados e dirigentes, atendidos os requisitos legais, não integra a base de cálculo do salário-de-contribuição.
Até o momento, o CARF tem se posicionado favorável à tese da Receita Federal e, ao que parece, o auto de infração deverá ser julgado subsistente.
Ainda que o CARF tenha o dever de julgar de acordo com a legislação vigente (não cabendo a este órgão análise de constitucionalidade e/ou legalidade das normas), razão pela qual não está obrigado a julgar de acordo com jurisprudência do Poder Judiciário (exceção feita aos atos do Poder Judiciário com Poder Vinculante, como a Súmula Vinculante do STF), este órgão pode e deve analisar o caso de acordo com todo nosso ordenamento jurídico, e não somente com base na Lei 8212/91.
É claro que cada situação deve ser analisada individualmente, tendo em vista que é possível existirem empresas que concedem este tipo de benefício apenas para algumas categorias de empregados, possivelmente com o intuito de premiar alguns em detrimento de outros, o que poderia caracterizar a natureza salarial do benefício. Nestes casos, é importante analisar também a aplicação do princípio da isonomia previsto na legislação trabalhista e que também é albergado pela legislação previdenciária: o benefício deve ser concedido a totalidade dos empregados – e, neste caso, dos dependentes dos empregados – de forma a demonstrar a real natureza social do benefícios.
Do contrário, o intuito social da legislação seria inócuo, revelando a natureza nitidamente salarial da verba.
Por todo o exposto, legislação trabalhista e previdenciária devem ser analisadas em conjunto para determinar a natureza salarial de verbas específicas, sempre considerando o intuito do legislador no momento da elaboração do texto legal. E, pela análise dos dispositivos previstos na CLT e na Lei 8.212/91, somos de opinião de que o valor do plano de saúde custeado pelo empregador aos dependentes de seus empregados não deve ser tratado como salário.